encontrei leo num momento difícil do dificílimo ano de 2018. na semana anterior victor heringer tinha feito a passagem e um ou dois dias depois marielle seria assassinada. cheguei na livraria da travessa de botafogo mais pro final da tarde quase noite. conversamos ali dentro, numa espécie de jardim de inverno muito utilizado pelos fumantes, eu acho. leo joga nas onze e já publicou livros de poesia, conto e romance. além disso, é o cantor da Dibuk Motel e trabalha há anos como livreiro – sendo um dos grandes responsáveis pela enorme presença de editoras pequenas e independentes nas prateleiras da travessa, pela organização do poetas de dois mundos, evento crucial na poesia carioca (e por quê não brasileira?) dos últimos anos, e por diversas outras iniciativas que mantêm a livraria e a literatura vivas na nossa tão maltratada cidade. a escrita do leo é de uma crueza ímpar, quase uma espécie de confissão. suportar o insuportável e quase sucumbir, mas quase. apresentar o cruel em sua crueldade, sem melindre, mas atravessar o deserto e continuar. em tempos como os nossos, é de um verso do leo que vez ou outra lembro, um quase mantra que escancara o viver poesia do poeta, uma condição primordial da esperança – “ser sujo e alegre/ após a inundação.”
a presente entrevista foi feita ao som de:
Egberto Gismonti e Naná Vasconcelos – Dança das Cabeças (1977)
Bacamarte – Depois do Fim (1983)
Anne Briggs (1971)
John Renbourn & Dorris Henderson – There you go (1965)
Herbie Hancock – Head Hunters (1973)
The White Stripes – Elephant (2003)
Nana, Nelson Angelo, Novelli (1974)
Bert Jansch (1964)
Maurice McIntyre – Humility In The Light Of Creator (1969)
Joanna Newsom – Ys (2006)
Joyce, Maurício Maestro e Naná Vasconcelos – Visions of Dawn (1976)
Gabriel Gorini: Vou começar com uma pergunta sobre aquele livro que você publicou, Óleo das horas dormidas. Você fez quando tava doente, né?
Leonardo Marona: Fui internado nessa época… Não foi que eu quis ser internado, me internaram.
G: E aí você dormia pra caralho?
L: O que aconteceu foi o seguinte. Esse livro não existia, nem era um projeto nem nada, e aí em 2013 tive um crack up e tentei me matar. O que aconteceu foi que não consegui, fui incompetente, apesar de ter tentado de várias formas. Tentei cortar o pulso, liguei o gás e tomei vodka com todos os remédios, então, quer dizer, uma delas pega, mas não pegou.
Só que na sequência eu perdi minha individualidade. Você tenta se matar de um jeito desse e vira uma pessoa temerosa. Aí tinha duas escolhas, uma era ficar com meu pai e a outra era o manicômio. Naturalmente eu preferi o manicômio. Acabei parando nesse lugar onde tinha um caderninho e comecei a escrever aleatoriamente e muito compulsivamente. Era uma maneira de não enlouquecer mesmo. Ainda mais que não tinha com quem conversar. Quer dizer, tinha com quem conversar mas não queria conversar com aquelas pessoas. Tava com medo de ficar maluco que nem elas, porque você é internado junto com todo mundo. Não tem isso de esse cara é um pouco pior, esse cara é um pouco melhor. É tudo junto. Na verdade vira um equilíbrio de loucura, porque naturalmente tem muita gente pior quando você chega num lugar desses.
Quando saí de lá, meio que dei uma piradinha de leve e fui descobrir uma meditação budista. Comecei a me sentir melhor, acabei um relacionamento que já tava indo mal. E na liberdade me confundi totalmente, botei o pé pelas mãos, comecei a achar que queria o mundo inteiro, deixei o livro de lado e comecei a viver intensamente. Quando conheci a Rita (Isadora Pessoa), me assentei e vi que tinha muitos poemas. Não sabia se esses poemas tinham uma unidade, e descobri que tinham porque eles foram quase todos escritos num estado de vigília, no sentido de que eu tava muito dopado. Me davam remédios que não eram os que eu usava, então ficava muito dopado. Os poemas iam saindo sem eu ter a real impressão de que eles estavam sendo escritos. Quando peguei eles todos, vi que essa ideia do sono era uma ideia comum. Havia uma espécie de névoa.
E aí eu tava lendo aquele livro do desassossego, do Pessoa, e tem um trecho em que ele fala do óleo das horas dormidas. Quando tive esse título, comecei a reunir os textos em volta dele. Acabou virando um livro inchado, né? Parece uma jaca podre, porque tem 70 poemas, é bem maior do que os outros. Mas foi feito assim, e eu quis que ficasse inchado, porque era uma fase inchada. Não teria sentido eu estetizar aquilo ali de modo que ninguém percebesse que aquilo ali era um… Porque o grande mote do livro é essa afetação psicológica, que talvez se perderia se eu trabalhasse muito nele…
G: Se fizesse um projeto..
L: Exato. Aí eu ia querer estetizar e acabar fugindo daquilo que era sujo, que era o que estava sentindo. Acho que a publicação da poesia tem que ser aquele estado de espírito que você tá levando, mais do que os textos assim ou assado. Então acabou que ficou desse jeito.
A editora Oficina Raquel me deu toda liberdade, não sugeriu o corte de nenhum texto, ao contrário da Garupa, a Juliana Travassos cortou uma porrada de coisa. Ainda bem. Quer dizer, o meu penúltimo livro tem 70 poemas e o último tem 25 (Herói de Atari), o que eu achei uma bela mudança. O próximo vai ter menos ainda. Estou tentando enxugar um pouco. Concentrar. Colocar o que é melhor e ficar menos preocupado com aquilo que cai também. Não tô tão preciosista com aqueles textos que vão embora, porque vão embora mesmo.
G: É, vão embora. E de onde saiu esse tem mais, né?
L: E que bom que tem, né? Enquanto tiver…
G: Cara, como é esse negócio de lidar com a morte tão radicalmente, tão…
L: É horrível, bicho. Porque não é uma potência. Se fosse uma potência, ainda que filosófica, poderia ter uma abertura pra um outro lugar, mas no caso é uma coisa que vem de uma fraqueza. Na verdade, despotencializa todo o resto. Quer dizer, é um grande acontecimento que leva pra um lugar vazio, porque na minha experiência eu não tive uma impressão mais profunda das coisas. Ao contrário, tive uma impressão mais rasa. Não conseguia mais tocar nas coisas vivas. É como se eu tivesse parado num lugar que não se encontra em outros lugares. Já tinha dificuldades enormes de encontrar as pessoas, de me deixar ser achado. Fiz de tudo pra não ser achado. O isolamento é uma coisa que fiz também, e no meu caso muita gente me procurou, e eu peremptoriamente não respondi, não retornei.
Às vezes a pessoa não se dá conta. No caso do Victor (Heringer), por exemplo, eu não poderia imaginar. É muito assustador o fato de que as pessoas podem estar tão mal do seu lado, serem próximas suas e você não ter menor noção de que isso tá acontecendo. Eu não revelei nada pra ninguém, não respondia. Quando finalmente souberam que eu tinha sido internado, as pessoas mais próximas, aí sim, já tendo esse conhecimento, foi que consegui abrir um pouco mais pra poderem se aproximar de novo, mas foi um longo trajeto. Eu não consegui facilmente voltar a uma vida comum. Até hoje tenho dificuldades, volta e meia sinto a sombra dessa sensação, e é uma coisa que uma vez que acontece você não volta mais atrás. Você passa daí adiante, né? Não vou me matar de novo, acho, mas quem sabe? Também achava que não ia me matar em 2012 e em 2013 tentei me suicidar.
E era uma série de coisas. As lacunas da nossa experiência afetiva, lacunas de perda, mãe que não sei quem é, que não lembro da cara, que não lembro do volume da voz, do timbre. Essas coisas todas começaram a me angustiar muito mais com a idade adulta do que quando era criança. Eu era meio que obrigado a tentar entender por ser adulto, então essa obrigação de ser adulto e tentar entender me matou. Enquanto não tinha obrigação disso me sentia melhor, quando tive que encarar de fato aquilo e o que aquilo representava, me deparei com um muro. E esse muro é muito pesado, muito pesado. E digo mais, não me arrependo, inclusive de ter tentado, porque naquela época era a melhor coisa a se fazer mesmo. É muito ruim. É uma sensação impossível de manter, você tenta se matar logo porque não aguenta. Não é que você queira fazer mal a alguém, é que você não aguenta mais sofrer daquele jeito e você não consegue compartilhar aquele sofrimento, que é o pior de tudo. Você anula a sua identidade, não consegue verbalizar pro teu amigo mais próximo aquilo que tá acontecendo, então vê as pessoas muito de longe, até a hora que elas somem. Até porque elas desistem, né? Tu vai me procurar 5, 6, 7, 10 vezes e depois tu vai perguntar por mim pelos outros. Ninguém vai saber te dizer e você vai tocar sua vida. Não é maldade. Mas é isso, a gente tem pouca noção do que se passa. Eu mesmo na época via muita gente passando mal e não tinha como ajudar porque também tava fudido. Por isso que é importante hoje em dia, acho, quem tem muita energia, energia boa, quem tem muita disposição, que esteja realmente num lugar onde possa espalhar pros outros, porque tá em falta. A gente faz um teatro, uma performance de encontro, mas não faz um encontro real, que é sentar e falar e aí, o que tá pegando pra valer? Ninguém quer saber, a gente não pergunta também, então é isso. É uma zona tenebrosa, que tá aqui do lado…
G: E isso da passividade e agressividade, tudo meio misturado num certo peso nas costas de lidar com as coisas… Alguns poemas seus tem muito esse espírito, uma resistência, mas penosa.
L: É uma redesistência. O óleo tem muito disso, o herói tem um pouco mas é mais lúdico, mais jovial, talvez.
G: Mas é esperançoso às vezes, mesmo que seja…
L: Esperançoso no pequeno, numa troca qualquer. É o que sempre me fez escrever. Eu não sou um escritor que escrevo sobre as coisas que entendo, faço o contrário, escrevo sobre as coisas que não entendo, e aí, claro, caio sempre nesse lugar onde a coisa pode explodir e virar vários caquinhos, virar uma grande bomba…
G: E você tem uma disciplina?
L: Quando eu era muito indisciplinado, tinha uma disciplina. Agora que eu sou mais disciplinado com a vida, perdi a disciplina. Eu bebia todo dia, usava droga sem parar, transava com qualquer um, não existia camisinha, foda-se, e ao mesmo tempo escrevia todo dia compulsivamente. No momento em que vi que ia morrer se continuasse assim, foi há pouco tempo inclusive, parei com todo o meu modus operandi da vida. Isso arrastou a literatura junto. Fui obrigado a dar tanta atenção àquilo que nunca tinha dado, que é a vida em si, que é um saco, e acabou que não consegui mais levar a literatura junto.
No começo isso me fez sofrer muito, não conseguir escrever todo dia. Não tinha aquele momento só meu, o momento só meu já virou o ter que fazer exercício porque se não vou ficar deprimido, ter que ir pro AA porque se não vou beber, ter que falar com o poder superior, seja lá o que for, pra poder ter um pouco de consciência. Então, quer dizer, são várias coisas que acabei arrecadando com essa tentativa de melhorar de vida, que não consegui manter a mesma compulsão de escrita. No fim das contas, também acho que não é tão mal, porque você também fica com o crivo um pouco mais exigente com o passar do tempo. Teria muito mais dificuldade se tivesse escrevendo como escrevia com 20 anos, sabe?
Podia ter acontecido tanta coisa, e no entanto aqui estamos. É uma espécie de risadasinha, “porra, não é possível que eu não morri, né?”, então acho que acabou acontecendo isso, me concentrei na vida, em sobreviver mesmo, e a literatura entrou num lugar diferente, deixou de ser a obsessão. Agora é mais importante eu estar vivo sem a literatura e depois entender a literatura. É assim que tenho feito, vai sair um livro que foi feito assim. Deve ser o pior de todos mas, vamos ver. Daqui a pouco aprendo.
G: Mas você pensa antes no livro? Não o Óleo das horas dormidas, mas os outros.
L: A prosa é mais pensada. Engraçado, né? Até porque, quando tenho uma ideia pra escrever um livro de prosa, já sei mais ou menos até onde ela vai. Quer dizer, pelo menos o tamanho você já meio que tem uma noção pela ideia que você tem. Sei lá, uma ideia que envolve um ambiente e dois personagens já sei que vai ser uma novelinha, a outra que tem sete personagens e vai pra vários lugares é um romance. A estrutura vai se apresentando pela densidade da ideia, enquanto que no poema não, cada poema é uma ideia diferente. Às vezes um poema engole o outro, inclusive.
O processo poético é mais afetuoso do que intelectual, enquanto que a prosa é mais intelectual e racional do que afetuosa. E também não posso esquecer que o poema não pode ser ruim no meio ou no final. Ele tem que ser bom ou ruim. Enquanto que o romance pode ter momentos ruins, momentos de baixa, e depois sobe. Às vezes é até importante ter essa divisão, então é outra estrutura. Eu tenho muito mais dificuldade com a prosa, apesar de ser uma coisa que escrevo há mais tempo.
G: Você costuma fazer um exercício de escrita? De se propor brincadeiras…
L: Isso é coisa da OEP (Oficina Experimental de Poesia), de oficina de literatura. Eu não acredito em oficina, nenhuma oficina, mas gosto dos garotos, fazer o quê? Mas não acredito que alguém vá escrever melhor porque faça uma oficina, porque o cara que tá te ensinando tá tão perdido quanto você. Só você ver a galera escrevendo por aí, tá todo mundo meio que tentando, às vezes acerta, às vezes não. Não vejo uma hierarquia nesse sentido de alguém ensinar. É claro que a OEP tem esse dado interessante que não é muito verticalizado, é uma coisa que todo mundo se espalha. Não consigo fazer porque não sou uma pessoa muito gregária na hora de criar. Não consigo criar em coletivo. Eu crio sozinho, e o coletivo pode pegar o que quiser, mas não vou conseguir criar pensando como se fossem várias cabeças. Tenho dificuldade nisso, mas vejo gente fazendo isso brilhantemente.
G: Cara a gente tá passando por uma parada agora de escrita coletiva, de escrever o editorial da USINA impressa. Mas editorial é até mais fácil do que dizer o que cortar no poema de outra pessoa…
L: Eu não tenho nenhuma condição disso. Se fizesse isso, seria esdrúxulo, no mínimo, porque não sei o que fazer com os meus próprios, vou falar com os outros? Os meus saem de um jeito esquisito, então não posso dar aula ou ensinar, né? Claro, poderia ter estudado o suficiente pra dar uma aula de teoria, mas também não me interessa. Não vejo grandes teóricos escrevendo grandes romances, com exceção talvez do Silviano Santiago. Prefiro estar no lado que não é teórico pra poder respirar um pouco melhor, mas nesse ponto acho que sou muito romântico. Porque a galera mais nova do que eu pensa completamente diferente, tem muito mais interseção. Se você conversa com o (Rafael) Zacca, ele vai te dar n situações onde as coisas se misturam, e ele faz isso brilhantemente, inclusive.
G: Eu acho que é porque a gente costuma se relacionar com as coisas, principalmente na arte, com categorias de antemão, e aí a gente tenta fazer sempre isso de híbridos, não sei o quê, porque já pressupõe aquelas classificações…
L: Sim, mas se você pedir pra alguém explicar o que são híbridos, ele dificilmente vai conseguir fazer.
G: Outro dia tava pensando com um amigo esse negócio de literatura, e ele falando que tem que fazer projetos literários, e eu disse, é só tu escrever o que tu quer cara, não precisa ficar nessa…
L: Em última instância é isso.
G: É claro que existem discussões diversas…
L: É, tu vai olhar o que escreveu e vai saber se é pra todo mundo ou se é só pra você.
G: Mas no final das contas você só tá fazendo o que você quer…
L: E o que tá na tua alçada, né? Tô acabando de reler Detetives Selvagens, de 98, e não tem nada melhor que tenha sido escrito depois. É um livro altamente poético, só fala de poesia praticamente, de uma maneira guerrilheira , como se os poetas fossem soldados ou espiões..
G: Eu acho engraçada essa névoa de suspense…
L: É um livro policial, que é a grande paixão do Bolaño. É uma espiral, você fica esperando uma merda acontecer o tempo todo, o que é extremamente moderno. Porque como é um livro distópico, e não utópico, não é um livro que fecha num lugar. Ao contrário, ele sai de um lugar fechado e vai abrindo de maneira que você nunca mais retoma a partida. A partida é descobrir quem é a fundadora dos real visceralistas, que é Cesarea Tinajero. E essa mulher não aparece, bicho, essa mulher aparece dois segundos, só um velho fala da mulher e ele já tá bêbado de tequila. Quer dizer, pode ser que ele esteja falando bobagem. É um livro que a importância da conclusão é descentralizada totalmente.
G: Mas ao mesmo tempo ele sempre constrói a expectativa…
L: A expectativa é total, mas o resultado é nulo. A vida é basicamente assim, por isso acho que é um romance que atrai tanta gente, porque a vida é assim, a vida é o quê? Uma expectativa total de que as coisas vão acontecer, e depois uma dissolução dessas expectativas.
G: Ele pega um longo período de tempo também…
L: Exatamente. Ele pega dos 1970 até o final dos 1990. Olha só o que me deu… Eu li esse romance achando que tava sendo convocado a fazer uma parada. Li e falei, vou ter que escrever o romance da minha geração. Pensei, né, sem nenhuma modéstia. Eu vou escrever sobre cada um de vocês, vai ter o Gorini, vai ter o Ítalo, vai ter a Adelaide, vai ter a Polly, vai ter o Victor Heringer, vai ter o Ismar Tirelli, vai ter todo mundo. Só que é o seguinte, quando me dei conta do que que era, falei “bicho, eu teria que ser o Bolaño, né?”. Ou como escrever para si e ser bom como era pro Bolaño, sem imitar ninguém. Essa convocatória é um perigo, vou cair num lugar onde provavelmente as pessoas ainda vivas vão querer me matar.
E você se dá conta que na verdade pouco conhece os seus parceiros. Como vou falar profundamente sobre o Ítalo? Me pego na minha falha de amigo. Caralho, tô com Ítalo sempre, mas no fim das contas se eu fosse construir um personagem baseado nele, seria uma incógnita. Nessa você se dá conta de como é frágil o afeto humano, que é uma projeção. Ele não é uma coisa que você sente e assenta, é uma coisa que você espera e procura. Às vezes nem acha, porque ele é só projetado. Vejo você e simpatizo, não porque sei exatamente o que você é, mas porque aquilo que espero de você tá impresso naquilo que vejo em você. Quer dizer, isso é uma coisa na hora do tête-à-tête. Mas na hora de sentar e falar, quem é o Gorini, o herói do meu romance?, aí a coisa fica complicada, porque você não quer um Gorini que seja limitado. Eu quero que seja você elevado a uma potência inacreditável, como o Belano é pro Bolaño. O Arturo Belano é muito mais que o Bolaño, e o Ulisses Lima é mais que o Mario Santiago Papasquiaro.¹ Ulisses Lima é uma figura mitológica, ele nem fala as coisas direito, é um enigma a cada frase. E o Papasquiaro, apesar de ser grande poeta, não é reconhecido como um poetaço. Basicamente, ele é um cara que todo mundo conhece porque foi citado pelo Bolaño.
G: E diz a história, não sei, que ele morreu porque andava de olho fechado pela cidade…
L: Ele é o Zarvos da turma. Acho que é do mesmo tamanho, inclusive. Isso é muito bom, né? Que esses mais velhos, os que já engoliram muita merda, tão tranquilos. Pra nós, acho uma benesse, porque no momento que a gente tá vivendo, com tantas perdas, com tanta coisa acontecendo que a gente não sabe controlar, que a gente não sabe explicar, que a gente não sabe entender, a gente olha pra um cara que já tá aí há mó tempão pirando, fritando, tu fica com medo de morrer, bicho. Porque, se nesse mundo eu olhasse pro Zarvos e ele estivesse mais maluco do que eu, ia falar, “fudeu, em quem que vou me encostar?”. Quando vejo o Zarvos calmo, tomando coca-zero, me dá um alívio, sacou? Quando sei que o Ítalo foi pra São Paulo e voltou, passou aqui hoje, é um alívio total. Sei que ele sobreviveu a São Paulo. Porque sempre quando ele viaja acho que ele vai morrer em São Paulo. Isso não é porque acho que sou um cara que vai proteger o Ítalo, isso é simplesmente uma ansiedade. Eu sempre tô achando que as pessoas tão indo pela última vez e não vão voltar mais, sabe? Quando me despeço das pessoas aqui penso, tomara que ela volte depois.
G: É aquele vai com deus, vai pela sombra, porque tu não sabe o que pode acontecer. É muito radical. As relações são muito sérias e muito frágeis, e ao mesmo tempo ninguém sabe tratar com a delicadeza que a situação exige, as pessoas quebram umas às outras muito facilmente…
L: Sem se dar conta, pior ainda.
G: Hoje e ontem parece que caiu o peso, nos últimos dias fiquei numa apatia, numa coisa meio letárgica…
L: Mas é isso, não se sinta tão mal, porque é a prova que você tá vivo e sensível às coisas. O que é esquisito é a gente não ser engolido nunca, talvez o que quebre as pessoas pra valer é a pessoa não se permitir quebrar. Se a pessoa não se permite quebrar nunca, ela vai quebrar, é inevitável, e ela vai se fuder. Se você já sabe que tá aí pra quebrar também, acho que você deixa a coisa acontecer. Se você não permite que isso aconteça, quando receber, vai ser o golpe fatal.
G: Tava ouvindo a Maria Bethânia cantar uma música e no final ela fala que na obra de todo grande artista, todo grande escritor, em tudo que é belo, você vai encontrar deus, ou algo assim. Essa parada da poesia como salvação, você comunga disso ou acha que é uma…
L: Acho que é uma pequena salvação. Uma pequena importante salvação, justamente por ser pequena. Aquilo que o Deleuze fala da literatura menor. A literatura menor salva, a literatura maior mata. Quando você lê Sofrimento do Jovem Werther você quer morrer, quando você lê Bolaño, que é uma literatura menor, onde nada é muito importante, você quer viver, porque parece com a vida. Werther parece com a morte porque é tão perfeito que aquilo ali é uma lápide que tá caindo na sua cabeça. Então a literatura é capaz de matar e fazer viver. A poesia é pra poder deixar as coisas mais maleáveis, é pedante pra caralho dizer isso mas no fundo a gente quer algo que mantenha a sua chama acesa, que mantenha você em conexão com a vida, com a existência mais mundana possível.
Quer dizer, você desce um degrau ao invés de subir. Não penso na poesia como ascensão, penso na poesia como descensão. Você desce pra um lugar onde você pode falar qualquer coisa, porque nesse lugar todo mundo tá com você. Se você sobe, aí tem que ser o William Blake, se você não for o William Blake, você se mata, né? Que é o grande risco que a gente corre. Não acho que seja muito saudável escolher passar a vida escrevendo. Vai ver Schopenhauer, Hegel, Dostoiévski, se dedicaram com visceralidade, e aí não tem como. Como se chama? Ser etéreo, mas acaba falando das coisas mais podres da humanidade. Aquilo que não tem jeito. O Schopenhauer só fala daquilo que não tem jeito, e por que não tem jeito? Porque não tem importância, porque a nossa existência não é importante. O que a gente faz tem importância porque a gente acha importante, mas o cachorro não acha importante, o louco não acha importante, até a gente mesmo, se a gente enlouquecer, perde a importância. Se a gente pode enlouquecer a qualquer momento, e nesse momento vai perder a importância, então que importância tem de fato?
G: Mas tem importância…
L: Mas ao mesmo tempo se você disser que não tem importância nenhuma, você vai morrer. Então tem que inventar uma importância, mesmo que seja pequena, pra manter a coisa funcionando, como viver.
G: O Egberto Gismonti fala assim: “eu dediquei a minha vida inteira a uma coisa que não existe…”
L: Exatamente isso. Com a diferença que o Egberto tem uma vantagem em relação a mim, que é uma coisa única na música. É o seguinte, você pode morrer, mas você continua vivendo plenamente. Você não precisa de nenhum esforço pra sentir a vida dessa pessoa, se tu dá play, você ouve a nona sinfonia e o Beethoven tá vivíssimo. Um poema é outra coisa, o poema tá na gaveta, tá no armário, você tem que tirar, puxar.
G: Tem esse negócio também do ofício sabe? Do poeta ter um ofício…
L: Isso eu acho perigosíssimo. Por exemplo, as pessoas que eu conheço que consideram a poesia um ofício geralmente são os piores poetas e os que se consideram os melhores poetas. Isso é super complicado de lidar, porque são pessoas geralmente muito vaidosas, extremamente centradas em si próprias, “ah, porque tô indo no concurso tal, porque vou numa feira tal”. Outro dia, vi uma amiga nossa, uma poeta, falando assim: estou desempregada, mas nunca fiz tanta coisa, aí começou a listar as coisas, “dei uma entrevista, me convidaram pra uma palestra, etc”. Quer dizer, no fim das contas, ela está falando pra si própria, pra gente ver também que não tá parada. Mas isso é uma coisa muito desesperada e muito egóica. Tá fazendo o quê? Fazendo nada! Dando uma entrevista, e aí?
Agora, tem uma coisa que pode ser meio piegas, mas a gente vê as coisas que faz, a gente se dedica o máximo que pode meio que também pra dizer pra si próprio “eu sou isso, sou algo que passa por isso”. É uma maneira de olhar pra si próprio e saber quem você é. Acho que o ofício do escritor é escrever. Quando o escritor trabalha mais é quando ele não está escrevendo, mas vendo as coisas e vivendo a vida. Esse é o ofício do escritor, viver plenamente a vida. Pode ser se você tiver trabalhando numa lavanderia, numa livraria, sendo acadêmico ou lavando prato. Pegando o Bolaño de novo, por exemplo, as ocupações daqueles personagens são sempre muito ínfimas. Um cara trabalha numa loja não sei do quê, o outro numa locadora, mas ao mesmo tempo eles tão ali pra valer. O cara que vai nos sebos vai em 30 por dia. Não é porque ele acha que aquilo ali é um ofício, mas porque aquilo ali é a maneira dele viver. Ele não tá pensando se aquilo vai trazer algo pra ele, que é mais ou menos o pensamento geral hoje em dia, “vou me isolar nesse quarto e fazer o melhor romance do mundo”. Não vai, porque você tem que estar na rua, tem que ver as coisas. Você não vai sentar no quarto e vai fazer “viagem ao redor do meu quarto”. Aconteceu em 1830 e acabou.
O isolamento causa repetição. Você se isola, perde contato e começa a escrever que nem Tolstói, escrever que nem não sei quem. Tomara que seja que nem o Tolstói, geralmente é igual ao Paulo Coelho. A gente tem que aprender a viver, não a escrever. Se aprender a viver, ou souber arranjar um jeito de viver, naturalmente a gente vai escrever. Porque é uma coisa que a gente aprendeu e vive assim. Desde que me entendo por gente, no sentido de que desde que comecei a pensar com pensamentos próprios, eu quis escrever. Meu pai falava, “não faça isso, já temos o Rubem Fonseca, você não vai se dar bem, você tá botando uma roleta russa com cinco balas”. Com o tempo, ele desistiu de falar isso, porque viu que não ia adiantar nada, e hoje em dia até lê os meus livros. Quer dizer, alguma coisa andou, pelo menos meu pai conseguiu ver que não era uma questão de ter isso ou aquilo, não era uma questão de estetizar uma trajetória. Quando ele entendeu que isso era parte de tudo, ele falou, “ é melhor abraçar isso aqui e tentar ler”.
Cara, um garoto de dezoito que quer escrever vai sofrer muito. Ele tá querendo evitar que você sofra, posso evitar o que quiser, mas o que eu não sofrer eu também não vou poder destilar. Também não vou poder entender, também não vou poder transformar. Se você não sofrer, você não transforma, se você não tocar, você consegue só observar, você descreve mas não vive aquilo. Aí não serve pra literatura, serve pra teoria. Serve pra ciência, ou ciência literária. Você faz uma teoria com isso, mas não faz um romance. Ontem mesmo tava tendo uma longa discussão com a Rita (Isadora Pessoa), por causa da tese de doutorado ela tá tendo que ler vários livros sobre a arte do romance, a teoria do romance. Olha como é louco isso, você vai ler a arte do romance do Milan Kundera. Porra, é um livro livre! Você vai ver o Ricardo Piglia escrevendo sobre formas de escritas, o cara não tá nem aí se o texto tem uma página e o outro tem dez, quinze. Estamos falando de dois escritores de ofício, dois romancistas. Quando tu pega um teórico de ofício, ele não vai conseguir escrever um romance, mas consegue falar tudo sobre tudo o que tem que ter no romance. Isso não é irônico? O Todorov não vai escrever um romance.
G: Essa história é foda. Uma vez, numa discussão num café sobre a academia, disse assim, “tô num lugar muito doido, aqui todo mundo odeia arte” e um professor respondeu: “como assim? Eu amo arte, sou crítico de arte!”
L: Porque é isso, a ideia de que uma pessoa pode mapear alguma tendência, alguma coisa que exista em todos os lugares. É de uma ingenuidade inacreditável, ainda mais se você for tratar de criação…
G: E dizer assim: isso não é só agora, como vai ser todo tempo
L: Geralmente são as pessoas preocupadas em ter as outras na mão. Esses caras que dão aula de escrita criativa, que escrevem de um jeito. Saem dessa oficina vários alunos copiando o jeito desse cara escrever. Só que mal, né? Sei lá, vou dar um exemplo. O Carlito Azevedo faz isso há muitos anos, o que vejo muito são muitas meninas saindo dessas oficinas do Carlito e parecem o Carlito falando, parecem o Carlito opinando. Talvez numa grande roda vaidosa, isso seja interessante pra quem tá fazendo, mas não vejo isso como uma coisa boa pro geral. Porque você produz pessoas…
G: Acho que a questão da arte, da criatividade, é sempre você criar o terreno, porque você nunca vai conseguir despertar, mas criar o terreno pra ela mesma perceber a própria criatividade…
L: Perceber a si própria e não perceber o que uma pessoa está dizendo que tem que ser. Mas como geralmente são crianças, adolescentes, chegam ali cheios de dúvidas, né? Eles querem mesmo um cara pra orientar, acham que a escrita funciona por orientação, quando na verdade a escrita funciona por desorientação. É desorientado que você se mete a escrever. Não é “hmm, agora entendi tudo”, e começa escrever, é assim, “não entendo nada”, e aí começa a escrever. No fim das contas, vai continuar não entendendo nada mas alguma coisa vai acontecer nesse meio tempo, a qualidade do trajeto é mais importante que o trajeto, como diria o Pascal. No filme do Rosselini, tem uma hora que o Pascal encontra o Descartes, que está dando uma palestra sobre o trajeto de um ponto ao outro. No final da aula, ambos são apresentados e Descartes pergunta: e você? tá estudando o quê? O Pascal fala, “pra ser mais honesto, pra pegar sua explanação como base, você tá falando de uma trajetória de um ponto ao outro, a mim interessa o que acontece no meio do caminho. Quando saio de A e vou pra B, isso você já resolveu. Agora, a mim não me interessa o trajeto, mas sim a qualidade do trajeto.” Eles vão embora mas fica uma questão que o Descartes tá secamente falando sobre uma coisa, A e B, sem pensar que entre A e B existem várias nuances, mudanças de estado, de espírito.
G: E não é um pressuposto que você vai chegar em B, né? Porque falar em trajetória pressupõe….
L: Inclusive o B muda, porque você é outra coisa, você não é o mesmo cara que partiu. Quer dizer, no que o Descartes tava sendo racionalista, o Pascal entra com um nível de emoção, que talvez tenha até assustado o Descartes. Tava lendo uma matéria na Piauí bem legal falando sobre Santo Agostinho e a invenção do sexo, porque ele é obrigado a retomar o mito de Adão e Eva, reforçar esse mito com a nossa questão, que é basicamente essa, eu controlo a minha boca, meu braço, mas não controlo meu pau. Fico com tesão e ferrou, a minha concupiscência vai se manifestar em mim sem que eu queira, sem que eu controle. Posso dormir, mas vou sonhar transando com alguém. Ele se ligou que aquilo ali era o mal inicial. Bom, ele é acusado de ser maniqueísta, mas é irônico porque ele é um cara que tentava rechaçar os maniqueístas e com isso se tornou um. Uma coisa bem comum de acontecer, né? Quantos cara de esquerda nos anos 1970 hoje em dia são banqueiros, pró fhc, pró instituto millenium, o caralho a quatro. Esses caras nos anos 1960 estavam de barbinha ali tentando quebrar a ditadura, então, quer dizer, você muda. Não é só o trajeto que existe, mas existe o trajeto de dentro, que é o trajeto que você leva no trajeto, e que altera o trajeto.
G: Caminante no hay camino, se hace camino al andar… Mas e a esperança?
L: A minha esperança é essa, o mundo acabou. A gente é resíduo desse mundo, e aí sim é bonito ser bom. Ser bom no paraíso não me interessa, ser bom no inferno é que é o bicho. Olhar no espelho e falar eu sou bom, no inferno, e não se matar, e não pular na cova…
G: E nem achar que é diferente…
L: Tô no mais louco inferno e, no entanto, tenho esperança.
¹N.E: Arturo Belano e Ulisses Lima são os principais heróis de Os Detetives Selvagens, ambos perpassam toda a obra de Roberto Bolaño. Enquanto Belano é a versão mítica do autor, Ulisses Lima é o melhor amigo do escritor chileno na juventude, o poeta Mario Santiago Papasquiaro – que morreu desconhecido no mesmo ano de publicação de “Detetives” (1998), atropelado na Cidade do México.