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Texto e História

2013

Publicado originalmente em A ReOperação do Texto Texto e História, p. 15-18. Haroldo de Campos. Editora Perspectiva, São Paulo.

Noigandres 4 - Fala Clara - Haroldo de Campos

O estatuto do historiador literário brasileiro é, por assim dizer, um estatuto dilacerado e dilacerante. Confrontado com um panorama diacrônico onde são raros os momentos de altitude, este historiador oscila entre a melancolia do profissional que não encontra um objeto satisfatório para o exercício de seu métier e a indulgência do fideicomissário que procura valorizar os bens sob sua custódia. A primeira atitude é frustante e paralisador requeria; a segunda implica um quase requerimento de moratória a prazo indeterminado, para que o legado literário em exame seja considerado à luz menos rigorosa de uma situação contextual que lhe é por definição adversa (tratar-se-ia de um ramo secundário de uma árvore secundária, a literatura brasileira, esgalho da portuguesa) e, assim, contemplado sob a espécie da benevolência e da compassiva compreensão. Este esquema bipolar, trabalhado por impulsos desacordes, afinal se concilia por uma solução ritual, que antes diz respeito à liturgia do que ao objeto da indagação: é necessário criar um corpus da literatura brasileira para a integração curricular, e é nesta emergência que – como salientou uma vez Décio Pignatari – o historiador literário brasileiro, em lugar de proceder como Confúcio na anedota exemplar recontada por Ezra Pound (isto é, reduzir três mil odes a trezentas, para o fim de definir uma antologia realmente básica), infla uma dezena de bons autores em uma centena ou mais de literatos subalternos. Ou então (quando não paralelamente) subscreve com temor reverencial as partilhas herdadas de autores “maiores” e “menores” e as escolhas consuetudinárias das peças de florilégio, permitindo-se apenas uma discreta margem de divergência em relação ao cânon constituído. Satisfazem-se assim os currículos e povoam-se os livros didáticos, mas em contraparte esvai-se o sentido criativo, a qualidade (a informação original) é anulada, quando não simplesmente excluída (o caso de Sousândrade e Qorpo Santo e outros), no confronto com a repetição estereotipada e a morna indiferenciação. Volta a melancolia da “literatura menor”, o exercício nostálgico da crítica por “honra do ofício”, por desobriga até da “consciência infeliz” ante a fatalidade do legado e o imperativo ético-ideológico de assumi-lo.

Contra este estado de coisas, que se reflete em maior ou menor grau nos repertórios antológicos e nos inventários historiográficos, mesmo aqueles já aparentemente atualizados pela perspectiva retificadora que nos é proporcionada pela revolução modernista de 1922, a vanguarda brasileira propõe uma leitura radicalmente diversa de seu passado literário. A ideia de uma poética sincrônica parece aqui extremamente fecunda, nos termos em que a formulou Roman Jakobson:

A descrição sincrônica considera não apenas a produção literária de um período dado, mas também aquela parte da tradição literária, que, para o período em questão, permaneceu viva, ou foi revivida. Assim, por exemplo, Shakespeare, por um lado, e Donne, Marvell, Keats e Emily Dickinson, por outro, constituem presenças vivas no atual mundo poético de língua inglesa, ao passo que as obras de James Thomson e Longfellow não pertencem, no momento, ao número dos valores artísticos viáveis. A escolha de clássicos e sua reinterpretação à luz de uma nova tendência é um dos problemas essenciais dos estudos literários sincrônicos […] Uma poética histórica ou história da linguagem cabalmente compreensiva é uma superestrutura a ser construída sobre uma série de descrições sincrônicas sucessivas.

A aplicação deste critério numa literatura como a brasileira (cuja história real, a rigor,  ainda está por fazer-se) produz desde logo um efeito desobstrutivo e dessacralizador: de um lado, o prontuário das obras a serem considerados (antes obras que autores) fica inevitavelmente reduzido, com a remoção do entulho despiciendo (por “glorioso” que seja); de outro, perfilam-se com nitidez antes impossível de obter aqueles autores (textos) que realmente contam numa perspectiva radical, inclusive de validade internacional; finalmente, dentro da bagagem de um autor dado, o eixo de interesse deixará muitas vezes de se ancorar no lastro entorpecido das peças ditas “antológicas” (o caso da discutível “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias), para se firmar em composições menos celebradas, mas muito mais realizadas esteticamente (como, do mesmo autor, o “Leito de Folhas Verdes”). Está “drástica separação” (na acepção poundiana da frase, que pode ser entendida como uma versão pragmático-poética do “corte sincrônico” proposto por Jakobson) é empobrecedora apenas na aparência. O que se perde em quantidade e diluição, ganha-se em qualidade e rigor. Em vez de enfrentar o objeto de seus estudos com o complexo de inferioridade que é fruto da indulgência consentida (a mesma que inclui um canhestro versejador como Casimiro de Abreu no rol de nossos “românticos maiores”…), o crítico poderá agora, de cabeça erguida e sem pedir escusas, reivindicar em alto e bom som aquilo que nos é devido, o contributo de informação original que temos a reclamar como coisa nossa na evolução de formas da literatura universal, na, por assim dizer, “enciclopédia imaginária” dessa literatura. O que era antes um panorama amorfo, contemplado por um olho destituído de projeto, ganha coerência e relevo hierárquico, readquire vida dentro de uma tábua sincrônica onde presente e passado são contemporâneos. Para ficarmos apenas no âmbito da poesia: o barroco Gregório de Matos, os árcades Cláudio Manoel e Tomás Antônio Gonzaga, o romântico Sousândrade, o simbolista Pedro Kilkerry, o simbolista (pré-modernista) Augusto dos Anjos são poetas que teriam voz e vez em qualquer literatura e em qualquer literatura teriam um definido acréscimo a oferecer. Enquanto o scholarship acadêmico se perde por exemplo em discutir se Gregório foi plagiário de Gôngora e Quevedo (plagiário, um poeta do qual não se conhecem manuscritos autógrafos, por ter traduzido para o português o intrincado labirinto gongorino, quando um dos brasões de glória de Ungaretti é ter feito coisa semelhante para o italiano? Um poeta que compreendeu tão bem, com aquela “imaginação funcional” ou “sintagmática” de que fala Roland Barthes, a matriz aberta do barroco, que soube recombinar ludicamente em nossa língua, num soneto autônomo – verdadeiro vértice de um sutil “diálogo textual” – versos-membros de diferentes sonetos do poeta cordovês? Um poeta que, com o ousado senso de hibridismo que também se encontra em nosso barroco plástico, miscigenou seu instrumento com elementos de caldeamento tropical (tupinismos, africanismos), levando a discórdia concors barroquista à textura mesma de sua linguagem?); enquanto o pietismo universitário se conforta com os “sonetos de arrependimento” do Gregório místico (de boa fatura, mas muito menos criativos), será preciso que um observador estrangeiro, a estudiosa russa Ina Terterian, nos alerte de que a desabusada obra satírica do “Boca do Inferno” é “comparável aos melhores exemplos de sátira mundial do século XVII?”.

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