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Cristofagia: carta jogada num terreno baldio

julho, 2023

Adoração eucarística com o Santíssimo Sacramento, retábulo na Igreja do Nascimento da Virgem Maria em Svetice, Croácia
Adoração eucarística com o Santíssimo Sacramento. Retábulo na Igreja do Nascimento da Virgem Maria em Svetice, Croácia.

Rio, 22 de fevereiro de 2021.

Eu peguei minhas chaves e fui. Continua não parecendo tão longe, mas cê era diferente quando te olhei pela primeira vez, há vinte anos atrás, ou quase isso, depois que sentei num banco dentro daquela Paróquia Jesus Sacramentado e ouvi um homem me perguntar: quer ser coroinha?, e quis. Foi mais ou menos nessa época: soube onde a Paróquia em que me vestia de branco havia começado: aí, içada em você (ei, posso te chamar de igreja?).

Pois bem. Já naquela época, igreja, você tinha mato crescido em cada extensão sua, muros baixos, talvez resquícios de uma casinha velha, quase caindo de tão velha, cupins, não sei. Não fui no dia em que convocaram os coroinhas a limparem a bagunça do terreno. As missas raramente aconteciam aí e, quando rolavam, eram missas campais, na frente de seus muros, e padres prometeram por anos a construção de algo no seu chão, onde antes havia a pequena igreja, mas esse plano nunca vingou, como posso confirmar, sem dúvidas… Porque sim, cê era diferente quando te olhei pela primeira vez, mas ainda é um lugar baldio. O que muda são seus muros altos. A terra dá pra ver que está limpa daquela casinha velha, mas cheia dum mato ainda mais cerrado. Há uma pichação nos tijolos que te isolam, que ameaça potenciais invasores – será que você permanece sob posse daquela Paróquia? É… você parece bem maior. Antes, era escura e ruína. Agora, te vejo um campo aberto, ou quase isso.

Mais uma história me faz lembrar de você. Veja, naquela minha época de coroinha, houve um bazar na Paróquia. Eram muitas das coisas que pertenceram ao primeiro padre – que construiu no seu terreno, igreja, e se mudou para a Paróquia depois – e, entre elas, eu vi um livro, quase sem nome: Zero. Lembro de folheá-lo ali, na hora, de pé, e encontrar nele uma diagramação que tornava a prosa um protoquadrinho de super-herói, um protojornal, um protoanúncio também. Ao ver isso, foi de uma tacada: fiquei com ele. O curioso é que era o fim da minha pré-adolescência: antes, muito provavelmente, não tinha lido mais que Fernão Capelo Gaivota, não mais que os quadrinhos da Turma da Mônica, e visto desenhos na televisão, e animes japoneses. E naquela hora, Zero, um dos livros mais emblemáticos de Ignácio de Loyola Brandão, chegava às minhas mãos, cheio de violência, sexo, ceticismo, duma desesperança encantadora. Se já naquela época me divertia lendo o livro e imaginando um padre, velho e estrangeiro, lendo-o num subúrbio do Rio de Janeiro, imagine agora, vinte anos depois, quando não sou mais cristão? Mas devo dizer que não só compreendo com mais graça o paradoxo entre esse livro e seu antigo dono, mas também especulo seus motivos. Talvez esse padre, de outra geração, não correspondesse ao conservadorismo político arraigado nas igrejas suburbanas. Talvez a formação política e intelectual dele comportasse certas contradições ou, se não, ainda assim não as negasse veementemente. Enfim, dei dois passos a mais em admirá-lo.

Há um mote nesse livro, contudo, que irá me servir para conversar contigo. É que a ficção de Zero se dá “num país da América Latíndia, amanhã”. Escrito nas circunstâncias da ditadura civil e militar brasileira, publicado no estrangeiro e proibido nestas bandas, Zero era (e é?) uma metáfora, não tanto do momento político; mais, acredito, da sina deste pedaço de terra que ocupamos, suleados no mundo. Lendo ele, poderíamos nos recordar de Cem anos de solidão, romance de Gabriel García Márquez, descrevendo em histórias que nos capturam pela semelhança uma vida temperada por tragédias, abandono, fuzilamentos. São livros que nos fazem lembrar a nossa América Latina.

Mas, olha, do que quero falar não é tanto sobre nosso continente. Quero sim é falar dessa figura de linguagem; da própria metáfora: espécie de cirurgia no idioma, enxertando semântica a mais que a semântica na palavra dicionarizada. A metáfora, veja, é usada também em grandes conjuntos de palavras. Desde romances até contos, nos ditos saídos das bocas dos vovôs, em papéis amarelados por grilagens. E, nisso, vejo que sua operação também afeta, ao fim e ao cabo, pessoas. E suas formas de lerem e contarem histórias. E em ‘n’ a mais e acentos agudos, que surgem nas tantas Américas Latinas.

Todavia, minha aposta, igreja, é de que todo o cristianismo pode ter parte nessa intervenção sociolinguística. O que penso ao olhar para mim mesmo.

Veja bem.

Eu percebi que eu, que gostava tanto de ler histórias e de contar as histórias que lia, agora leio e conto outras letras, de filósofos e pensadores, e deixei de contar histórias para, enfim, contar sobre essas letras, pensamentos, essas filosofias. Eu percebi que tudo começou naquela Paróquia de bairro; na primeira homilia que assisti vi algo: um padre pensando à luz daquilo que, nas páginas da bíblia, antes poderiam me parecer histórias e só. Ali, na homilia, vi a bíblia sendo convertida em metáfora, em filosofia, tornando as histórias que ela contava instrumentos de um pensamento organizado, um tanto mais abstrato, que modelava e modela a subjetividade das pessoas… uma ferramenta de ascese espiritual. Não só um livro da história das pessoas que viveram uma ascese espiritual no passado… sabe?

Claro que falo das passagens que narram, de dentro dos livros cristãos. Há neles epístolas, manuais de conduta, é certo, mas há aquelas letras que somente contariam, se as lêssemos como causos e histórias de dormir. É dessas que digo: algo mudou. E nem tanto nas palavras; talvez algo tenha mudado desde os leitores da bíblia, que formaram, a partir de si, os leitores de outras obras. Se assim for, desde sempre, essa influência sombreia além dos sacros domínios aos domingos, mais do que nas missas, como nuvens espessas acinzentando a periferia das catedrais.

Sob tal sombra, vejo o que chamam de intelligentsia. Gente de terno, sentada nas cadeiras do programa Roda Viva, se mostra discutindo, desde si mesma, sobre complexidades e coisas simples da vida. Ou intelectuais, quando tomam Carolina Maria de Jesus como cânone literário que é, veem enegrecida certa noção canônica de literatura, baseada bem longe do autobiográfico. E assim esses, que se mostram na tevê, transformam suas presenças em bases para discussões mais gerais que as de suas biografias. E Carolina tem seu vaticínio pra si mesma, tantas vezes escrito em seus diários, realizado: seus textos ali, quando publicados e reconhecidos, a alçam à condição de escritora; portanto, a sua história cotidiana é alçada aos assuntos e formalismos literários.

Tal franqueamento da biografia de alguém à edificação moral, literária ou o que seja tem bases cristãs ainda mais antigas que as de minhas memórias pessoais, eu acho. Li agora mesmo sobre Santo Atanásio e sua Vita Antonii: anotações de pensamentos e ações suas, desde nossos primeiros três séculos, e que tinham o firme propósito de guiar vidas ascéticas. “Consideremos e escrevamos, cada um, as ações e os movimentos de nossa alma”, ele disse, pois, “por vergonha de sermos conhecidos, deixaremos de pecar”. O que seria isso senão a exteriorização do que a alma é – essa instância interior em cada indivíduo – na vida material, biográfica; em seus registros e atos, confessionais e flagrantes?

Ontem e hoje, assim como no cristianismo, testemunhos (e fofocas) têm servido à edificação duma intelectualidade que os metaforiza, os tomando como bulas, não tanto como histórias sem moral. Mas eu não sou contrário à moral da história, se me faço parecer assim ao querer destrinchar sua operação. Sou filho desse procedimento, como fiz saber parágrafos acima. De modo que hoje, sendo um trabalhador intelectual, identifico que minha formação começou numa Paróquia. Mas soube que você, igreja, quer ser um lugar em que não mais se narrem as histórias sob o signo da moral, mas sob signo nenhum. O que me deixa curioso, encantado pela possibilidade.

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LAVA JATO ->

SERA COBRADO

PROIBIDO JOGAR LIXO

VAI MORRE

SERA COBRAO MISÉRIA

CV RL

CPX

PH

Se os muros que cercam teu terreno fossem um livro, essas seriam as páginas que compreendi. De resto, as outras tags nele parecem amorfas, como garatujas no canto das folhas. Não saberia dizer quais nomes estão pichados. É fato que o que me é legível e o que não me é gozam do mesmo estatuto nas suas paredes. Não seriam como rabiscos feitos à lápis num livro já impresso. Todas essas escritas foram, por assim dizer, grafadas da mesma maneira – com tinta de jet, como pichações. Mas são diferentes: atendem a públicos diversos, eu imagino. Há essas palavras pichadas de modo que eu não as entenda, em que só vejo desenhos abstratos. Essas servem a um grupo seleto: pichadores que reconheçam uns aos outros nesses nomes, que usem como suporte à sua confraria os muros do mundo, como folhas duma ata de reuniões. Já as palavras que pude distinguir se dirigem tanto a mim quanto a qualquer pessoa alfabetizada. E nos avisam, nos ameaçam – É proibido jogar lixo. O lava jato é logo ali. Certas siglas marcam essa região. Memento mori. Todo mundo será cobrado por seus atos.

Igreja, das últimas vezes que confessei pecados na frente de um padre, percebi que, naquele confessionário e fora dele, seremos sempre cobrados. Pois sabia que deus me perdoaria, e me perdoaria quantas vezes mais eu pedisse perdão, mas que ele perdoaria porque reconhece, em certos atos nossos, erros. E esse é um pilar que sustenta sua virtude aos nossos olhos. Só é possível mostrar-se paciente sob contraste, ladeado ao desassossego. E é em nossa carência por acolhida, feridos em nossas quebras morais, que temos testemunho do amor divino. Sem isso, se nos pensássemos infalíveis, perceberíamos um deus compassivo?

E não só o deus cristão nos cobrará por nossos atos, eu diria. Os pichadores também irão nos cobrar, como disseram. E policiais; juízes e juízas; locadores, secretárias; todas as pessoas, nós mesmas, cruzando umas com as outras. O cristianismo ajudou a formar a civilização ocidental e tem bilhões de fiéis ao redor do mundo. Goza de oficialidade em alguns países em detrimento de outras religiões. Por extensão, não raro se vê a população mundial exercendo procedimentos que me parecem ter fundo cristão: as leis nos cobram responsabilidade individual; as facções e milícias estipulam códigos de ética; amizades têm seus acordos tácitos de camaradagem. Digo que há fundo cristão neles porque separam o joio do trigo, assim como na bíblia; quem é adequado, análogo à “vontade de deus” e de seus simulacros – o humanismo, a hombridade etc. -, serve de contraste a quem não é. Contudo, de modo mais perceptível para mim, há fundo cristão na ascese que se pressupõe aos indivíduos para que a sociedade lembre suas próprias regras. O que remonta às instruções pessoais de Santo Atanásio, às homilias que falam de santos virtuoses, às noites de lançamentos das autobiografias de ilustres… Ou seja, é na vida de cada ser vivo que se apreende, ou não, as instruções para viver.

Tais éticas, consolidadas nas histórias concretas de alguns – um procedimento coincidente com o da cultura cristã, aliás -, fortalecem em nós a assunção de que não devemos ter parte com certos assuntos. Que advogados não deveriam realizar cirurgias, já que não se formaram em medicina. E aprendizes de instrumentos musicais não têm o que apresentar em um show no Carnegie Hall, já que virtuoses não são. Evidente a coerência desses ordenamentos, igreja. Mas há pontos falhos, falta de análises críticas sobre as segregações de certas pessoas, quando não assentam como consenso para a população. E dentre esses, gostaria de lhe falar sobre o termo cristofobia.

A primeira vez que ouvi essa palavra foi em 2013. Veiculada pela mídia impressa e audiovisual, correspondia à resposta que setores cristãos davam após um ocorrido. Ao passo que a católica Jornada Mundial da Juventude acontecia no Rio de Janeiro, a Marcha das Vadias, organizada por feministas que lutavam, dentre outras pautas, pelo direito ao aborto, tomou as ruas de Copacabana. Em meio à marcha, emergiu uma performance, extensa, não agendada por ambos os eventos. Envolvia a presença de duas pessoas que, a certa altura, aproximavam imagens de nossas senhoras e crucifixos nos próprios ânus e genitália, e as quebravam também, e tinham textos em um dos seus corpos; “dar o cu é uma delícia”, estava escrito.

Cristofobia foi às bocas e orelhas desde então. Análoga à palavras correntes, como homofobia, transfobia, tantas com a mesma sufixação, cristofobia declara que cristãos estão sob ataque, tanto quanto ou até mais que gente LGBTQIA+, já que a emergência de sua proclamação se dá, não raro, quando alguém aproxima símbolos cristãos às partes ou ao todo do corpo de uma pessoa, por exemplo, trans. Menciono intencionalmente como exemplo uma pessoa trans: a segunda vez que me deparei com o termo foi em reação à outra performance, realizada por Viviany Beleboni. Era a 19ª parada LGBT. Viviany encimava um trio elétrico, crucificada: a maquiagem realista, que emulava feridas por todo o seu corpo, fazia conjunto com a coroa de espinhos e o crucifixo de madeira, enorme, em que ela simulava definhar. No topo da cruz, uma placa dizia “basta homofobia glbt”, com cor vermelho-sangue, escorrendo. Em uma entrevista dada por ela ao final da performance, no calor do momento, declarou o que representava aquele ato: “Pra mim representa as dores de todas as travestis, eu tô vindo flagelada que nem Jesus Cristo, que (…) eu sou crucificada, todos os gays são crucificados o ano todo, e eu tô vindo aqui justamente para representar todas elas”. Meses após, junto às vezes em que Viviany foi apontada como cristofóbica, junto à vontade de tipificar como crime hediondo manifestações como a dela, declarações de ódio, ameaças de morte, intimações a depor e espancamentos formaram o conjunto de reações que a atacaram em sua integridade.

Já em relação aos setores cristãos que denunciam cristofobia, me parece que o que os afeta se dá quando a religião é vista nas mãos de eventos e pessoas LGBTQIA+ e feministas. A transgeneridade de Viviany Beleboni, e o contexto em que estava, lhes inspiraram a noção de vilipêndio, já que o cristianismo é conhecido por reconhecer no rol dos pecados o que está fora da cisgeneridade e da heterossexualidade. A violência iconoclasta da performance na Marcha das Vadias em 2013, evidente reação à violência física e moral contra tantas pessoas dissidentes ao cisheteropatriarcado – violência essa estruturalmente informada por certa agenda cristã (como o cruzamento entre ataques físicos, apelações legais e manifestações religiosas contra Viviany nos faz perceber) -, são disputadas, desde então, pela cristofobia. Ou seja, se há ataques homotransfóbicos, influenciados por uma perspectiva cristã, a cristofobia diz reconhecer ataques contra as instituições cristãs quando certas pessoas usam suas liturgias fora dos templos, e não importa se esse uso é feito por vítimas da homotransfobia em suas autodefesas; pela lei ou pela bala, legal ou ilegalmente, não raro a defesa contra a profanação religiosa sobrepõe cidadanias.

De tal modo que, em 2020, vi a consolidação do termo; quando um ex-presidente brasileiro mencionou a cristofobia num discurso à ONU. “Faço um apelo à toda comunidade internacional, pela liberdade religiosa e pelo combate à cristofobia”, encerrando sua fala ao outorgar: “O Brasil é um país cristão e conservador. E tem na família a sua base. Deus abençoe a todos. O meu muito obrigado.”

Pelo que eu saiba, o Brasil é um país laico. Mas bem: o curioso é que, por mais que Bolsonaro tenha lançado o apelo à uma aliança internacional contra a cristofobia, a jornalista e pesquisadora Rafaela Marques observou que há, “sem dúvida alguma, um preconceito direcionado aos evangélicos no Brasil. Mas esse preconceito não é, de maneira alguma, algo que venha tolhendo a participação política dos evangélicos, a participação na vida pública brasileira, a implementação e a expansão de valores e bens culturais próprios dos evangélicos”. Portanto, já que goza de estatuto diferente dos países em que há ameaças à permanência das comunidades cristãs em seus seios, o que caracterizaria a cristofobia no Brasil?

Bem, quero dar ares dicionarizados à essa cristofobia à brasileira:

Cristofobia [De Cristo- + -fobia] S.f. Ato contrário à prerrogativa de que a apropriação de símbolos cristãos deve se dar por indivíduos rígidos consigo mesmos, nos ditames da religiosidade e, contínuo a eles, em ambientes e usos afins com a sacralidade; nunca afins com a profanação.

Como se pode observar, a cristofobia é uma desobediência à ascese cristã, perpetrada por pessoas na vida secular, não religiosa.

Nenhuma novidade até aí. Conversando contigo, igreja, já me fiz entender ao destrinchar o que acho sobre a transformação das histórias, de viventes e biografados, em bulas da religiosidade cristã; que tal procedimento dá forma a toda nossa cultura, e há muito tempo. Do que digo porque, talvez por isso, a noção de cristofobia esteja galgando mais e mais posições políticas. Mas… e se mudarmos o sufixo? De cristofobia para cristofagia, me vejo atento à comensalidade radical do cristianismo, de tal modo radical que dividiu pães, vinhos e peixes com desconhecidas, com mães bêbadas, com párias, com potenciais traidores… Você já pensou nisso, igreja? Eu não estranharia se sim.

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Receita: “Calcula-se um Cristo já abatido para duas pessoas. Os espinhos são retirados e ele é separado da cruz, que deixaremos de lado. Os estigmas podem ser recheados com bacon. É lavado com água morna e cuidadosamente seco. Em uma assadeira e sobre leite de cebola, colocaremos o Cristo, que untaremos com manteiga em abundância. Depois de temperado, pode-se adicionar especiarias e ervas finas a gosto. É deixado em forno médio por três dias, após os quais sairá completamente sozinho. Sirva-o sobre sua cruz, adornado com laranja, alface e rabanete.”

Dia 15 de dezembro de 2004. A televisão espanhola apresenta a receita acima, narração no curta-metragem Sobre la cristofagia. Uma escultura de Jesus sendo separada de sua cruz, untada com manteiga, temperada, posta num forno e numa mesa de jantar compõem as imagens. O contexto: numa entrevista com o músico e poeta Javier Krahe, Sobre la cristofagia foi exibido como curiosidade; apenas um detalhe durante aquele quadro. É um vídeo que ele e mais umas pessoas filmaram em 1977, com pretensões não maiores que as de projetar na parede da casa de alguém. Talvez também num festival de cinema, mas essa segunda opção até ali não havia se concretizado.

Vinte e sete anos depois, quando o vídeo foi à ampla audiência espanhola pela tevê, Krahe e Montserrat Fernández Villa, produtora daquele programa, foram alvo de uma queixa judicial por “ofensa aos sentimentos dos membros de uma confissão religiosa”. Era o uso do artigo 525 no código penal espanhol, que propiciaria uma pena de até 12 meses contra eles.

Essa querela se estendeu por oito anos, quando a absolvição acabou acontecendo. Se deu quando foi reconhecido o recurso satírico que Sobre la cristofagia lança mão para realizar, aprioristicamente, uma crítica social. Talvez aí tenha sido de suma importância a ampla defesa que figuras da cultura espanhola desempenharam em favor do poeta e da produtora, ao assinarem uma carta aberta que dizia: “A Igreja Católica é uma instituição muito importante devido ao seu poder econômico e sua influência na moral, na educação e, em última instância, na vida de milhões de pessoas. Por isso mesmo está sujeita a críticas.” Eis um caso em que a crítica secular sobrepujou a agenda cristã.

Num outro ponto de vista, contudo:

Fome, gula, avareza poderiam descrever certo cristianismo. Se, por um lado, católicos comungam o próprio corpo de Cristo em suas missas, por outro, alguns deles se agitam ao verem a fagia simbólica das pessoas que, por exemplo, põem Jesus num forno. E protegem Cristo como um alimento escasso, o reservam em ritos, estipulam em que coisa se dará sua sagração ao se tornar comestível. Mesmo que Cristo tenha dito que, quando dois ou mais estiverem reunidos em seu nome, ali estará, os cristianismos sobredeterminam sua frase, e a essa sentença se somam inúmeras regras e adendos, afastando a ironia, a crítica e a farra de qualquer reunião cristã.

Esse problema tem também sua coincidência com a cultura secular. Lembro-me de um caso cheio de cosmopolitismo. Você já ouviu falar em antropofagia? É o que me vem à cabeça: lá pela segunda década do século vinte, o Brasil, a partir de seu Sudeste, viu surgir um papo sobre antropofagia. Um papo metafórico, não exatamente aquele que especula sobre a existência de sociedades que viviam neste território e que comiam gente. Era um papo que tomava essas sociedades como exemplo, sim, mas para declarar uma característica peculiar ao povo brasileiro: a de que, assim como quem teria comido humanos o fez para, ritualisticamente, incorporar as qualidades da pessoa devorada, o povo brasileiro apropria os traços culturais de povos alhures ao seu, incorporando-os.

Por sua composição multiétnica também, mas não só: a antropofagia cultural, que teve seu anúncio no Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade, carrega a franca preocupação em dizer essa característica no povo brasileiro não tanto como produto das cruzas populacionais de um país colonizado, mas sobretudo como uma opção intelectual – o procedimento das primeiras comunidades desta terra substituindo o modo de raciocinar europeizado, patriarcal. Por isso é um manifesto: declara outro modo de ser, de se portar e de pensar, por fim convocando, mais que descrevendo a nação.

Mas se o manifesto convoca e declara outro modo de ser, quem foi que se modificou para essa outra forma? E quem é convocado a comer o outro, e que outro? Acho que uma parte da elite intelectual brasileira poderia dizer-se tal grupo comensal, parcela da qual Oswald deriva; certas pessoas claras, ricas, progressistas… que encarnam a carne da cultura nacional. Penso nisso junto às linhas que um amigo meu e vizinho nosso, igreja, de um bairro próximo, escreveu. Seu nome é Yhuri Cruz. Está escrito num grande folheto negro, em meio a outras palavras:

“Quem comeu quem? Que antropofagia é essa que se toma como boca universal? ANTROPO-FAGIA. Comer o humano. O branco brasileiro europeizado come o preto e o indígena, digere suas memórias assumindo como suas, violentando e incorporando narrativas.”

É da página sete de uma folha inteiriça. Dobrável, o grande folheto é transportável e carrega na sua fronte o título Pretofagia. Nele, se formula um caminho diverso ao legado antropofágico oswaldiano: pessoas pretas comendo a si mesmas, se devorando, usando bocas que nascem em cada ponta de seus dedos, mastigando cada parte de seus pés. Falando na prática, o manifesto de Yhuri propõe à população negra que encorpe seus saberes ancestrais, na medida em que, assim, irá destituir-se dos saberes coloniais que a quiseram ontologicamente subalterna. Nada disso se doa à parcela mais branca da população brasileira; pretofagia propõe uma autofagia negra, uma xenofilia. O recuperar do apetite por si mesmo. Por seu todo racial.

Portanto, a partilha dos alimentos é desigual, eu concluo. Alimentos esses que têm por nomes cultura, fé, Jesus Cristo, eu concluo. Mas se a pretofagia não é alternativa à antropofagia oswaldiana, se ela alimenta diferentemente e a outros buchos que não os do “povo brasileiro”, devo dizer, por outro lado, que a cristofagia, aquela tão espontaneamente mencionada no título do vídeo espanhol, é exatamente o que a cristofobia descreve. Ambas palavras, cristofobia e cristofagia, são significantes distintos para o mesmo significado. Assumem posições distintas sobre ele, é certo, mas lhe enunciam. E põem à mesa o mesmo prato:

Cristofagia [De Cristo- + -fagia] S.f. Ato contrário à prerrogativa de que a apropriação de símbolos cristãos deve se dar por indivíduos rígidos consigo mesmos, nos ditames da religiosidade e, contínuo a eles, em ambientes e usos afins com a sacralidade; nunca afins com a profanação.

Há fome.

________________

Igreja.

Enfim…

Pode parecer, nesta carta enorme, que tergiverso e lhe falo sobre assuntos alheios. Mas não, não quero que seja assim. Quero lhe convencer, caso seja caso de convencer, que agora desejo encaminhar a missiva ao fim. Veja só, se lhe parecer que a cristofagia é algo inventado por mim ou por artistas espanhóis, digo que não. Pouco importa o nome, que somente descreve algo que presente está nos evangelhos, protagonizado por Cristo em mais de uma situação. Na última ceia, ele disse algo como “tomai todos e comei, isto é o meu corpo e o meu sangue, que será entregue por vós”. E se há a possibilidade de compreender que ele se dirigia aqueles apóstolos sentados à mesa, falando para “todos” se servirem do pão e do vinho, venho aqui defender outra interpretação, a mais crível pra mim: a de que ele chamava todo o mundo, todos os seres neste universo, a lhe comerem, orientando os apóstolos que o ofertassem sem comiseração. Pois em outra circunstância, veja bem, ele multiplicou milagrosamente pães e peixes para alimentar uma multidão. Sentou à mesa com homens tidos por escória. Ajudou a embebedar ainda mais uma festa já bêbada, com um vinho ótimo, transmutado de simples água. Ceou com quem iria lhe entregar à morte, consciente disso… Enfim. Parece que, no que tange à alimentar pessoas, Jesus não as discriminava entre boas e ruins. Por isso, igreja, eu digo: porque seria diferente quando ele mesmo, naquele ato derradeiro, se ofertou como banquete?

Entendo que a cristofagia descreve, mais que somente um ato contrário à ascese do cristianismo, uma instrução velada de Jesus, como aquelas cifradas em suas parábolas. Por outro lado, me vejo atento à função litúrgica que o termo cristofobia performa, suplantando qualquer interpretação cristofágica dos evangelhos. E vai além, pois a palavra cristofobia cumpre também um papel na sociedade secular. Para além dos muros dos templos, fora da vida religiosa, os que gritam “cristofobia” ojerizam qualquer tomada de posição de quem queira criticar o cristianismo ou lhe dar usos desviantes. E fazem isso pondo-os sob o mesmo guarda-chuva: o da ofensa; verbo com função social, que se estende desde os confins recônditos do coração dos fiéis até a oficialidade das instâncias legais. Como escrito na lei espanhola: uma “ofensa aos sentimentos dos membros de uma confissão religiosa”.

É muito comum, ao pessoas se dizerem ofendidas, o fazerem como quem declara algo de foro íntimo. Posto dessa forma, já que falamos de sentimentos e não de coisas visíveis, realmente: só o ofendido poderia declarar-se como tal. Por outro lado, ofender não é o nome de um sentimento, mas de um ato. Quem é ofendido é afligido pela ofensa de alguém. Por isso, veja: conjugações do verbo ofender nomeiam não exatamente como certos cristãos se sentem ao serem vistos usando a palavra cristofobia, mas nomeiam, isso sim, quem desejam apontar como cristofóbicos. Nisso, continuamos sem saber quais são os sentimentos frente à cristofagia. E só resta especular… se seria repulsa, raiva, medo. Algum tesão, talvez. Ou ódio, ou vontade. Ou tristeza, quem sabe?

Essa é uma ponta final da ascese cristã, essa que também infiltra toda a vida ocidental: os sentimentos são matéria de segunda ordem quando o que importa é o rigor consigo mesmo. Nesse cenário, é contra os sentimentos que se luta, em favor do adestramento de si. A cristofobia, logo percebo, é apontada pelos que desejam que as liturgias sejam usadas de acordo com os ritos oficiais, já que segregam o sentir difuso dos outros em favor do pensar catequizado dos cristãos – o que propicia estabilidade hermenêutica -. Já a cristofagia, na radicalidade que a última ceia deflagrou, não. A cristofagia vai à mesa e se dá de comer sem medir os sentimentos nem os pensamentos de quem chegou ao banquete. Uma comunhão: tendo a cristofagia por eixo, pensando nas tantas vezes em que Jesus deu de comer e beber com gratuidade em seus gestos, entendo que a conversão e a ascese cristã, tão mais propaladas, viriam em segundo lugar.

Ei. Se todas as igrejas fossem cristofágicas, o cristianismo amalgamaria com pessoas muito diversas. Seria presente na vida biográfica de tantas que a moral cristã das histórias perderia força. Ouvir-se-ia sobre santas e crentes ao passo que se ouviria sobre traficantes, adolescentes com Iphones, ateus, operárias, pessoas trans… Nessas igrejas, quem sentasse em seus bancos iria discutir e negociar com todo o mundo, mas como se fosse parte de sua mesma família; pois todo o mundo teria pra si o que quer que fosse cristão. Mais: seus bancos enfileirariam pessoas muito diversas, e por isso as histórias do cristianismo seriam, ano após ano, pluralizadas. Se todas as igrejas fossem cristofágicas, teriam o nome do mundo.

Mas te compreendo, igreja. E por isso te digo sobre o que te digo. Sei que pra você não basta. A despeito do meu mundo dito pecador, eu acho, já ser as igrejas que faltam, você quer se erguer, para ler todas as histórias sem precisar dar a elas um fundo moral. Uma igreja mais afeita a ouvir que a interpretar o dito e o escrito. Compassiva, alguns diriam… Ecumênica… Por isso te digo. Sobre a cristofagia, sobre a cristofobia… sobre tudo isso. Já nem lembro mais. Não estranharia se você dissesse que conhece tudo isso e deseja agir como planeja agir ao pensar nas coisas tal qual eu também disse. Sei que não são novidades, mas precisava conversar contigo: sua vontade em ser essa igreja, tanto a ver com o que eu vi…

Imprimirei esta carta. A colocarei num envelope. Escreverei meu e-mail nele. O lacrarei num plástico, em seguida. Nos muros que cercam seu terreno, sei que há uma abertura. Na altura de uma caixa de correios, no mesmo formato. É uma abertura, contudo: um buraco que dá a ver o matagal que brota seu solo. Jogarei esse pacote por ele, saiba disso.

Aos que tenham desavisadamente esta carta em mãos, não achem estranho eu endereça-la a uma igreja só porque a cataram num terreno baldio. Não, não há um terreno baldio. Pode parecer estranho. Quem me ler vai pensar em quê? “Donde ele tirou que tem uma igreja aqui, e uma igreja assim?” Não. Eu não saberia argumentar, mas você está aí. Não se trata da capela que já foi, nada disso. Você está aí. Talvez aquela em chamas, Notre-Dame, lembre algo de você… Tem aquele templo de tijolos aparentes, de Ventura Profana… Sim, cê sabe. Eu sei. Sem enganos… É aí.

 

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