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Conversa nº6 – Gabriela Cordovez

abril, 2020

encontrei com a gab ali perto do ccbb, em abril de 2018, no mesmo lugar que um tempo antes tinha encontrado o jandir jr. sentamos num banco perto do que um dia foi a pira olímpica e, com calma, conversamos… conheci a gab no início da faculdade, ali no largo de são francisco. ela andava dançando pelos corredores do IFCS. não uma dança óbvia e nem espetacular, muito menos consciente (no seu sentido mais técnico): uma dança que era um andar, um passo atrás do outro – de quem caminha assim mesmo, dançando. há exatos dois anos atrás, quando fizemos essa entrevista, o cenário já se apresentava apocalíptico – mas nem de perto o que enfrentamos agora. com isso, aprendi o seguinte: sempre dá pra ficar pior, mas não necessariamente tem que ser pior. não sei, um pouco de filosofia barata. pra dar um gosto. voltando: nessa época, a gab estava preparando seu primeiro espetáculo solo – depois de ter participado de muitas performances em companhias ou acompanhada de outras artistas. talvez por esse motivo, a conversa girou muito em torno dos processos de criação e das posições que assumimos, enquanto artistas, quando nos expomos. formada em ciências sociais, ela se equilibra na tensão entre corpo e espírito que tanto tentou ser resolvida (como se precisasse) ao longo dos últimos séculos (milênios?). em tempos como esses, em que precisamos nos manter sãos acima de tudo, em que a cabeça dói de tantos estímulos, a dança parece ser uma das vias para a liberdade e um dos refúgios da criação – impulsionando, inclusive, a força própria do pensamento. “sair da matéria através dela”, como gab bem disse aqui nessa conversa.

esta entrevista foi feita ao som de:

Antonio Carlos Jobim – Stone Flower (1970)
Elomar – Das barrancas do rio gavião (1972)
Michael Jackson – Bad (1987)
Pink Floyd – Meddle (1971)
Carlos Gomes – Sonata para cordas (Gravada por Quarteto Bessler-Reis em 1988)
Maria Beraldo – Cavala (2018)
John Abercrombie, Jan Hammer, Jack DeJohnette – Timeless (1975)
The Beatles – Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band (1967)
Pagode Jazz Sardinha’s Club – Pagode Jazz Sardinha’s Club (2006)
Los Hermanos – Ventura (2003)

Gabriel Gorini: Tava pensando muito em como você não tá começando mas ainda tá muito jovem. Já participou de espetáculos, de companhias, já tem uma certa experiência com a parada…

Gabriela Cordovez: Tenho algum tempo dançando como bailarina em companhias ou em projetos de pessoas que já tem uma bagagem, uma história construída, e foi a escolha de uns dois anos pra cá começar a querer fazer as minhas coisas. Eu tive muita autonomia nos trabalhos em termos de criação, mas sempre fiquei com vontade de…. Ah, tinha as minhas inquietações, as minhas perguntas. E pra esse campo, de começar a fazer as minhas coisas, sou completamente nova. Quer dizer, dançando profissionalmente já tem algum tempo, mas me lançar independente é quase como começar, não do zero, mas desse lugar de uma coisa que nunca fiz.

G: Como é que foi essa decisão de dançar?

Gab: Acho que não foi escolha. Dançar eu sempre dancei, desde pequena. Sempre levei como uma coisa que fazia. Quando não tava estudando tava dançando, nunca me questionei muito sobre isso. Chegou na época de escolher alguma coisa pra fazer no vestibular e nem passou pela minha cabeça escolher dança.  Tinha saído da academia (de dança) e ia começar a fazer ciências sociais. Quando percebi que desse jeito não ia mais dançar… Então foi pela falta que percebi que queria dançar, foi por me imaginar não dançando, sabe? Aí falei, “não vai dar, preciso dançar” e escolhi a Angel.  Aí sim é uma escolha, de querer fazer isso da vida. Mas pra mim tem mais a ver com o fato de que não dá pra não fazer isso. Todas as vezes que achei que não ia mais dançar não me fez bem, não conseguia me comunicar do jeito que eu queria e, sei lá, sensorialmente, fisicamente, me fazia muita falta. Então tem uma coisa meio de “não consigo fazer de outro jeito”, sabe?

G: É um bom percurso o que você tem, né? Começou a trabalhar com pessoas fodas, participou de espetáculos bem radicais. Mordedores, por exemplo. Como você pensa isso, de ter dançado com companhias bem legais. Quer dizer, de ainda bem jovem trabalhar com dança contemporânea, uma coisa que não é muito comum. E a partir de determinado momento você sente essa segurança de se lançar…

Gab: Cara,  não acho que é segurança não, porque é um lugar inseguro pra caralho. Agora até que tô começando a ver por onde ele tem caminho.  Mas escolher dança independente, no Brasil de hoje, é praticamente um suicídio. Não tem financiamento, não tem nada. É uma escolha que não é racional, em termos de possibilidade, mas uma hora senti que precisava fazer isso. Porque pra mim tem um lugar que é: já escolhi fazer arte, já escolhi fazer dança. Não escolhi isso pra fazer dinheiro. Dando mil malabarismo, sabe? Acho que a coisa é ter essa segurança em outros projetos, que consigam viabilizar o meu projeto independente. Mas com certeza o fato de eu ter dançado profissionalmente me dá um pouco de bagagem pra fazer o meu trabalho hoje em dia, de sentir que tenho alguma coisa pra compartilhar.

G:  Tava pensando agora, entrevistar dançarina é diferente, porque não é a palavra que tá em jogo…

Gab: Mas como é que você organiza, né? Porque também pra escrever projeto basicamente é isso e hoje em dia a gente fica metade do tempo nessa.

Mordedores, espetáculo de Marcela Levi e Lucía Russo fotografado por Elisa Mendes

G: E o projeto é um negócio de tentar estabelecer o caminho antes de você caminhar. Tem que criar um conceito, pra quê? Acho que muitas vezes trabalhos fodas são destruídos porque as pessoas querem arranjar uma justificativa que não precisa ter.

Gab: O louco é que você dá a justificativa pra uma coisa que tá querendo criar. Porque o que você quer com esse projeto, na verdade, é ter tempo pra poder investigar e saber o que quer fazer. É difícil pra caralho. Pra mim, dançar cada vez mais tem a ver com se comunicar,  com propor outras maneiras de estar junto, de conviver, outras maneiras de coexistir num espaço. A dança quer propor outra maneira de conviver. Olha, pessoas podem estar juntas num espaço fazendo coisas que não estão habituadas. O que me instiga, até politicamente falando, é um pouco isso: estimular as pessoas sensorialmente, afetivamente, pra experienciarem outras maneiras de estar junto.

G: É porque vai virando a sua vida, como você está no mundo.

Gab: Você começa a não separar, e é o tesão da coisa, sabe? Estar no processo criativo é um pouco isso, você começa a ficar imerso naquilo, começa a viver aquilo fora do ensaio. A coisa te toma, vira o seu assunto.

 

G: Mas a dança tem esse negócio do grupo, e há uma diferença entre criar sozinha ou com outras pessoas…

Gab: Tem uma diferença absurda. Agora comecei a criar sozinha e é a primeira vez que tô fazendo isso. Quando você tá com outras pessoas, vocês estão juntos em favor de uma ideia. O outro também te alimenta, tá contigo. Você vê coisas da maneira do outro de mover, de criar e aquilo vai criando um diálogo. Estar sozinha é um diálogo comigo mesma. E dentro de uma sala de ensaio é um compromisso muito grande. Exige muito mais concentração, acho, porque ninguém tá te dizendo nada, você tá lá sozinha porque quer, então ou você emburaca no trabalho ou você, sei lá, pega o celular pra ver que horas são, fica olhando pro teto. Ninguém vai te dizer que não.

G: Ninguém vai mandar…

Gab: Não é nem mandar, é o outro como referência. Tenho achado mais difícil criar sozinha do que em grupo, até porque em grupo tem todas as questões da convivência.

G: Mas as ideias surgem mais rápido…

Gab: É, não depende só de você. Também tem uma coisa muito doida: por quê em grupo, ou em dupla, sabe? Não pode ser sozinho só porque tô afim de fazer sozinha. O trabalho pede que seja um solo, ou que seja com duas pessoas. Por quê precisa de duas pessoas em cena, por que isso não poderia ser feita por uma pessoa, ou por que não pode ser feita por quatro?

G: Não ser demais e nem de menos… Palco é difícil, né?

Gab: É, e pra mim também não tem feito muito sentido pensar em coisas pra apresentar pra alguém. Palco nesse sentido de lugar onde as pessoas observam…Tô afim de fazer coisas com. Conviver, estar junto, instigar as pessoas. Sinto que hoje, por conta de tudo que a gente vive politicamente, não cabe eu aparecer num palco, “gente, olha só o que eu quero mostrar pra vocês…” Depende de cada um, mas pra mim não faz sentido.

Gabriela Cordovez e Nicole Gomes na performance BEIRA, fotografadas por Helena Cooper

G: E como é que é esse negócio de uma atenção muito grande no corpo e no movimento?

Gab: Acho que o grande trabalho da dança é a qualidade de presença. Talvez o que mais a dança traga pra mim, em termos de memória, é concretude física, o corpo material que tem um peso, uma textura, uma temperatura.  A primeira coisa, pra mim, é se voltar pra esse lugar e sentir como ele é. E aí em relação às coisas, fora o espaço, as pessoas etc. O treino de Mordedores tocava muito nesse lugar da presença, do momento agora.

G: E tem essa relação profunda da liberdade com a dança…

Gab: É, tem esse lugar da dança como transcendência, com a possibilidade do transe também, que é muito bonito.

G: Mas quando você sente que realmente tá dançando? Você tem esses momentos em que diz assim “eu estou nessa presença”, como você tava falando de Mordedores?

Gab: É porque tem esses lugares. Tem a dança que vai virando teu ofício, teu trabalho, e é uma abordagem que carrega uma seriedade, né? A tua maneira de se comunicar e tal. Mas a dança que eu acredito, com muita seriedade, é esse momento de liberdade profissionalmente. Profissionais disso, sabe? Pessoas que trabalham o corpo diariamente, exaustivamente, dedicadamente, pra alcançar esse estado de presença. E é uma coisa que nem todo dia você consegue. Você perde e ganha, é uma técnica, no sentido de que exige, de um bailarino profissional, uma dedicação diária. Então é doido porque acho que essa liberdade vem muito através do trabalho. Tem uma coisa que é de ir se hidratando, trabalhando essa técnica de presença, de se afetar. Acho que as possibilidades vão se alargando e aí cada vez fica mais fácil acessar isso. Você vai ganhando mais ferramentas, mais artifícios pra acessar isso. É uma coisa que você nem sabe quando você tá, você só tá.  E na hora que você se dá conta de que você tá, provavelmente não tá mais.

Gabriela Cordovez e Nicole Gomes na performance BEIRA, fotografadas por Helena Cooper

G: Mas isso é engraçado, quando você percebe você não tá mais, e estar inteiro é você não ter essa de perceber, mas percebendo tudo…  Porque você tá entregue…

Gab: É uma entrega e uma percepção tão alta no sentido de escuta, de tá atento. Mas você não racionaliza ou julga. Pra mim tem o lugar do julgamento, que é você dar nome, dar forma. Tem um exercício, que acho muito legal, de começar a se relacionar com as coisas como elas são, em termos concretos. Tanto essa árvore quanto você, no momento em que olho  e te classifico como Gorini, eu já fiz um julgamento. Mas posso me relacionar com você pela forma do teu cabelo, do teu óculos, mas não é o Gorini, com tudo que vem, de saber quem é você é de onde você é, a sua história, blá blá blá. Talvez seja esse lugar, porque tô te percebendo nesse momento presente, a coisa como ela é na minha frente.

G: Como a relação tá construída agora…

Gab: Agora. Mas não como se eu soubesse quem você é…

G: Também como…

Gab: Uma faceta tua.

G: Outro dia entrevistei um poeta, Leo Marona, que disse que a pira dele quando era mais novo era escrever um livro que todo mundo tivesse participando. Uma coisa meio Bolaño, não sei se você já leu Bolaño, de falar dos amigos…. Quando ele foi começar percebeu que não conhecia tão bem assim as pessoas.  É como se a gente sempre tivesse lidando a partir de personagens, que a gente meio que estabelece agora…

Coisa não nascida, performance de Daniel Miranda e Gabriela Cordovez fotografada por Vitorino Coragem

Gab: Também tem um pouco dessa coisa de ser outros, de trabalhar esse lugar, e aí essa honestidade consigo mesmo. Quem sou eu, Gabriela, no mundo, e essa possibilidade de ser outros na relação, sempre na relação. Acho que tem uma coisa muito bonita da dança que que tudo se constrói a partir da relação, nada tá dado antes. Por mais que você saiba o que você vai fazer.

G: É muito doido começar a pensar a partir da relação, porque a gente costuma pensar antes, eu estou aqui e vou me relacionar com outra parada que tá lá. E aí você pensa desde essa experiência de agora e é uma possibilidade criativa, né?

Gab: De criar mundos a cada instante.

G: Acho que na dança isso fica muito evidente, essa parada da liberdade.

Gab: Quando é que você se sente dançando? Eu me sinto nesse lugar do ofício, essa técnica de trabalhar e afinar cada vez mais essa sensibilidade pras relações. Às vezes isso acontece numa festa, essa mesma sensação.  Vejo às vezes o bailarino perder o prazer de dançar e é muito louco, porque a gente escolheu isso como ofício, porque é o que dá maior prazer, talvez na vida. Mas a gente vai entrando nesse trabalho do ofício e o prazer vai se esvaindo, sabe? Então é um pouco também relembrar esse prazer, que às vezes vem numa pista de dança ou numa sala de ensaio.

CS03 – performance de Physicall Guerrillas dirigido por Li Ning e fotografado por Pan Yi

G: Outro dia tava vendo um documentário sobre o  primeiro bailarino do balé de Londres, que é brasileiro. Ele tava falando disso, que era muito feliz dançando lá, mas que no final das contas é só um empregado ali. Dias e dias…

Gab: É, isso é uma crise, eu acho, da dança.

G: Não era assim?

Gab: Ah, sempre foi, acho que sim.

G: É porque são danças diferentes também, né? O balé clássico…

Gab: Com certeza, mas mesmo como bailarina, acho que em qualquer trabalho a gente acaba caindo nesse lugar, que é o grande perigo. Não quero perder o fio, não quero perder a relação com aquilo que eu realmente acredito. E acho que o grande negócio é esse, é você saber ser meio inteligente nesse sentido.

G: E aqui no Rio é muito bizarro esse negócio de que se você trabalha com arte ou cultura, em algum momento, direta ou indiretamente, vai trabalhar pra Globo…

Gab: Exatamente. E é um mercado que tá na nossa cidade, que a gente não pode negligenciar, porque também vai se fechar pra um mercado inteiro, gigantesco. Mas ao mesmo tempo como você se relaciona com isso? Como não se fechar pra esse mercado mas também não ser irresponsável com o que você acredita… Acho que existe um limite.

Linha Primitiva, espetáculo de Maria Elvira Machado fotografado por Alexandre Martins

G:  E essa relação com a plateia? Da pessoa parar pra te ver, mesmo que seja naquele segundo de atenção na performance de rua…

Gab: Acho que é uma responsabilidade, sabe? tem uma coisa de responsabilidade com as pessoas que saíram de casa pra te assistir. É muito lindo e precioso. Por isso que cada dia na vida de um artista é um dia, por mais que você vá tocar a mesma música ou fazer a mesma peça. Nasce e morre todo dia, e não adianta o que você fez ontem e nem o que você vai fazer amanhã.  É tanta ação e relação que você entra num estado meditativo.

G: Por que você acha que se identifica com a dança?

Gab: O primeiro espetáculo que fiz com a Lia Rodrigues se chamava Exercício M, feito em conjunto com o núcleo dois, um grupo de formação de jovens lá na Maré. Ele era baseado num outro espetáculo antigo da companhia, e a gente fez em um novo formato pra essa galera. E aí cada um dos bailarinos tinha que inventar alguma coisa, alguma situação, pra se apresentar sozinho. Eu fazia um negócio que em determinado falava isso, que comecei a gostar de dançar dançando. Sempre dancei, desde que tinha cinco anos de idade. Fui perceber que gostava disso no meio do negócio, entendeu? Um dia a gente tava meio em crise de Mordedores e Marcela, criadora do espetáculo, sentou pra conversar com os bailarinos e perguntou pra cada um: por quê você faz isso? por quê vem todo dia pra cá? E pra mim foi muito esse lugar, porque se não fizer isso não sei o que faço. Mesmo tendo toda uma relação forte com a academia, com as Ciências Sociais… E acho que isso toca num lugar muito real do privilégio também. De poder se dedicar pra uma coisa que demanda tempo, dedicação e que não necessariamente tem um retorno financeiro imediato.

https://www.youtube.com/watch?v=ez2NumS_m2k

G: E como é ficar sozinha muito tempo fazendo coisas, só você, dançando, no espelho…

Gab: Não uso espelho. Na sala que  uso nem tem espelho…  É aquilo que  tava te falando, você volta pra identidade, você quer se reconhecer, você quer checar. E  tem a coisa do olhar também: a gente quer julgar, ver se tá certo, se tá errado. Aí não se relacionar com as coisas só pelo olhar é muito forte, porque você se relaciona fazendo de outros jeitos, por sensação, cheiro, som. Percepção de um modo geral, e não apenas visualmente. A dança pode ser muito livre. Tem uma coisa libertadora também no sentido de sair da matéria, sabe? Através dela. Tô pensando nisso todo dia…

Linha Primitiva, espetáculo de Maria Elvira Machado fotografado por Alexandre Martins

 

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