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Som e mise-en-scène

maio, 2015

Sobre som e mise-en-scène em Aquele Querido Mês de Agosto (2008) e Morrer Como Um Homem (2009).

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O que nos interessa no texto que segue é iluminar uma área que por vezes parece obscura, ou melhor, dirigir nossa atenção ao que nos escapa, algo de difícil apreensão. Dentro do cenário do cinema português, argentino e brasileiro (para se deter em apenas três países) realizado dos 2000 para cá, alguns realizadores tem feito questão de atrelar ao sonoro, ou àquilo que soa, parte significativa e constituinte da mise-en-scène de seus filmes.

Observa-se em diferentes cantos do Brasil, o surgimento de diversos textos, anotações e filmes que tendem a potencializar cada vez mais os possíveis do som no cinema. Em 2011, o professor de som do curso de cinema da Universidade Federal Fluminense, Fernando Morais da Costa, organizou uma edição inteira da revista Ciberlegenda1 dedicada ao som no audiovisual. Edição na qual escreveu um texto se questionando sobre uma possível representação hiper-realista do som no cinema argentino contemporâneo. Ou então a recém tese de doutorado de Cristiane Lima, ao abordar a música em cena no documentário brasileiro trazendo um estudo bastante interessante sobre as sonoridades do filme Aboio (2005) de Marília Rocha. Ou ainda o longa-metragem Matéria de Composição (2013) do mineiro Pedro Aspahan, investigando a relação entre processo de composição musical e o cinema. Ou para o intenso trabalho desenvolvido no pequeno estúdio Confraria de Sons e Charutos em que Daniel Turini e Fernando Henna vem realizando trabalhos bastante radicais em filmes que vão de Trabalhar Cansa (2011) à Avanti Poppolo (2013). É visível um cenário bastante amplo e complexo em que discussões e proposições formais, conceituais e técnicas acerca do som cinematográfico vem sendo propostas.

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Nesse sentido nos parece bastante interessante destacar a produção de realizadores argentinos como Lucrécia Martel e Lisandro Alonso e em especial neste texto, dois realizadores portugueses que tem deixados marcas, não apenas no campo do sonoro, mas nas relações entre imagens e sons. Trata-se de Miguel Gomes e João Pedro Rodrigues. No âmbito da produção desse breve texto, deve-se destacar o segundo longa-metragem de Gomes, Aquele Querido Mês de Agosto (2008), e Morrer Como Um Homem (2009), terceiro longa de Rodrigues. Contudo, observa-se na obra desses dois realizadores conterrâneos, um longo trabalho no sonoro que perpassa quase todos os filmes, podendo-se citar os curtas-metragens Entretanto (1999) de Gomes, e porque não China China (2007), de Rodrigues.

Em outubro de 2014 tive a oportunidade de escrever nessa mesma revista, um texto sobre o quarto longa-metragem de Eugene Green, A Religiosa Portuguesa (2009). A lembrança vem à tona agora pois embora Green não seja português, seu terceiro longa-metragem foi inteiramente rodado em Lisboa e, mais especificamente no que nos cabe aqui, quem foi seu diretor de som foi o português Vasco Pimentel, parceiro também de Miguel Gomes e de muitos outros realizadores portugueses nos últimos quinze anos. Não impressiona o fato do próprio Pimentel aparecer em AQMDA como personagem (de um sonidista) marcante e que desencadeia, justo no final do filme, um interessantíssimo debate a cerca de sons-fantastmas que surgem no material bruto do som direto de forma quase sobrenatural. Após mais de 120 minutos de filme, em que uma equipe de cinema tenta fazer um longa-metragem que parece estar de mal a pior, começam a aparecer problemas técnicos ali mesmo entre os colegas. Ora um produtor vem da cidade grande brigar com o diretor alegando que ele não tem atores para continuar rodando, ora o próprio diretor questiona o técnico de som direto sobre os tais sons-fantasmas, que a priori, não estavam presentes no momento da captação.

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Alguns conceitos que aparecem de forma bastante contundente em MCUH nos leva a conectá-lo com AQMDA, muito embora os filmes tenham estruturas narrativas completamente distintas. É inegável que durante toda a primeira sequência de MCUH, tem-se uma super-intensificação de sons ambientes. Que além de localizar geograficamente o espectador na diegese, servem como um cartão de visita das possíveis sonoridades do filme. Outra característica bastante interessante do sonoro neste filme é uma completa seletividade da escuta. Percebe-se muito claramente uma intenção e direcionamento do olhar através das sonoridades de objetos que muitas vezes estão ocultos do quadro ou nele visto de forma parcial. O que parece estar em jogo aqui é uma potencialização da mise-en-scène através do som. Quando a câmera enquadra uma determinada paisagem, personagem ou objeto, aquilo que é deixado fora-de-quadro não vai mais aparecer. Porém com o som o processo já parece ser distinto. Por mais que determinado objeto, paisagem ou personagem não esteja em quadro, ele vai povoar aquela mise-en-scène de maneira tão radical como se estivesse visível. Ou seja, a potencial presença daquilo que está em vias de povoar o quadro é levado e requisitado de maneira bastante perceptível nos filmes citados.

Ainda no filme de João Pedro Rodrigues tem-se uma interessante problematização do próprio conceito de síncrese. Talvez tal conceito seja campo de maior tensão para o o som cinematográfico e principal fator do contrato de realismo no que tange a história do cinema. Aproximadamente na metade do filme, a protagonista Tônia é vista a cantar dentro de um carro. Porém junto com a sua voz, ouve-se algumas outras sonoridades como um rádio sintonizado em um noticiário local e vários ruídos diegéticos de trânsito. Como se não fosse o suficiente para turvar o local em que a síncrese muito facilmente poderia aparecer de forma nítida, o vidro do carro está entre a câmera e Tônia, e encontra-se molhado, está repleto de gotículas de água da chuva que parece ter caído pouco tempo antes. Rapidamente percebe-se com maior clareza que trata-se de uma dublagem. Ao mesmo tempo em que um fade escurece diegeticamente (sim porque estamos entrando em um túnel) a imagem, a voz de Tônia aumenta de volume e a escutamos com extrema clareza e proximidade, como se fosse um narrador. Agora sim estamos em um registro de sonoridade que muito dificilmente seria alcançado com técnicas de captação de som direto. Um ato extremamente generoso em que a dublagem é colocada como recurso que tem muito menos a ver com um certo contrato de realismo e uma relação causal entre o que se vê e o que se ouve, mas sim com uma escolha por sonoridades em que distintas técnicas do sonoro podem se combinar de forma livre e espontânea. De como a voz de Tônia, uma vez pertencente àquele ambiente fílmico, destaca-se sem justificativa diegética sobrepondo-se aos demais sons adquirindo inclusive nova textura, e finalmente retorna à diegese em apelo ao “cala boca!” se seu namorado Rosário, com o auxílio certeiro do levantar do vidro do carro e com o ruído de um avião que passa ao longe.

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Trazer alguns filmes que nos ajudam a pensar o som como campo autônomo de criação de narrativa cinematográfica é definitivamente um de nossos desejos. Se debruçar sobre os estudos (há muito tempo em curso por pensadores que vão de Luiz Carlos Oliveira Junior a Jacques Aumont) em torno do conceito de mise-en-scène no cinema contemporâneo e o problematizando-o em relação ao que foi definido na década de 1930 é tarefa árdua. Talvez o som possa nos ajudar a escutar o que povoa a vizinhança dos filmes e com certeza Miguel Gomes e João Pedro Rodrigues nos são generosos nesse sentido. Não trata-se, porém, de reivindicar para o som um local para além do filme, mas de deter-se em casos específicos de realizadores que conseguem, com sutileza tamanha, criar sonoridades que ampliam e problematizam o espaço que o som pode ocupar no nosso imaginário fílmico.

 

 Notas:

1. http://www.uff.br/ciberlegenda/ojs/index.php/revista/issue/view/29/showToc

 

 

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