Quando isso a que chamo de desejo de escrita anunciava-se em mim, antigamente, é o que vou começar a tentar dizer. Destino infalível de mim, quase mulher que inspira ar de delírio enquanto minhas narinas encontram-se irritadas com tanto tabaco que ando a consumir nesses dias descontentes de calor e pouca fruição. A vida toda parece ter repulsa de minha neurose anormal, patológica, ela diria, porque é de pathos que ela diz que eu ando a me alimentar – seiva retirada do osso petrificado do tempo, ruína do prazer inútil. A questão da salvação sempre se coloca e só, ou então, veja-se, ou se veja, só o que vou te dizer, pois escuta e, assim, a imagem aparece.
A distopia espelhada dos fragmentos e restos de meu labirinto enigmático ressoa como essa música que lembra balbucios infantis despreocupados, risonhos, famintos de toque, forma e caos. É o silêncio de saber o contrário que ele quer – é o que quero neste meu desejo que não sabe aonde ir nem mesmo aonde vai parar e por isso não pode nem sabe dizer. Preciso ao menos tentar – e o fracasso e o erro me constituem como o gozo de me ver dialeticamente avançar no escuro de minha impossibilidade de vislumbre, incompleta e errática.
Eu queria dizer sobre um homem que amei – no sentido da negação do termo. Sim, eu amei um homem que nunca amei. E, no entanto, tal como era, me chamava nomes estranhos por vezes, dizia que queria que te provocasse calafrios depois que o sol negro fosse embora – gostava de se fazer fêmea e reinventar lugares sexuais. Eu, então, me fazia oposto, e me machucava e tinha prazer e tinha um amor que era vazio de amor, e por isso tão bom. O barulho da câmera, o estalar dos dedos, a troca da lente, a mudança no foco – mente que aponta para o alto.
Tem sim uma renúncia de algo que sabe que não há plenitude realizável senão fora da vida; conglomerados de instantes sobrepostos, camadas de ócio e tédio e falta. A mim, muita coisa falta e eu queria te dizer sobre o que me falta – o tamanho infinito do que é precário em mim. Visibilidade amorfa criada em carne murcha que sangra e é vermelha – negra esfinge de cores e adornos e contradições tão puras e belas e frágeis.
Eu quero varrer o mundo de mim. Quero varrer de mim o mundo. Lavar minha alma, nua, no sal da terra tão vazia como seu centro – o meu – coração insípido – aquela coisa que dá e não pode parar e é surto e é história ao mesmo tempo. É conseguir ver e não ver nada. Eu sou o que sou e o que sou é dor – aquela dor primeira. Eu quero escrever a dor de amar não amando – que é uma dor de prazer agudo e mudo.
Eu queria virar uma mulher – disse à minha mãe na adolescência – mas não sabia como fazê-lo. Perguntei se ela poderia me ajudar – e, no entanto, sabia que teria que encontrar respostas por mim mesma. O tempo passou, as respostas naufragaram com o barco que te levou, estrangeiro morto pela mulher que te queria, raivosa com rancor e culpa. Eu choro à vida que se apagou, não à morte que nem é.
O texto não precisa tornar-se nada. Ele simplesmente não pode ser nada além de nada. Perdido nos fios de cabelo do tempo dos espaços e nos termos de sua confecção muda e latente em todas as coisas. Eu sou o mundo e sou o que o mundo é e sou o barulho da água que toca no chão agora – aquela água-janela, doce, pintada por estrelas sedimentadas. Sou o que vaza do bueiro, transborda no esgoto – sou a rendição de mim ao outro para me ter e ter a ele.
É essa sensação de que estou sendo pega pela escrita. É essa sensação que preciso dizer e é tão difícil. Por que uma mão? Justamente a mão? Porque ela faz um tanto de coisa e escreve, que é tipo um artesanato também. É tipo uma habilidade que se aprende e se gosta e de repente essa coisa que você faz se torna você de alguma forma que você nem sabe.
Eu não sei se ele gosta daquele poeta beat, mas preciso falar dele e faz barulho quando escrevo essas palavras porque elas desvendam algo de mim que não quero revelar: quero manter oculto, quero manter segredo, quero manter ausência. É aquela Maia de Ibsen, que é um pouco a mão e é um pouco barata e é que eu estou perdida agora, sabe? E a gente só faz perder e todo o mundo e toda a experiência só me faz perder a perda e me perder. Ai, por que tudo tem que doer e ser tanto fogo e brasa? Às vezes só queria ser calmaria, saber ser calmaria e há sempre tanto movimento como aqui sentada eu agora me movo, procuro por minhas coisas perdidas sem me mexer.
Tem coisa que a gente sente falta sempre e não importa quanto tempo passe a gente simplesmente sempre falta e eu não consigo parar nem quero parar e fico extasiada: catarse, compaixão, piedade, horror e é mistério de sair de si – que é esvaziar de certezas e parar de querer preencher a si de belo e de humano – o que só nos contradiz em nós. Eu quero mesmo é falar a língua dos mudos, a língua que nada diz, só usar os restos dessa língua que jamais foi minha. Só murmurar sussurros inauditos em pleno museu de imagens itinerantes. Eu sofro, sofro porque tenho a vocação de amar e, no entanto, só posso amar a ausência.
Eu fico mística, invento história de amor, traduzo ruídos da rua. Sei viver muito bem infeliz. Tenho aprendido muito bem a viver infeliz. Fui adestrada na infelicidade de me ver plena, completa – é que dói saber-se gente que não é tão gente assim e compartilha uma alteridade solidária com as coisas. Eu queria ter a vocação de fazer as pessoas sorrirem. Queria ter a vocação de fazê-las ver o que ainda não podem, ouvir os significados estranhos contidos na sua ausência mesma de sentido, criadora de uma lógica outra. Eu queria parir o mundo que saísse de minha entranha e que fosse como um monstro pérfido que se esvai de mim e me suja e me tira de minha pureza. Eu estou vindo aqui; por quê? Não sei. Tenho que parar de fingir que tenho alguma certeza. Tudo em mim chora; até minhas omoplatas.
Eu preciso escrever porque não consigo dar conta do mundo e escrever é finitude; é encará-la; é chegar sempre a lugar algum. Tento me organizar dentro e não pretendo enlouquecer – creio apenas ser um momento duro – e eu invento você e esse diálogo porque preciso me esvaziar um pouco. Preciso.
Eu invento já tanta história na vida, que chega na hora de escrever e quero é desinventar todas elas. Fazer tudo ruir numa conspiração de mim contra mim, contra o meu melhor. O moço disse que a gente se encontra no céu, mas estou duvidando disso. Ele não gostaria que eu dissesse assim. Acharia que atraio coisas ruins dessa maneira, faço que ele não seja mais. Posso seguir uma fé que não é minha? PRECISO DAS MINHAS COSTAS E ELAS ME FALTAM. SOU UM SER SEM COSTAS.
Uma vez eu escrevi umas páginas, revisei todo o texto. E sabe no que deu? Em nada. Eu lembro daquele cara beat e nem quero ouvir você falar porque você só fala de si, mas, ainda assim, é tudo que eu tenho, mesmo que a você mesmo você não tenha. Vou te insultar aqui enquanto você anda nu pela minha casa porque gosto da simultaneidade. Gosto muito quando coisas acontecem só porque gosto muito de desejar que elas não aconteçam.