Feminist Film Theory é um artigo escrito pela professora doutora holandesa, Anneke Smelik. Atualmente ela leciona Cultura Visual na Universidade Radboud de Nijmegen, na Holanda. O artigo foi publicado no livro da British Film Institute, The Cinema Book, em 2007, dentro da revisão da terceira edição.
O artigo foi traduzido e dividido em três partes para a publicação na revista USINA. Sendo a Parte I (A Narrativa Clássica e o Contra-cinema Feminista): Introdução, Narrativa clássica, O contra-cinema feminista. Parte II (Os Pontos de Vista Femininos): A espectadora mulher, O disfarce feminino, O olhar feminino, A subjetividade feminina, O desejo feminino. Parte III: (Teorias das Minorias): A diferença sexual e suas insatisfações, Crítica gay e lésbica, Teoria feminista e raça, Sobre masculinidade, Teoria Queer, Conclusão.
Parte I: A Narrativa Clássica e o Contra-cinema Feminista
O feminismo é um movimento social que causou um impacto enorme na teoria e na crítica de cinema. O cinema é considerado pelas feministas como uma prática cultural que representa mitos sobre mulheres e a feminilidade, assim como sobre homens e a masculinidade. As questões de representação e o ato de assistir são centrais para a teoria e a crítica de cinema feminista. A princípio, a crítica feminista era direcionada para os estereótipos da mulher, majoritariamente em filmes hollywoodianos1. Essa imagem fixada e constantemente repetida de mulheres era considerada distorções inaceitáveis que teriam um impacto negativo sobre o público feminino. Houve, então, a necessidade de uma insurgência de imagens positivas de mulheres no cinema. Percebeu-se logo, no entanto, que imagens positivas não eram o suficiente para transformar a estrutura subjacente no cinema. Críticas feministas tentaram entender a onipresença do patriarcado com a ajuda de teorias estruturalistas como a semiótica e a psicanálise. Esses diálogos teóricos se mostraram muito produtivos em analisar as formas que as diferenças de gênero são estruturadas nas narrativas clássicas. Durante uma década, a psicanálise foi um paradigma dominante nas teorias de cinema feministas. Recentemente, houve uma mudança desta forma binária de enxergar a questão para outras múltiplas perspectivas, identidades e possíveis espectadores. Essa abertura resultou num incrível aumento de interesse por questões de etnia, masculinidade e sexualidades híbridas.
Narrativa clássica
Claire Johnston foi uma das primeiras críticas feministas a fornecer uma crítica bem fundamentada sobre estereótipos a partir de um ponto de vista semiótico. Ela apresentou uma análise de como o cinema clássico construiu uma imagem ideal da mulher. Extraindo da noção de mito de Roland Barthes, Johnston investigou o mito da “mulher” no cinema clássico. O símbolo “mulher” pode ser analisado como uma estrutura, um código ou uma convenção. Esse símbolo representa o significado do ideal de “mulher” para o homem. Esse símbolo não diz nada sobre a mulher2: as mulheres são pejorativamente representadas como “não-homens”. A “mulher como mulher” está ausente do roteiro do filme3.
A mudança teórica mais importante foi a de entender o cinema como um reflexo da realidade, para entender o cinema como a construção de uma realidade parcial e construída. O cinema clássico nunca mostra seus meios de produção e, por isso, se caracteriza por esconder sua construção ideológica. Dessa maneira, a narrativa clássica pode apresentar a imagem construída da “mulher” como natural, realista e atrativa. Isto é o ilusionismo do cinema.
Em seu artigo revolucionário, Visual Pleasure and Narrative Cinema, Laura Mulvey usa a psicanálise para entender o fascínio pelo cinema hollywoodiano. Esse fascínio pode ser explicado através da noção de escopofilia (o gosto por olhar), o que, de acordo com Freud, é um impulso/ímpeto/necessidade fundamental. Originalmente sexual, como todos os ímpetos, der Schautrieb é o que mantém o espectador com os olhos grudados na tela. O cinema clássico estimula o desejo de olhar ao integrar estruturas do voyeurismo e narcisismo na narrativa e na imagem. O prazer visual voyeurístico é produzido ao olhar para o outro (personagem, figura, situação) como nosso objeto, enquanto o prazer visual narcisista é derivado da auto-identificação com a (figura da) imagem.
Mulvey analisa a escopofilia no cinema clássico como uma estrutura que funciona no eixo da atividade e passividade. Essa oposição binária é a de gênero. A estrutura narrativa do cinema tradicional estabelece o personagem masculino como ativo e poderoso, ele é o agente cuja ação dramática gira em torno, e o aspecto se organiza. A personagem feminina é passiva e sem poder: ela é o objeto de desejo do(s) personagem(s) masculino(s). Nesses termos, o cinema aperfeiçoou uma maquinaria visual adequada ao desejo masculino tal como o já estruturado e canonizado na tradição da arte e estética ocidental.
Mulvey ataca o prazer visual narcisista com os conceitos da formação do ego e o estágio do espelho de Lacan. A maneira com que a criança deriva prazer através da identificação com uma imagem perfeitamente refletida e forma seu ideal de ego baseado nessa imagem ideal é análoga à maneira com que o espectador de um filme deriva o prazer narcisista ao se identificar com a imagem perfeita de uma pessoa na tela. Nos dois casos, no entanto, durante o estágio do espelho e no cinema, as identificações não são formas lúcidas de autoconhecimento ou de conscientização. Elas são mais baseados no que Jacques Lacan chama de méconnaissance (não identificação), o que significa que o espectador está vedado a entender por conta das forças narcisistas que o estruturam. A formação do ego é estruturalmente caracterizada por funções imaginárias. E nisso o cinema também se relaciona. Por volta da mesma época que Christian Metz trabalhou com essa analogia em seus ensaios sobre psicanálise e cinema, Mulvey afirmou que as identificações cinematográficas foram estruturadas juntamente com a diferença sexual. A representação do “mais perfeito, mais completo, mais poderoso ego ideal”4 do herói masculino se posiciona totalmente em oposição à distorcida imagem do personagem feminino passivo e impotente. Então, o espectador logo se identifica com o personagem masculino mais do que com o feminino.
Existem então dois aspectos do prazer visual que são negociados através das diferenças sexuais: o voyeurismo-escopofílico e a identificação narcisista. Ambas estruturas formativas dependem de seus significados sobre o poder controlador do personagem masculino assim como sobre a representação objetificada do personagem feminino. Além disso, de acordo com Mulvey, em termos psicanalíticos, a imagem da “mulher” é fundamentalmente ambígua quando combina atração e sedução com a evocação da castração da ansiedade. Visto que sua aparência também lembra ao sujeito masculino à ausência de pênis, o personagem feminino é uma fonte de medos muito mais profundos. O cinema clássico soluciona a ameaça de castração de duas formas: dentro na estrutura narrativa, ou através do fetichismo. Para aliviar a ameaça de castração na primeira forma, o personagem feminino tem que se tornar culpado de alguma coisa. Os filmes de Alfred Hitchcok são um bom exemplo desse tipo de narrativa5. A “culpa” da mulher vai ser selada tanto por punição ou por salvação, e a trama do filme é então resolvida através das duas únicas possibilidades de final tradicional: ou ela morre (como em Psycho, 1960), ou se casa (como em Marnie, 1964). Sobre isso, Mulvey diz de maneira provocadora que uma narrativa sempre demanda sadismo.
No caso do fetichismo, o cinema clássico restabelece e desloca a falta de pênis na forma de fetiche, ou melhor, um objeto brilhante. Mulvey se refere nesse exemplo ao fetichismo de Josef von Sternberg com Marlene Dietrich. Marilyn Monroe é outro exemplo de uma celebridade que carrega o estigma de fetiche. Fetichisar a mulher tira a atenção da noção de falta de pênis feminino, e transforma sua imagem de figura perigosa para um objeto de beleza impecável. O fetichismo no cinema confirma a correção da figura feminina, portanto falha ao representar a “mulher” fora do contexto da norma fálica.
A noção do “olhar masculino” se tornou uma forma sucinta para a análise dos mecanismos complexos no cinema que envolvem estruturas como o voyeurismo, o narcisismo e o fetichismo. Esses conceitos ajudam a entender como o cinema hollywoodiano é feito sob medida para os desejos masculinos. Visto que as estruturas do cinema hollywoodiano são analisadas fundamentalmente como patriarcais, as primeiras feministas declararam que um cinema feminino deveria rejeitar a narrativa tradicional e as técnicas cinematográficas, e dedicar-se a práticas experimentais: dessa maneira, o cinema feminino deveria ser um contra-cinema.
O contra-cinema feminista
Como o contra-cinema feminista deve ser? Para Mulvey, o cinema feminista deveria ser uma prática de cinema avant-garde que “daria liberdade à investigação cinematográfica dentro de sua materialidade de espaço e tempo e, também, à investigação da audiência da dialética e do desprendimento passional”6. A destruição do prazer visual do espectador causada pelo contra-cinema não era um problema para as mulheres; de acordo com Mulvey, a perspectiva da decadência seria vista apenas com um “lamento sentimental” pelas mulheres7.
O contra-cinema feminista teve como inspiração o movimento avant-garde no cinema e teatro, como as técnicas de montagem de Sergei Eisenstein, a noção de Verfremdung (distanciamento) de Bertold Brecht e a estética modernista de Jean-Luc Godard. Tal como fazia parte do cinema político dos anos setenta. Os melhores exemplos do contra-cinema feminista são Jean Dielman 23, Quai Du Commerce, 1080 Bruxeles ∇ (1975), de Chantal Akerman, Riddles of the Sphinx (1977), de Laura Mulvey e Peter Wollen, e Thriller (1979), de Sally Potter. É interessante notar que os filmes radicais de Marguerite Duras atraíram muito menos atenção das críticas feministas anglófonas. Lives of Performers (1972), Film about a Woman Who… (1974) e Sigmund Freud’s Dora (1979), de Yvonne Rainer, são importantes exemplos de cinema experimental Americano.
Como o contra-cinema feminista evita as convenções do cinema clássico e como ele acomoda o ponto de vista feminino? No curta-metragem experimental, Thriller, por exemplo, isso é alcançado através da desconstrução do clássico melodrama de Puccini, a ópera La Bohème (1895). O curta divide o personagem feminino em dois: Mimi I, que é colocada do ponto de vista de fora da narrativa na qual ela é a heroína Mimi II. A Mimi I investiga como ela é construída como um objeto na narrativa melodramática. De acordo com Ann Kaplan8, a investigação é tanto a partir da psicanálise tanto quanto a partir da ótica materialista-marxista. Na análise psicanalítica entende como o sujeito feminino é excluído da linguagem masculina e da narrativa clássica. A única posição que ela pode ocupar é a de fazer perguntas: “Eu morri? Fui assassinada? O que isso significa?”. Na análise materialista-marxista, Mimi I aprende a investigar o papel da Mimi II como costureira e mãe. Assim como no segundo filme de Potter, The Gold Diggers (1983), é uma mulher negra com um sotaque francês carregado (Colette Lafont) que questiona a imagem da condição patriarcal das mulheres brancas. Assim, em ambos os filmes é a voz “estrangeira” feminina que discursa sobre teoria e crítica.
Thriller comunica esses discursos teóricos tanto visualmente quanto acusticamente. A trilha sonora é dominada pela voz feminina, assim como uma gargalhada que se repete, um grito insistente e o som de um batimento cardíaco. Esses elementos são típicos nos gêneros thriller e horror, embora a narrativa não tente causar nenhum tipo de suspense. Pelo contrário, ela foca a atenção do espectador nos enigmas que rodeiam o sujeito feminino no cinema clássico. Thriller viola deliberadamente códigos realistas convencionais. A história melodramática é parcialmente contada em tomadas que são imagens de fotografias de uma performance teatral, e parcialmente por cenas reconstruídas onde os atores usam movimentos super estilizados. Outro recurso visual é o uso de espelhos. Para Kaplan9, a peça com suas tomadas de repetidos e chocantes espelhos ilustram o processo mental que o estágio de espelho de Lacan envolve psicanaliticamente. Por exemplo, quando Mimi I se reconhece como um objeto, sua sombra é lançada na tela. Mimi I é então mostrada de costas para o espelho, encarando a câmera. Essa imagem é repetida por uma série de espelhos colocados atrás dela (ao invés de refletir “corretamente” a parte de trás de sua cabeça). Essa complexa cena gesticula o reconhecimento da subjetividade divisão de Mimi I. A investigação faz as mulheres entenderem que elas não são divididas nelas mesmas, e nem que elas deveriam ser divididas narrativamente. O curta termina simbolicamente, com as duas Mimis se abraçando.
O contra-cinema feminista não pertence apenas ao cinema de ficção, mas também ao gênero documental. Os problemas de encontrar uma forma e estilo apropriados era talvez ainda mais grave para o cinema documental, porque tradicionalmente o gênero usa o ilusionismo e realismo para capturar a “verdade” ou a “realidade”. Para muitas cineastas feministas nos anos setenta, esse idealismo era inaceitável. Poderia não incluir a auto-reflexão, um dos pontos primordiais da prática de cinema feminista. O documentário feminista deveria manufaturar e construir a “verdade” da opressão das mulheres, e não meramente refleti-la10. No entanto, outras vozes também foram ouvidas. Por que muitos documentários esteticamente tradicionais foram importantes documentos históricos para o movimento das mulheres, esse tipo de formalismo feminista foi questionado. Alexandra Juhasz11 criticou esse tipo de ortodoxia, que prescrevia técnicas anti-ilusionistas enfraquecendo a identificação. Ela apontou o paradoxo que o sujeito unido, que era representado nos primeiros documentários feministas, apresentaram ao espectador feminista a realidade com uma “reinterpretação da subjetividade feminina, radical, nova e politizada, que mobilizou um enorme número de mulheres a tomarem iniciativas pela primeira vez12”.
Nós presenciamos aqui uma contradição teórica do feminismo: ao mesmo tempo em que as feministas precisam desconstruir a imagem patriarcal e as representações da “mulher”, elas precisam estabelecer historicamente sua subjetividade feminina. Ou melhor, elas têm que descobrir e redefinir o que significa ser mulher. Um formalismo persistente de uma abordagem unilateral pode ser demais para essa complexa empreitada que é (re)construir o sujeito feminino.
O contra-cinema representa apenas uma pequena fração dos filmes produzidos por mulheres desde o meio dos anos setenta. No entanto, esses filmes experimentais foram demasiadamente louvados por conta dos seus poderes subversivos enquanto mulheres cineastas realistas foram demasiadamente criticadas por conta de seu ilusionismo13. A suspeita de choque atirado nos filmes realistas e narrativos resultou ou numa concentração de esforços críticos ao cinema clássico hollywoodiano ou numa grande aclamação ao cinema experimental feminino entre os poucos que o viram. Isso resultou numa rejeição paradoxal ao cinema popular contemporâneo feminino; uma falta de atenção acadêmica que continuou ao longo dos anos oitenta e até os noventa14. Teresa de Lauretis15 estava entre as primeiras a dizer que o cinema feminista não deveria destruir a narrativa e o prazer visual, mas deveria ser “narrativo e edipiano com uma vingança”16. De acordo com ela, o cinema feminista nos anos oitenta deveria definir “todos os pontos de identificação (com personagem, imagem e câmera) como mulher, feminino, ou feminista”17.
Referências citadas:
1. Haskell, M., From Reverence to Rape. The Treatment of Women in the Movies. Chicago and London: The University of Chicago Press, 1987 | Rosen, M., Popcorn Venus. Women, Movies and the American Dream. New York: Avon, 1973
2, 3, 10. Johnston, Claire, ‘Women’s Cinema as Counter-Cinema’, Notes on Women’s Cinema (1973)
4, 6, 7. Mulvey, Laura, ‘Visual Pleasure and Narrative Cinema’ (1975),Visual And Other Pleasures. London: Macmillan, 1989
5. Modleski, Tania, The Women Who Knew Too Much. Hitchcock and Feminist Theory. New York and London: Methuen, 1988
8 e 9. Kaplan, E. Ann, Women and Film. Both Sides of the Camera. New York and London: Methuen, 1983
11 e 12. Juhasz, Alexandra, ‘They Said We Were Trying to Show Reality – All I Want is to Show My Video’. The Politics of the Realist, Feminist Documentary, in Screen 35: 2, 1994: 171-190.
13. Kuhn, Annette, Women’s Pictures. Feminism and Cinema. London etc: Routledge and Kegan Paul, (1982) | Kaplan, E. Ann, Women and Film. Both Sides of the Camera. New York and London: Methuen, 1983
14. Humm, Maggie, Feminism and Film. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1997 | Smelik, Anneke, And the Mirror Cracked. Feminist Cinema and Film Theory. London: Macmillan, 1998
15, 16, 17. Lauretis, Teresa de, Alice Doesn’t. Feminism. Semiotics. Cinema. Bloomington: Indiana University Press, 1984 | Lauretis, Teresa de, Technologies of Gender. Essays on Theory, Film, and Fiction. Bloomington: Indiana University Press, 1987