Carregando uma pesada cruz entre o que escrever e o que retirar de sua antologia poética, o poeta era interrompido paulatinamente por sua necessidade de se libertar. Havia cinco anos, ele trabalhava incansavelmente na construção de textos que fossem capazes de atingir a forma perfeita, a invencibilidade, o Kitsch de todos os tempos. Vez ou outra largava tudo e vivia um pouco de tristezas e suas cadeias.
Seus rabiscos feitos a quatro mãos, não passavam de uma tentativa insignificante de superar a si mesmo, num exercício falho de sobreviver às próprias dores e demências. Seu único trunfo na vida era o legado de doenças pueris que seu pai houvera lhe deixado, com algumas manifestações asmáticas e um pouco de incapacidade pulmonar. Tudo que ele necessitava para culpar a vida por suas misérias.
Mas não era só de misérias que vivia o poeta, a alegria, apesar de não lhe ser cotidiana, vez ou outra adentrava à sua boca e lhe proporcionava um sorriso largo todas as vezes que finalizava um trabalho ao qual julgara satisfatório. Seria algo puramente indolente de sua parte se assim não o fizesse, pois para todos os homens nascem ternos segundos de glória.
Sua última namorada cansada de suas manias teatrais e eloquentes, o deixou a ver navios para deitar-se com um homem muito mais feio e imprestável. Para ele, tudo completamente normal, uma vez que ela também viera de fossas jogadas de outras pocilgas e bares, da vida amena e amarga.
Completara vinte e três anos e sequer saberia dizer sua idade ao certo depois de um ou dois copos de cachaça os quais tomava habitualmente com os amigos nas esquinas todas as sextas-feiras. Bebia até não aguentar levantar-se, e dormia no chão sujo, com um cheiro fétido, descamisado e com os dentes sujos. Vez ou outra, duas ou três prostitutas aproximavam-se dos corpos despedaçados, batiam as suas carteiras, cheiravam os seus rostos, e quando levavam alguma nota, de menor valor que fosse, beijavam suas bocas em agradecimento, mesmo quando estas ainda estavam cheias de putrefação da última ceia.
Mas não era sempre que o João se deixava enganar por esses mistérios da banalidade, que nunca enganavam ocultamente, e sempre pegavam de cheio o nosso sujeito. Quando lúcido e menos canibal, tratava de embriagar-se com papel e caneta, escrevendo algumas odes e poemas clássicos. Na última vez que lapidara uma bela poesia, foi aplaudido de pé numa dessas convenções da high society literária. Nada que lhe servisse para o ego ou para a alma.
Quando resolveu parar de beber por uns dois ou três dias, foi um homem íntegro o suficiente para escrever o seu grande livro, juntou todos os últimos poemas que tinha produzido, separou as suas ordens devidas, tomando cuidado para costurá-los um a um de maneira delicada e que permitisse um fluxo contínuo. Ele era realmente bom nesse negócio de letras e literatura, sempre sabia colocar o ponto no lugar devido, a vírgula no espaço correto, acentuando corretamente e preocupando-se com a rima. João era desses homens ideais, que a gente se casa por prazer de fazer amor com um artista, por prazer de sentir o prazer de um artista, por prazer de ter prazer da arte.
Sabia sorrir, conquistar qualquer garota ou garoto do bairro, nunca ficava sem companhia, fosse na favela ou no apartamento cinco estrelas do Leblon, João sempre tinha um amor, amor para dar, amor para receber, amor para ouvir uma poesia depois do fim da felação, amor para ser cúmplice na sua epopeia do tempo.
Um daqueles homens que a gente percebe nos olhos que é destemido, que não tem medo da morte ou da falta de criatividade, que respeita seus ciclos de gênesis, e os intercala com muito álcool e bravas leituras. Mas também sabia sentir medo.
Sentiu medo quando achou que tivesse perdido a sua caneta da sorte, sentiu medo quando lhe roubaram o caderninho de anotações, sentiu medo quando viu a presidente no jornal, sentiu medo quando viu o seu pai passando num porsche branco na Delfim Moreira. O João estremeceu, pensou que fosse a hora de voltar pra casa, de largar a vida de artista, de largar a liberdade e voltar para sua casa modernista da zona sul. O homem ficou parado, extasiado, sem reação. Mas o velho passou rápido e despercebido não viu o moribundo do próprio filho na esquina com a camisa desabotoada e alguns cachos bagunçados na cabeça.
De todos aqueles homens e mulheres imundos, com pedaços de sujeira entre as dobras da pele, com o suor escorrendo para a linha dos lábios e as nádegas friorentas, João era o mais sábio, o mais culto, o mais artista.
Não dominava a arte dos prazeres sexuais como um profissional, tampouco das drogas ou baixarias, apenas a arte do álcool, da fermentação, do estopim de festa. Assim como também da arte pela arte, a arte pura, a arte sublime, que somente os artistas mais singulares eram capazes de fazer. João era um homem forte, filho da burguesia e muito atraente, com uma barba ainda por fazer, cabelos louros encaracolados, estudante das artes e das literaturas. Tinha em suas mãos o universo. Um universo sem limites para muita embriaguês artística e muito amor, assim ele convivia todos os dias com a vida. João, era poeta, e assim como todo poeta, nunca está só.