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Escuta Profunda (Deep Listening) – Parte 1

Deep Listening

2003

dezembro, 2022

Foto de Hiroko Masuike (New York Times)

Nota dos tradutores

Pauline Oliveros (1932-2016) foi uma acordeonista e compositora norte-americana associada aos movimentos da vanguarda da música eletrônica e experimental.  Um de seus conceitos mais importantes é o de “Deep Listening”, ou Escuta Profunda, como traduzimos aqui: a atitude de uma escuta atenciosa e paciente, aberta para a natureza sonora da existência a partir de um estado profundo de consciência. Oliveros procurou desenvolver essa linguagem a partir de diversos exercícios performáticos e meditativos.

Munida de seu acordeão, a compositora convidou o trombonista Stuart Dempster e o artista sonoro Panaiotis para colocar em prática suas ideias. Os três foram a uma cisterna subterrânea, que estava vazia por algum motivo e onde o som reverberava por mais de 40 segundos, e começaram a improvisar como que conversando com o som que tomava conta do lugar. O registro foi gravado e lançado no álbum Deep Listening, de 1989.

No início dos anos 2000, Oliveros publica uma espécie de guia, compilando os exercícios de Escuta Profunda que desenvolveu ao longo de décadas: Deep Listening: A Composer’s Sound Practice (Escuta Profunda: uma prática sonora de um compositor). Dele, tiramos alguns trechos para traduzir. Dividimos em duas partes: a primeira, de caráter introdutório, é o prefácio principal do livro. Nele, Oliveros discorre sobre sua trajetória e relação com a Escuta Profunda.  A segunda parte da tradução é composta de uma explicação mais detalhada do método e alguns exercícios propostos pela compositora. Você também pode encontrar alguns livros e outras informações em seu site oficial.

 

Prefácio

"De uma maneira ou de outra, a primeira preocupação de toda música é quebrar a indiferença de ouvir, a calosidade da sensibilidade, para criar aquele momento de solução que chamamos poesia, nossa rigidez dissolvida quando nos ocorre renascer – em um sentido, ouvir pela primeira vez.”

Lucia Dlugoszewski

Escuta Profunda (Deep Listening) é uma prática em desenvolvimento que vem da minha experiência como compositora, intérprete, improvisadora e parte da audiência. Meu ensino em música foi, geralmente, centrado em técnicas do como interpretar e apreciar música do passado. Esse é o tipo de educação usual para a maior parte dos estudantes de música.  O encorajamento para compor ou improvisar e a apreciação da nova música era quase inexistente nos meus primeiros anos de estudo musical. A maior parte dos estudantes não entendem que tem potencial criativo tanto para criar a própria música quanto para aprender a interpretar música tradicional.

Eu estava sempre fascinada em escutar o meu ambiente. Desde a minha infância fui uma escutadora. Cresci em um tempo em que existia uma rica e densa paisagem sonora de insetos, pássaros e animais em Houston, Texas, nos anos 1930. Essa paisagem sonora era preenchida com gorjeios, o som áspero dos grilos, sapos e melódicos rouxinóis. Sons do ambiente natural ainda envolvem minha atenção.

Agora, no século XXI, essa paisagem sonora é consideravelmente diluída pelo asfalto, pavimentos de concreto e a construção de edifícios. Houston ainda tem cigarras em corredores estereofônicos enquanto você anda ou dirige pelas ruas, mas os sapos em sua maioria desapareceram, deixando seus sônicos nichos vazios – exceto pelos sons de motores de combustão. Uma paisagem sonora moderna e tecnológica emergiu.

No ensino médio me tornei familiarizada com a escuta interior – um estado alterado de consciência cheio de sons que envolvem minha atenção e, eventualmente, me fizeram querer compor. Com 16 anos, anunciei que queria ser compositora. Amava os sons e ser compositora era minha paixão.  Embora eu não soubesse como transmitir meus sons interiores em formas exteriores, sabia que compor era meu destino.

Minha educação em instrumento incluía acordeão e trompa. Em meu acordeão interpretava um repertório diverso, incluindo música clássica, barroca, popular e étnica.  Tocava a trompa em bandas e orquestras – até em uma grande banda de baile!

Continuava a compor, e aos dezenove anos minhas tentativas foram bem-sucedidas quando pude escrever uma peça para o piano em duas partes. Escutar e escrever a notação era intenso e uma luta para mim. Fiquei mais e mais absorta em compor.

Robert Erickson, meu mentor de composição, me encorajou a improvisar minha música. Comecei a improvisar e a gravar os resultados se estivesse emperrada em escrever alguma peça. Eventualmente, improvisação se tornou um caminho para minhas ideias fluírem.

Em 1960, nove anos depois de eu ter composto minha primeira peça, venci o prêmio da Pacifica Foundantion pela minha “Variations for Sextet (Variações para Sexteto). Alfred Frankestein, o crítico musical do San Francisco Chronicle, defendeu meu trabalho e minha carreira como compositora estava lançada.

 

Durante os anos 1960 fui absorvida em fazer música eletrônica. Com esse meio comecei a encontrar os sons que me interessavam e que eram mais similares aos sons da minha escuta interior. Duas de minhas peças desse periodo – I of IV e Bye, Bye Butterfly – foram lançadas em gravações e tornaram-se clássicas do período. Bye Bye Butterfly foi nomeada a melhor peça dos anos 1960 por John Rockwell do New York Times.

A validação dos pares e críticos, além do pequeno prêmio em dinheiro da Pacifica Foundation foram encorajadores e apreciados por mim. Já não estava sozinha com minha paixão de compor, e continuei. Por isso, sinto que é tão importante educar, nutrir e encorajar compositores jovens hoje. Também gosto de encorajar pessoas sem treinamento musical a se envolverem em improvisação para que experienciam fazer a própria música.

Comecei a lecionar música eletrônica na University of California San Diego (UCSD) em 1967. Eu era uma das poucas pessoas que podiam ensinar música eletrônica – um campo ainda relativamente novo no currículo das instituições educacionais dos Estados Unidos. Estabeleci o programa de música eletrônica para graduação na UCSD.

Durante minha gestão na UCSD, lecionei A Natureza da Música – um curso extenso voltado a estudantes em geral (um curso originalmente desenvolvido por meu colega Wilbur Ogden). Era uma aula prática. Cada aluno devia compor e improvisar, embora a maioria não tivesse treinamento musical. Era nossa convicção que o prazer se desenvolveria através da participação na produção musical.

Eu compus Meditações Sônicas – um trabalho que podia ser realizado por pessoas sem treinamento musical. Meditações Sônicas é baseado em padrões da atenção. Em outras palavras, essas melodias são formas de ouvir e responder. Meditações Sônicas é a base da Escuta Profunda.

Eu percebi que muitos músicos não ouviam o que estavam tocando!  Havia uma ótima coordenação motora e ocular ao ler a música, mas escutar não era necessariamente parte da performance. O músico estava, obviamente, escutando, mas ouvindo tudo por cima ou a atenção ao contínuo espaço/tempo (global) não estava acontecendo.

Havia desconexão com o ambiente que incluía a audiência enquanto a música tocava. Observando esses fenômenos me propiciou investigar os processos e estratégias da atenção humana. Comecei comigo mesma. Comecei a cantar melodias longas e a ouvir, observar como essas melodias me afetavam mentalmente e fisicamente. Percebi que podia alterar meu estado mental ao concentrar minha atenção a uma tonalidade. Percebi que podia sentir meu corpo respondendo com relaxamento ou tensão. A prática prolongada trouxe à tona um elevado estado de consciência que me deu a sensação de bem-estar.

Em 1967, escrevi um artigo para a Source Magazine: Music of the Avant-gard, chamado “Algumas observações sonoras”. O artigo descreve a jornada de escutar o que estava acontecendo em minha volta e memórias e ideias que foram desencadeadas por essa escuta.

Logo eu estava envolvendo meus estudantes em exercícios desenhados para trazer a atenção deles à escuta pela observação e auscultação*. Alguns desses resultados podem ser encontrados em Software for People: Collected Essays 1962-1980.

Eu sento silenciosamente com meu despertador, fecho meus olhos e abro meus ouvidos. Nessa hora a cortina sobe e a performance começa. Meus arredores parecem ganhar vida, cada som revelando a personalidade de seu criador. Vários sons se fixaram em meus ouvidos como “basso ostinato”: o ronco contínuo do maquinário industrial distante e o som raso da água chapinhando em uma fonte próxima. Esse fundo sonoro é interrompido pelo motivo perfurante de um pássaro. Um sopro repentino de ar varre o deck. As páginas do meu livro respondem com sons estalados. A porta na entrada range e geme no mesmo tom como uma cadeira de balanço antiga e fecha com um baque. Posso ouvir a cortina de uma janela aberta roçando contra as paredes grossas de gesso, enquanto o puxador marca em síncope contra a vidraça.

Enquanto ainda estava na UCSD, iniciei a pesquisa no Project for Music Experiment. No inverno de 1972, o Meditation Project se reunia cinco dias por semana, durante nove semanas, quatro horas por dia com vinte participantes. Estudamos as práticas da mente, do corpo e dos sonhos de uma variedade de convidados e executamos peças das Meditações Sônicas diariamente. Este projeto de pesquisa semeou a prática da Escuta Profunda.

Deixei a UCSD em 1981 e me mudei para o norte do estado de Nova York. Fui atraída pela rica variedade de atividades musicais no Vale do Hudson e pela diversidade de práticas tradicionais de meditação disponíveis. Estudei Zen, Budismo Tibetano, Yoga e meditação Taoísta com professores renomados. Esses estudos aprofundaram minha compreensão e apreciação pela meditação e confirmaram minha própria prática como compositor e improvisador.

Conduzi meu primeiro Retiro de Escuta Profunda em 1991, no Rose Mountain Retreat Center em Las Vegas, Novo México, a convite de Andy e Heloise Gold. Este retiro aconteceu em uma linda área montanhosa a 2.500 metros acima do nível do mar. O Centro está em um local relativamente preservado, com pouca intrusão de som tecnológico, exceto alguns aviões ocasionais. Não há tráfego local. O local foi inspirador para ouvir.

Eu me comprometi com dez anos de retiros em Rose Mountain e desenvolvi as práticas que são descritas neste livro. Cada retiro tem a duração de uma semana e propõe ouvir vinte e quatro horas por dia. Isso inclui ouvir durante o sonho e também durante a vigília. Um período de silêncio ou tempo não-verbal é incluído a cada dia.

Em Rose Mountain, dando aula comigo, estavam Heloise Gold (treinando movimento criativo, T’ai Chi e Chi Kung), e Ione (escutando através dos sonhos). Os retiros de Escuta Profunda também foram realizados por cinco anos na Suiça, um no Canadá e um no Estado de Washington. Como o número de participantes retornando todo ano aumentavam, eu respondi um pedido por um nível avançado criando o programa de Certificado de Três Anos, em 1995. Os primeiros Certificados foram concedidos a seis pessoas em 1998. O Certificado qualifica a pessoa a realizar uma oficina de Escuta Profunda.

As oficinas de Escuta Profunda são realizadas ao redor do mundo. Elas introduzem um pouco do material do retiro da Escuta Profunda, mas são mais limitadas em duração e escopo. As oficinas podem durar de uma hora a um par de dias. Os retiros de verão são programados em vários lugares.

Minhas apresentações como improvisadora são especialmente informadas pela minha prática de Escuta Profunda. Eu pratico o que prego. Quando chego ao palco, estou escutando e expandindo para todo o espaço/tempo do som perceptível.  Não tenho ideias pré-concebidas. O que percebo como o continuum da energia e do som toma minha atenção e informa o que toco. O que eu toco é conscientemente reconhecimento por mim pouquíssimo tempo depois de eu ter tocado qualquer som.

Esse estado alterado de consciência na apresentação é estimulante e inspirador. A música vem através disso como se eu não tivesse nada mais que fazer além de permitir que ela emerja por meio do meu instrumento e voz. É ainda mais excitante de praticar, quer eu esteja me apresentando ou apenas vivendo minha vida cotidiana.

Estou satisfeita de estar ensinando a Escuta Profunda no Rensselaer Polytechnic Institute, em Troy, New York – do iniciante aos níveis avançados. E também no Mills College, em Oakland, California, via presença virtual on-line com videochat e ocasionalmente visitas pessoais.

Também estou satisfeita em incluir ensaios e notas nesse livro de estudantes relativos a sua prática de Escuta Profunda.

 

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