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Ars gratia artis: ativismo literário

julho, 2014

Condenado à morte, o jovem escritor Fiódor Dostoiévski se vê diante do pelotão de fuzilamento após meses sabendo de antemão o exato momento de seu próprio assassinato. No último minuto de vida, a sua pena é comutada para singelos quatro anos de Sibéria. A razão da sentença? Ler em público a carta do crítico Belínski para Nikolai Gógol. E a história se repete ao longo de todo o século XIX. É de uma banalidade atroz a quantidade de escritores russos vítimas da extrema repressão tsarista, seja em forma de exílio, prisão ou morte.

A figura épica de Víssarion Belínski, responsável por abrir caminho na Rússia para uma literatura consciente de sua história e definir o que já havia sido feito em termos subversivamente novos só escapou das garras do Estado policial por ter falecido muito jovem de tuberculose. Eram tempos de guerra contra um regime violento e ultrapassado, e nos momentos decisivos, lá estavam os escritores. Todos os grandes romances de Tolstói, Dostoiévski e Turguêniev foram publicados na segunda metade do século XIX, mais precisamente entre 1860 e 1880. Período em que a servidão foi abolida na Rússia e o tsar Alexandre II, morto por revolucionários. Quem leu Pais e Filhos de Turguêniev conhece a efervescência política de uma época em que se declarava que tudo, absolutamente tudo devia ser negado. A literatura já se encontrava no front.

Muito antes disso, ainda em dezembro de 1825, parte da nobreza reformista se insurgiu num episódio decisivo contra o regime despótico. Com a Revolta Dezembrista pela primeira vez na história da Rússia a transformação revolucionária era uma realidade possível. As Guerras Napoleônicas haviam aproximado os oficiais nobres das ideias liberais: lutava-se por uma Constituição. Como Tolstói narra brilhantemente no começo de Guerra e Paz, o iluminismo surgia no horizonte russo. Contudo, o fracasso político do movimento dezembrista e a severa punição de seus participantes, seguida do recrudescimento da violência, deixou os intelectuais nos anos seguintes sem grandes possibilidades de ação.

A partir da década de 1830, houve um mergulho na filosofia alemã. Sem poder discutir o presente, a saída foi o sentimento compartilhado de nostalgia por um tempo perdido. Por outro lado, juntou-se a esse romantismo o misticismo na esfera da arte. O artista era um ser quase divino, sua inspiração vinha de Deus.

É evidente que num cenário de repressão generalizada, em uma autocracia absoluta, questões políticas não podiam ser debatidas abertamente. Após as ondas revolucionárias que atingiram a Europa em 1830 e especialmente 1848, o tsar Nicolau I intensificou ainda mais a violência do regime nos anos que seguiram. Quando em 1834 Belínski irrompe na cena literária ele tem de fazer uso do que convencionou-se chamar de linguagem esópica. Como o nome bem diz, trata-se de um modo de escrever que emprega alegorias e metáforas para contornar a censura. Talvez o fato de não ser possível falar de forma direta tenha contribuido para um maior refinamento da linguagem crítica. Após Belínski inaugurar na literatura um espaço privilegiado para o pensamento, a intelligentsia (termo que surgiu para denominar os intelectuais russos engajados) encontrou ali lugar para pensar o mundo e criticar a ordem vigente.

Em meados do século, havia pouca distinção entre a importância do romancista e do crítico literário. Ambos trabalhavam em conjunto. Ivan Gontcharóv, autor de Oblómov, chegou a se lamentar da pífia recepção do seu terceiro romance justamente por nenhum crítico de peso ter se manifestado. Desde círculos intelectuais até revistas periódicas onde tudo era publicado, lido e criticado, a literatura funcionava como centro de discussão e contestação. Foi apenas nessa época que a sociedade russa, até então dividida entre servos e nobres, passou a ser também pensada por críticos emergentes das camadas médias.

Curiosamente, Belínski é uma rara exceção de um intelectual não-nobre que despontou antes de 1850. E nele já se encontra a ambivalência do debate que viria a florescer: a definição do papel social da arte. Por um lado, ele condizia com a autonomia estética da literatura; por outro, defendia a necessidade da arte se ligar à vida.

Há um verdadeiro choque de visões de mundo quando os jovens intelectuais originários das camadas médias da população começam a se fazer ouvir. A noção estética hegeliana defendida pelos velhos nobres da geração de 1840 é então completamente rechaçada. O discurso se polariza: de um lado, os críticos radicais que lutam por uma arte utilitarista, politicamente orientada para resolver problemas sociais; do outro, membros da nobreza liberal que defendem o valor da “arte pela arte”. Cada vez mais, o contexto histórico mostrava a urgência de se assumir posições. O radical clima de mudanças pode ser sentido com a publicação em 1852 de Memórias de um Caçador, reunião de contos em que Turguêniev retrata as cruéis condições de vida dos camponeses. A repercussão foi imediata. O escritor é preso, mas um caloroso debate ganha forma. Praticamente dez anos depois, o novo tsar decreta o fim da servidão. Corre a lenda de que sobre sua escrivaninha havia um exemplar do livro de Turguêniev.

Em 1855, os anos sombrios do governo de Nicolau I têm fim. A ascensão de Alexandre II traz a possibilidade de reformas. A crescente politização do debate literário, aliada a esperança por mudanças estruturais, faz com que o discurso da arte enquanto fim em si mesmo pudesse ser facilmente questionado pelos críticos radicais. Aos poucos, os radicais se tornam hegemônicos, mas a tendência utilitarista na arte era algo a ser condenado pelos grandes romancistas da época. Quando os velhos críticos literários da geração de 1840 acabam rejeitados pelo público, o romance russo ganha ainda maior reflexividade ao se colocar no meio do turbilhão de ideias e posições.

Pais e Filhos começa o movimento de trazer o debate sobre estética e política para dentro da literatura. Ele abre as portas para Memórias do Subsolo, de Dostoiévski. O termo niilista aparece no primeiro para denominar o protagonista do livro, Bazárov, cujo único desejo era “limpar o terreno”, isto é, acabar com todas as instituições para então começar do zero. Já Dostoiévski aprofunda essa vontade de enfrentamento no Homem do Subterrâneo que ridiculariza todas as ideologias, inclusive as dos próprios radicais. Esse homem, contudo, enseja um choque frontal. Apesar de condenar o mundo, o seu alvo é bem específico: um oficial aristocrata que se nega a ceder lugar a ele, pobre funcionário. Nos dois casos, o interlocutor que aparece nas entrelinhas é Nikolai Tchernichévski, o maior crítico radical da geração de 1860. De maneira semelhante à incorporação da crítica literária por Turguêniev e Dostoiévski em seus livros, Tchernichévski faz o mesmo só que no caminho oposto. Por falta de uma literatura que fosse de seu agrado, ele decide escrever o seu próprio romance.

Em resposta ao Pais e Filhos, ele escreve O que fazer? / Relatos sobre gente nova, livro despreocupado com qualquer elegância formal mas extremamente influente. Decisivo no desencadeamento da Revolução Russa, e muito admirado por Karl Marx, O que fazer? foi por muito tempo o manual para a vanguarda política. Ao contrário do que se vê nos romances de Dostoiévski, os personagens criados por Tchernichévski não têm qualquer consciência de um conflito interno, para eles o conflito está no mundo. Ele dá um basta nos eternos dilemas e anuncia de vez os passos para a ação. Tchernichévski e outros radicais, retratados no personagem Bazárov, terminam por condenar a própria literatura. Segundo eles, a vida deve ser mais importante que a arte. No futuro ideal, a ciência positiva responderia a todas as necessidades de modo que a “estética, para nossa grande satisfação, desaparece na fisiologia e na higiene”. Mas assim como Tchernichévski se aventura na arte com esse romance, sabe-se que outros radicais da mesma geração mantinham seus cadernos de versos. Apesar desse discurso, a arte era tão importante em suas vidas quanto o destino da Rússia. Afinal, todos viveram, e morreram, em função da literatura.

Não se trata de hipocrisia. Numa Rússia cujos lemas eram a “ortodoxia, autocracia e nacionalismo”, empreender uma cruzada pelo Progresso e pela Razão utilitarista significava naquele contexto enfrentar o regime. O que interessa é reconhecer a imensa coragem de todos em jogo. Posições tiveram de ser assumidas e as consequências, aceitas. Tchernichévski, diferente dos vários escritores que se levantaram e sofreram as represálias, já estava preso quando escreveu o seu livro mais revolucionário. A milagrosa publicação de O que fazer? mesmo dentro da Bastilha russa, a Fortaleza de Pedro e Paulo foi como assinar a sentença da própria morte. Assim como Dostoiévski, Tchernichévski também passa pelo trauma de uma falsa execução, em seguida é condenado a uma década de trabalho forçado para depois ser exilado na Sibéria. Mas de qualquer jeito, tanto ele quanto todos os outros grandes escritores cujas obras chegaram até nós persistiram. Escreveram e publicaram, custe o que custar.

 


 

Agradecimentos especiais à Sônia Branco e sua fundamental pesquisa sobre a crítica literária russa no século XIX.

 

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