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Museus no século XXI, mídias digitais e compartilhamento de autoridade (Parte I)

janeiro, 2019

I. Uma nova era de museus

Tomando o argumento de Ruth Philips como ponto de partida, estamos vivendo uma segunda era dos museus1. A primeira era2, localizável na segunda metade do século XIX, consolidou o projeto do museu enciclopédico, onde os impérios visavam deter, classificar e expor a totalidade do conhecimento do mundo de modo a reforçar as crenças evolucionistas que compunham os projetos imperiais europeus. Recentemente, a ascensão de museus monumentais pode ser vista como uma tendência sólida, seja através de renovações e expansões de estruturas existentes, ou novos templos assinados por arquitetos famosos, com suas formas onduladas e sinuosas ou seus ângulos afiados e inesperados avançando sobre paisagens urbanas3 como monumentos contemporâneos simbólicos de sua relevância na sociedade. Aliada a um crescente interesse institucional em práticas de pesquisa, colecionismo e expografia responsáveis – social, teórica e praticamente–, Philips atribui a maior proximidade com pesquisadores e comunidades indígenas como sendo o grande potencial do que ela chama de segunda era dos museus.

Enquanto museus estão investindo no digital como um espaço de exposição dentro e fora das galerias, o movimento para substituir exposições tradicionais de museus parece residir em outro local. Ainda no argumento de Philips, a demanda pelo compartilhamento de autoridade sobre o conteúdo e a forma de exposições, que visa deslocar a voz do curador da posição de única- que-deve-ser-ouvida, parece desenhar um impacto mais profundo no mundo dos museus do que as tecnologias digitais — ainda que essas coisas por vezes caminhem juntas. Tendo dito isso, no presente texto pretendo explorar diferentes possibilidades de exposições digitais, argumentando que elas ou tendem a reforçar os espaços tradicionais ou constituem um novo espaço que atende a uma demanda distinta, mas não ameaça espaços museológicos. E, enquanto subscrevo a noção de Hooper Greenhill de que “não há um museu essencial”4, o que coloca a própria noção de uma exposição tradicional de museu em cheque — em que tipo de museu e em qual momento do tempo nos últimos 600 anos esse modelo seria encontrado? —, para o propósito desse texto vou considerar que exposição tradicional é uma que se encontra dentro de galerias de museus, que expõe de maneira organizada uma série de objetos que são presumidamente interessantes para um público e que foram organizadas por um curador profissional.

II. Novos sítios

Uma visita ao aplicativo Google Arts & Culture revela que suas cerca de 70 exposições temáticas virtuais podem ser divididas grosseiramente em três categorias: tours de história (ex: “Segunda Guerra Mundial”, “História & Cultura negra”), exposições colaborativas, que reúnem objetos temáticos de diferentes instituições (ex: “Faces de Frida”, “Made in Japan”) e, finalmente, as tours Street View, que focam em locais específicos (ex: “Os castelos de Loire”, “Maravilhas da Andalusia/Yangzhou/Indonesia/India”).

Esses projetos abrangem desde ambientes de realidade virtual até páginas com textos, vídeos e imagens selecionadas sobre determinado assunto. São todas tours, o que significa que são guiadas com caminhos predeterminados e que geralmente seguem a lógica de exposições tradicionais de museu, nas quais objetos são acompanhados por textos que os contextualizam aos visitantes, e são organizadas com base nos mesmos princípios de curadoria de um espaço tradicional. Nesse sentido, essas exposições digitais não substituem exposições tradicionais, mas sim reforçam sua lógica e modelo ao replicá-los em um meio diferente. Isto é, claro, quando os objetos que compõem a exposição são eles mesmos “tradicionais”, como quadros, esculturas, artefatos, fotografias e até mesmo instalações.

Tecnologias digitais, entretanto, abriram as portas não só para adaptações de exposições tradicionais, mas para todo tipo de mudanças nas mais variadas áreas de conhecimento. Mídias digitais produziram um tipo distinto de arte e de artefatos, que são originalmente existências digitais e, portanto, são feitos à medida para espaços digitais. Um dos grandes potenciais de exposições digitais, como pretendo exemplificar, é abrigar e representar conteúdo feito no próprio meio, da mesma maneira que a Capela Sistina comporta os afrescos de Michelangelo e os museus de arte moderna hospedam quadros de arte moderna.

III. Um espaço para um novo tipo de arte

Computer art, internet art, arte digital, art game, quadros digitais, glitch art, video game art e software art são algumas das categorias e subcategorias de práticas artísticas feitas com tecnologias digitais, cuja mera existência já força museus a se adaptarem, da mesma maneira que arte performática e participativa já haviam feito.

Notícias como a de que o Museu de Arte Moderna de Nova York adquiriu o primeiro set de emojis para sua coleção permanente, e exposições como a retrospectiva “Arte na Era da Internet, de 1989 até hoje” no Instituto de Arte Contemporânea de Boston (2018) são exemplos de como essas práticas artísticas e novos artefatos são legitimados e abrigados em museus.

Fonte: site oficial do MoMA

O artport do Whitney Museum é uma ilustração interessante de como museus podem se estender à espaços digitais. A iniciativa, lançada em 2002 e recentemente restaurada, é o portal do museu para arte de Internet e um espaço de galeria online para comissões de net art  e new media art. Originalmente lançado em 2002, Artport provê acesso a obras de arte originais especificamente comissionadas para o artport pelo Whitney; documentação de exposições de net art e new media art no Whitney; e de new media art na coleção do museu. 5

A terminologia usada para descrever esse espaço é tradicional, assim como a abordagem institucional, que cria uma exposição de museu para um novo tipo de objeto. Esse espaço, ainda que digital, ainda é um espaço de museu – aqui vale lembrar que no inglês e no português luso a palavra site ou sítio é usada para descrever ambos um espaço físico e um endereço digital – que abriga obras de arte comissionadas ou adquiridas através dos mesmos processos burocráticos requeridos para um objeto tradicional.

Se considerarmos que o que constitui uma exposição tradicional de museu é a sua estrutura de abrigar e organizar objetos com o objetivo de apresentá-los e contextualizá-los para um público visitante, mesmo considerando a mudança de local necessária para apresentar tais objetos, um espaço como o artport não constitui uma substituição, mas uma continuação de exposições tradicionais. Nessa perspectiva, a diferença fundamental seria a possibilidade de acesso remoto, embora seja possível argumentar que o website em questão ainda é um espaço material do museu, já que para acessar as obras é preciso estar no site (site, sítio) do museu. Se considerarmos, entretanto, que exposições tradicionais demandam redomas de vidro, objetos físicos e a presença física de várias pessoas e objetos em um mesmo local geográfico então sim, há uma distinção considerável entre esses dois tipos de exposição. De toda forma, o que esse exemplo busca mostrar é um museu se expandindo para ocupar espaços digitais de maneira semelhante à que abriria uma nova ala, de modo que sua presença física não se enfraquece no processo.

IV. Um espaço para um novo tipo de artefato

Rapidamente após a morte do artista Prince, um museu foi erguido em sua honra. O Prince Online Museum só tinha uma exposição permanente, uma linha do tempo da presença online oficial do artista. O ponto inicial era um CD-rom lançado em 1994, Prince Interativo, seguido por vinte anos de websites criados por Prince que eram relacionados à sua obra.

Como artefatos digitais, foram encontrados em diferentes estágios de preservação. Os projetos iniciais deixaram para trás apenas capturas de tela, fotografias dos sites originais, mas vários deles foram restaurados por Sam Jennings, o criador do museu que também era webmaster de um dos empreendimentos digitais de Prince.6 A linha do tempo da presença digital de Prince tem o efeito colateral de funcionar como uma lente através da qual podemos observar as transformações de recursos, estéticas e tendências de usabilidade do mundo digital. Pouco tempo após seu lançamento o museu ficou offline, enquanto “chega a um acordo com o patrimônio de Prince sobre como melhor preservar seu legado”, um lembrete de como problemas tradicionais permeiam espaços digitais de modos semelhantes a galerias de museu. Hoje, ele está novamente no ar.

Enquanto disquetes e CD-roms constituem artefatos “tradicionais”, seus conteúdos, semelhantes a websites e softwares, demandam um tipo específico de exposição, já que tratam-se de artefatos digitais. É importante notar que há aspectos técnicos de conservação (com o objetivo de arquivar e expôr) que podem afetá-los significativamente já que, com a replicação digital que os mantêm acessível, os formatos dos arquivos mudam e, com eles, suas impressões digitais. Para o público geral arrisco dizer que não há grande diference entre, digamos, jogar um art game em um computador moderno rodando um simulador de MS-DOS em vez de em um PC antigo rodando Windows 95 se o artefato sendo exposto é o jogo e não seu código ou computador originais; para conservadores profissionais, esse não é sempre o caso.

Mídias digitais existem há várias décadas e seu conteúdo crescente traça diversas histórias. Com as rápidas mudanças em tecnologia, o mundo digital também gera grande quantidade de artefatos, tais como redes sociais que desaparecem deixando para trás apenas capturas de tela e relatos pessoais de antigos usuários, blogs pessoais que, após serem deletados, podem ser revisitados apenas por capturas de tela em certos arquivos, ou até mesmo perfis de Facebook de usuários falecidos que não foram desativados.

Tais artefatos foram feitos para ser acessados através de computadores pessoais. Sua visitação e uso demanda uma estrutura distinta das vitrines de museu. Artefatos não-tradicionais, nesse sentido, demandam espaços não-tradicionais, mesmo que esses espaços sejam estruturados com base em galerias tradicionais, conforme argumentei acima. Eles não ameaçam, entretanto, a existência ou o paradigma de exposições tradicionais — não mais do que a arte participativa da década de 1960 já o fez, ao diminuir as então distâncias tradicionais entre visitantes e objetos em exposição; não mais do que co-curadorias indígenas fazem hoje em dia.

E, da mesma maneira que uma performance de Chris Burden ou uma obra interativa de Félix González-Torres não mudam o modo como um museu apresenta um quadro do Caravaggio, objetos digitais não afetam como se expõem cestarias Maori ou cerâmicas Karajá. O que afeta essas lógicas de exposição são as demandas por representatividade e por divisão de autoridade curatorial sobre exposições. Aqui, também é relevante lembrar que à medida que povos indígenas do mundo todo passam a popular o mundo digital, coleções etnográficas também necessitam se adaptar a esses novos tipos de artefatos. Falaremos mais sobre isso daqui a pouco.

Alice Noujaim Teixeira, janeiro 201


V. Bibliografia

  • After Dark. Accessed December 26, 2016. http://www.afterdark.io/
  • Ahmed, Tufayel. “Online Prince Museum archiving singer’s old websites launches.” Newsweek. May 7 2016. http://www.newsweek.com/there-now-prince-online-museum-archiving-his-old-websites-477703.
  • “Artport.”Whitney Museum of American Art. Accessed December 26, 2016. http://whitney.org/Exhibitions/Artport.
  • Clifford, James. “Objects and Selves–An Afterword.” In Objects and Others, edited by George Stocking Jr., 236-246. Madison: University of Wisconsin Press, 1985.
  • “DMA Friends.” MW2014: Museums and the Web 2014. Accessed December 26 2016. http://mw2014.museumsandtheweb.com/bow/dma-friends/.
  • Eckardt, Stephanie. “LED Forests! Underwear Chandeliers! And More Instagrammable Imaginations From Pipilotti Rist.” W. October 29 2016. http://www.wmagazine.com/story/led-forests-underwear-chandeliers-and-more-instagrammable-imaginations-from-pipilotti-rist.
  • Hooper-Greenhill, Eilean. Museums and the Shaping of Knowledge. London: Routledge, 1992.
  • Judkis, Maura. “The Renwick is suddenly Instagram famous. But what about the art?.” The Washington Post. January 7 2016. https://www.washingtonpost.com/lifestyle/style/the-renwick-is-suddenly-instagram-famous-but-what-about-the-art/2016/01/07/07fbc6fa-b314-11e5-a76a-0b5145e8679a_story.html.
  • National Endowment for the Arts,. 2016. Audience 2.0: How Technology Influences Arts Participation. National Endowment for the Arts. https://www.arts.gov/sites/default/files/New-Media-Report.pdf.
  • New Museum’s Facebook page. Accessed December 26, 2016. https://www.facebook.com/newmuseum/.
  • Phillips, Ruth. “Replacing Objects: Historical Practices for the Second Museum Age.” Canadian Historical Review (2005): 83-110.
  • Prince Online Museum. Accessed December 26 2016. http://princeonlinemuseum.com/

VI. Notas

1. Ruth Phillips, “Replacing Objects: Historical Practices for the Second Museum Age” Canadian Historical Review (2005): 83.

2. William Sturtevant, ‘Does anthropology need museums?’ Proceedings of the Biological Society of Washington 82 (1969): 619–50. apud Ruth Phillips, “Replacing Objects: Historical Practices for the Second Museum Age” Canadian Historical Review (2005): 83

3. Alguns exemplos recentes são o Museu do Amanhã (Rio de Janeiro), a Cidade de Artes e Ciências (Espanha) e o Museu de Arte de Milwaukee (EUA) de Santiago Calatrava e o Museu do Curdistão (Iraque) e Museu Industrial Moderno Zhang Zhidong (China) do Studio Libeskind. Renzo Piano?

4. Eilean Hooper-Greenhill, Museums and the Shaping of Knowledge (London: Routledge, 1992), 191

5. “Artport,” Whitney Museum of American Art, accessed December 26, 2016, http://whitney.org/Exhibitions/Artport.

6. Tufayel Ahmed, “Online Prince Museum archiving singer’s old websites launches,” Newsweek, May 7 2016, http://www.newsweek.com/there-now-prince-online-museum-archiving-his-old-websites-477703.

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