Quando temos sede e vemos uma gota, pode dar vontade de tomá-la. Mas até a ação de engolir acontecer, diversos movimentos surgem. A espera, o quase, a pausa, o passo, a abertura da mandíbula, o peso da gota caindo no ar.
Para termos o começo e o fim, muitos fins aconteceram no meio, e este processo de criação surgiu a partir da investigação do que está “entre”. No “entre” encontramos o que não chegou, o que não tem forma e o que não tem nome.
E então, muitas vezes também não tem tanta importância. Temos que engolir logo as gotas que encontramos no caminho e já passarmos para os próximos fins. Quando isso acontece, vemos o resultado do que fizemos (o gole), mas podemos nos perder no meio, nos desconectando do que está gerando este final.
O que investigamos aqui é o momento do “quase”, pois ainda não se chegou a “lugar nenhum”. Quando este momento sem nome é olhado, pode nos levar a lugares inesperados pois prestamos atenção ao que está acontecendo e não para o resultado, e então o fim pode até ser outro.
Talvez aí seja um momento de transformação, pois quando percebemos o contexto que nossos corpos estão inseridos podemos ter mais autonomia para os próximos movimentos e podemos escolher se queremos as gotas ou então outros jeitos de ser e estar no mundo.
No processo de criação do vídeo “Entre Gota e Gole”, decidimos quebrar com esse modo de olhar para o fim. Pesquisamos o movimento no seu transformar, nas suas passagens e nos encontros com as superfícies de objetos que geram mudanças na sua direção. Não tem um caminho linear para seguir e nem uma forma para chegar. Buscamos o movimento na relação com o que o corpo vai encontrando no caminho. E então nesta pesquisa percebemos que além de investigar o que está entre o começo e o fim, buscamos também o que está entre o fora e o dentro, questionando essa separação.
Durante o processo do vídeo, percebemos que o corpo muda de acordo com o espaço. Os movimentos se transformaram em cada lugar, e com o mover do corpo, o espaço também se alterou. Convencionalmente vemos a gota como o que está fora e o gole como o que está dentro, mas nessa pesquisa não há mais essa separação, pois a partir do momento em que vejo a gota, eu posso perceber meu peso, o vento, o meu pé tocando o chão, a temperatura do ar quando entra no meu nariz, a imagem de uma torneira que essa gota me leva quando olho para ela. Percebo também minha ansiedade de tomar a gota me colocando dentro de um tanque vazio e pequeno que me deixa sem ar… e também sem água.
Percebo pensamentos aleatórios, ou melhor, inesperados, que podem vir no momento que abro espaço nas articulações e consequentemente nos neurônios. Tudo isso interfere na relação e no movimento que terei que fazer para me aproximar até a gota e engolir. É a abertura para o que está acontecendo que mostra que não tem mais gole nem gota, mas a relação que ocorre entre o corpo e a água. Assim, passamos a investigar a relação entre o que eu vejo no momento e o que move no meu corpo em diferentes espaços.
Devido ao momento de pandemia, buscamos as possibilidades de movimento dentro de nossas casas. Gestos cotidianos são repetidos até se tornarem abstratos, desconexos de suas funções diárias, mas conectados com o que está acontecendo no momento em que o corpo se relaciona com um novo ambiente.
Confinadas em casa, nós vimos eletrodomésticos, armários, cômodos, quadrados. O tempo, o tempo das coisas, o nosso tempo. O corpo, o corpo das coisas. Diálogos. Repetimos o movimento que se modifica na própria repetição. O repetir se torna a ação, e se transforma junto com os espaços.
Por questionar o começo e o fim, o processo de criação do vídeo não tem um ponto de chegada pois, apesar de carregarmos marcas de um agora, esse agora sempre já passou, então o ponto já vai ter passado quando alguém chegar. Portanto, o que resta é movimentar e se relacionar com o que se transforma junto com o corpo, seja a cadeira, parede, janela, geladeira, tanque de lavar, box do banheiro ou uma folha da árvore. Tudo o que vemos é transformável, assim como nossos gestos e pensamentos.
No vídeo buscamos esse transformar com o movimento, que por sua vez, quebra a parede que separa o dentro e fora, o começo e fim. O som de uma imagem interfere na outra, o movimento de um take interfere no outro. Assim olhamos para cada pedaço dessa parede que quebramos e dançamos as partes que vão aparecendo. Gostaríamos que essa pesquisa seja pontos de vistas com reticências, pois cada pedaço tem um desenho e um encontro único com a gente. Que no encontro com o vídeo você possa encontrar alguns “entres” e tenha um gole seco ou molhado com gosto de suco de caju, caipirinha, chá verde, água…
Eu, dentro da minha casa, durante 4 meses, procurei me localizar nesse espaço o atualizando a cada momento. Me percebi durante esse tempo, com um maior estado de atenção aos objetos que me rodeavam e por isso me compunham também.
Um dos acordos principais que fiz com os meus dias de quarentena e as relações que eu estabelecia com esses dias e tudo que nele continha, era experimentar a não hierarquização dos diálogos, das existências que eu percebia ali, na minha casa. Por exemplo: um objeto poderia ter a mesma importância que um corpo humano; a palavra falada poderia estar em paridade com um gesto.
Assim, fui criando o meu próprio modo de estruturar o tempo e o espaço na improvisação em dança: espaço, forma, tempo, emoção, movimento e história. Princípios que me baseio na técnica de Viewpoints da coreógrafa Mary Overlie, uma técnica que me facilitou desenvolver essa escuta sensorial e assim me desprender da ideologização, da predeterminação dos meus movimentos e descobrir junto com eles. Ser o próprio movimento, ser o próprio diálogo com as coisas, ser o que me rodeia.
É como se fosse uma aventura por outras lógicas, onde me perco e me encontro simultaneamente. Começo então a me deixar habitar pelos espaços e objetos e a habitá-los também, de forma que nesse improviso aconteça um percurso por terrenos instáveis, levadiços, elásticos e cheios de fendas, fissuras e possibilidades. Nesse trajeto o meu desejo vai promovendo o acaso e o acaso se alimenta do meu próprio desejo. Quando consigo encontrar, nesse movimento, uma fenda, vejo que surge enfim o acontecimento, e, diante do que acontece, as coisas se criam, eu crio, e, a partir do que se cria, afirmo o acontecimento.
Nesse processo investiguei também a repetição de alguns movimentos sendo inspirada pelas repetições dos meus dias confinada dentro de um apartamento. A provocação que eu lancei pra mim mesma foi: quantas repetições são necessárias para criar-se uma diferença, para criar novas perspectivas sobre um mesmo movimento? À medida que eu repito, a minha ação é transformada, a repetição tece um ponto notável a outro. Dessa forma explorei os gestos repetidos em momentos e em relações diferentes; essas combinações provocaram inversão nos sentidos dos mesmos gestos. A repetição do mesmo movimento traz distorções, provocando múltiplas e imprescindíveis interpretações e experiências.