O que é uma revista de invenção?
No Brasil, o termo “invenção” nos remete invariavelmente para Pound e seu uso nas vanguardas tardias, como descoberta ou elucidação de um novo processo. Mas é possível expandir esse conceito, no presente caso, para uma revista que não trabalhe apenas com a reprodução de originais externos, restringindo-se a veículo ou meio, mas busque ser um original em si, pensando de modo crítico as especificidades da própria linguagem. Ou seja, que se conceba como processo e obra.
O Brasil não carece de exemplos de revistas de invenção. A começar pela Klaxon, a revista fundadora do nosso modernismo, editada em 1922 por Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Guilherme de Almeida e Luiz Aranha, entre outros, como pode ser visto não só na irreverência criativa de seus textos, como no uso inovador do espaço gráfico e da tipologia, desde a capa até o anúncio no seu final (“coma lacta”). E seguindo durante as décadas seguintes, na experiência concreta da Noigandres, nos anos 1950, na liberdade contracultural da Navilouca e do Almanaque Biotônico Vitalidade, nos anos 1970, e na aventura construtiva do Atlas Almanak, nos anos 1980, para ficarmos em alguns exemplos. Todas elas publicações que tensionaram os limites clássicos da linguagem de revista, absorvendo elementos da construção poética na sua própria concepção editorial e gráfica.
Mas uma revista de invenção não é importante apenas por suas experiências formais, mas também na criação de processos inovadores e coletivos. No caso da literatura, especialmente da poesia, estamos lidando com uma das áreas mais conservadoras em termos de autoria. Ao contrário das artes visuais, do cinema e da música, que absorveram no contemporâneo os processos coletivos como força criativa, a literatura ainda traz de forma muito arraigada a centralidade da figura do criador autoral. Uma revista de invenção permite a quebra desse paradigma, seja através da elaboração coletiva de seus conteúdos, seja no esboroamento das assinaturas. É o caso, por exemplo, do citado Almanaque Biotônico Vitalidade, realizado pelo grupo de poesia marginal Nuvem Cigana nos anos 1970, onde as referências do autor de cada página só podem ser encontradas no sumário, criando um fluxo de leitura diverso e livre.
Essa concepção coletiva das revistas, bastante a gosto daquele momento contracultural, foi uma das motivações para Paulo Leminski afirmar, num texto já clássico, que “consolem-se os candidatos. Os maiores poetas (escritos) dos anos 1970 não são gente. São revistas. Que obras semicompletas para ombrear com o veneno e o charme policromático de uma Navilouca? A força construtiva de uma Pólem, Muda, ou de um Código? O safado pique juvenil de um Almanaque Biotônico Vitalidade? A radicalidade de um Polo Cultural/Inventiva, de Curitiba? A fúria pornô de um Jornal Dobrabil? E toda uma revoada de publicações (Flor do Mal, Gandaia, Quac, Arjuna) onde a melhor poesia dos anos 1970 se acotovelou em apinhados ônibus com direção ao Parnaso, à Vida, ao Sucesso ou ao Nada”.
E então estamos falando da possibilidade de atualização de processos criativos através da revista. A tradução de inquietações do contemporâneo, como autoria, performance, processo e obra, transversalidade, diálogo entre diferentes linguagens artísticas, entre outras. E a criação de pontos de encontro e intersecção cultural. Ou seja, de ressaltar a importância da revista para a cultura, no momento em que as inovações tecnológicas criam novas formas de difusão de conteúdos. Atualmente, a revista está livre da obrigação de lidar com a divulgação primeira de textos e obras: tudo pode ser publicado, com agilidade e sem a necessidade de intermediários, seja de forma digital ou a partir de impressões sob demanda. Portanto, a revista não é mais um espaço fundamental para a difusão de conteúdos, enquanto meio. Isso a liberta (ou deveria libertar) para se pensar enquanto forma. Mas nem sempre é o que acontece.
Outro dia, conversando com o editor de uma importante revista de poesia, perguntei por que a revista era tão conservadora em termos gráficos, utilizando o formato livro com uma mancha de texto tradicional. O motivo do questionamento era a minha estranheza com o descompasso da revista e o trabalho pessoal dele, um autor que sempre pensa diferentes possibilidades da poesia expandida: a performance, o sonoro, o digital… A sua resposta foi que atualmente, com as ferramentas de mídia das novas tecnologias, não fazia sentido a redução para o papel de trabalhos expandidos. A melhor forma, segundo ele, seria através de mídias audiovisuais na rede. Como se isso em si também não acarretasse em uma redução e tradução do poema para outro suporte.
Esta conversa me levou a pensar em Hélio Oiticica, na sua já clássica formulação “o q eu faço é música”. Em um trecho inédito da entrevista que cedeu para Heloísa Buarque de Holanda, em 1978, Oiticica declarou: “Eu já disse para o João Gilberto, ele é um excelente instrumentista, mas músico mesmo sou eu”. Embora não possamos saber o quanto há de chiste na afirmação, podemos pressupor sobre o que o artista visual estava se referindo: ele via as suas proposições, cada vez mais frequentes como base para sua criação artística, como uma forma de partitura. Ou seja, havia uma aproximação da obra de Hélio com as inovações inclusive gráficas da música contemporânea.
Se recuarmos um tanto no tempo, veremos que esse mesmo procedimento de partitura é o que norteia muito do trabalho gráfico original das revistas vanguardistas, especialmente as futuristas e dadaístas. Espaçamento para marcar o ritmo, tipologia para marcar a acentuação… Havia ali a tentativa de traduzir para o escrito o trabalho performático que esses movimentos estavam realizando. E a redução de diversos elementos para a bidimensionalidade do papel levava à invenção de novas formas de linguagem. A revista, ao se tornar o espaço privilegiado dessas experiências, tornava-se não apenas um espaço de difusão cultural, como também um espaço de criação, de invenção em si.
No Brasil do século XXI, multiplicam-se as revistas literárias. Algumas digitais, outras impressas. São publicações de grande qualidade, relevantes no conteúdo e na divulgação de autores novos e revalorização de outros ainda não conhecidos do público leitor. Mas são, em sua grande maioria, publicações que lidam de forma tradicional com as seções de uma revista de poesia: entrevista, tradução, inéditos, ensaio. Os editores parecem não perceber as possibilidades de intervenção de linguagem na própria estrutura da revista. Ou propositivas da construção editorial, criando campos magnéticos e diálogos entre os diferentes conteúdos reunidos. Uma pena, já que assim as revistas acabam não acompanhando nem tensionando com o mesmo nível de invenção o excelente momento que a poesia brasileira está passando, tanto nas obras como no crescente interesse de público, especialmente entre os jovens.
A poesia brasileira vai muito bem, obrigado. Já a revista, bem, a revista precisa ser reinventada.