Conto do escritor carioca ganhador do Prêmio Sesc de Literatura de 2013. João Paulo Vereza mora em São Paulo e trabalha como redator publicitário. Seus contos, de histórias leves, carregam quase sempre um tom irônico. Maria Leporina foi originalmente publicado no site Mundo Mundano em 2012.
maria leporina
Maria Leporina, na torre da cozinha, picando e chorando a cebola. Ouve a criançada gritando da rua, “desconjuro, Leporina, só o diabo que te beija.” A faca de Leporina maltrata os pedacinhos carnudos, o sangue da cebola escorre para a pia. “Só o Cão que te quer, Leporina”, as crianças pela janela, demônio que são elas. A acidez espeta o olho, a lágrima pinga e ela lambe, a língua eqüina pelos dentes sem beiço. ”Leporina, Leporina louca, quem tem coragem pra sua boca?”
Maria Leporina, no quarto enclausurado, apertando e rezando o terço. Minha Santa Mãe, mãe do Pai, mãe do Filho, protege eu no meu caminho. Ela se ergue dos joelhos, afasta o véu do rosto e dá sua bitoca rachado na imagem bibelô. A vela amolece a cera, a chama escura nas paredes, Leporina abre o guarda-roupa e se enxerga no espelho para se deitar. Seu reflexo lhe sorri, “ai ai, boca de caveira, tá rindo de quê?”
Sopra a vela sem fazer bico, sua cama sozinha de tão fria, adormece e ronca, vibra o nariz feito corneta.Seu sonho tem lábios, tem amor e calor de homem, passa batom, canta parabéns, que delícia, restinho de calda na boca inteira. Leporina, Leporina danada, quanta cor tem a sua estrada.
Cido Beberrão, no umbral do casarão, cantando e chamando Leporina.Faz o homem a serenata, bambo dum lado pro outro, “cadê Leporina, nossa musa desbocada?” Ela aparece no alto da janela, de véu e composta, “cala boca, cabra doido!, te taco um saco de bosta.” Leporina, Cido se rende com os braços pra cima, “ouça você, venho sem agressão, tenho pedido a fazer.” Destranca os cadeados de proteção, Leporina de trás da fresta da porta, sua voz de trás do véu, “ande, fale, tenho sono pra voltar.” Leporina, “me permita a intimidade, trago um desafio do birosca, cem vinténs, mil tostões, apostaram com Cido se ele retornar com seu véu na mão.” Olhe que audácia, espie a ousadia, o bêbado se achega e continua, “dona Leporina, tem negócio, jeito fácil, me passe agora o véu, eu mostro de troféu e divido contigo o montante.” Ela decide a resposta, na sua frente um homem de bandeja, ensopado de aguardente, mas ainda assim um macho de nascença.
Desamarra o véu das orelhas, a carranca dentuça, rosto ratazana, “toma esse pano, guarde seu montante, quero de troca é um beijo bem dado.” Cido Beberrão está distante, tanta cana na veia, tanta mais vai comprar com o dinheiro, traga o ar da noite escura e cola sua boca no crânio sorridente.
Maria Leporina, no portão enamorado, sugando e mastigando o bêbado. Cido Beberrão tenta dar o romance por encerrado, Leporina o abraça feito vingadora e abre seu bocão deformado. Beija, beija até não sobrar mais nada, seu beijo apocalipse engole tudo, some com ele no vazio entre a boca e o nariz. Do Beberrão só resta o chapéu, seu bafo e lembrança levados junto com o vento.
Leporina, Leporina besta, tenho pena de quem te beija.