Eram nove horas da manhã quando encontramos Alberto Pucheu na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pucheu, que é professor há mais de dez anos, seguiu carreira em Filosofia para depois se doutorar em Literatura – talvez mais um de seus esforços de quebrar as barreiras que existem entre esses dois mundos. Aproximar a escrita poética da filosofia é um traço marcante em sua obra. Seu livro “A Fronteira Desguarnecida (Poesia Reunida 1993-2007)”, publicado pela Azougue Editorial em 2007, reúne todos os seis livros lançados ao longo de dez anos. Nesse ano, Pucheu publicou seu mais recente livro de poesia, “Mais cotidiano que o cotidiano”, também pela Azougue. Na entrevista, falamos sobre cidade, afeto, saída, silêncio, enfim – tudo a que uma conversa com um poeta tem direito.
USINA – Estávamos falando agora a pouco sobre a entrevista do Vinícius de Moraes com o Jayme Ovalle na Revista Azougue…
Alberto Pucheu – Você sabe que essa entrevista fui eu que descobri. Teve uma época em que uma editora estava fazendo um projeto chamado Arquivinho do Poeta, que era um arquivo do Vinicius. E me chamaram para fazer a cronologia do Vinícius. Fazer cronologia é um saco. Mas como era um trabalho pago e eu estava desempregado, resolvi fazer. E então para cada entrada da cronologia dele eu decidi colocar algum verso do próprio Vinicius que correspondia à entrada. E o bom é que Vinícius tem poema para tudo. Para o pai, para a mãe, a casa em que nasce… para todos os elementos autobiográficos. Para fazer isso eu fui em arquivo, procurar coisas dele. Aí eu descobri essa entrevista nessas pesquisas, e falei para o Sérgio [Cohn] da Azougue que ele tinha que publicar a entrevista. Também descobri nessa época ensaios do Vinícius de crítica de cinema, que mais tarde o Sérgio fez um livro. Bom, isso tudo para dizer que a entrevista é maravilhosa. E eu não leio ela há uns quinze anos, que foi quando eu a descobri… Então as perguntas aqui vão ser assim estapafúrdias, né?! Vambora!
USINA – Você acha que existe saída, A Saída?
Acredito que existam saídas, não que exista A saída. Por que senão seria acreditar que existe uma possibilidade que sobreponha à qualquer outra. Acredito que existam saídas, e dentro dessas que são possíveis nós acabamos indo, e sendo levado em direção àquela que é mais possível para gente. Não acho que há saída se A saída for entendida como a grande saída da vida. Acredito que saídas são sempre pequenas. Mas que A Saída seja a nossa idealização, e, ao idealizar essa Saída, acabamos encontrando uma saída menor, que não esperávamos. É uma saída: a nossa, a minha, a de cada um.
USINA – Existe na sua obra uma relação meio dúbia com a cidade. Ás vezes ela aparece como uma maré de vozes, uma coisa meio caótica, e, de fato, ás vezes como uma experiência de saída. E, nesse momento da sua vida você mora fora da cidade [no Vale do Socavão], mas ainda mantém uma relação com ela. Você acha que a cidade aparece como uma saída?
Pucheu – Acredito que existe essa possibilidade de leitura, ou de contrassenso, entre a cidade e o Socavão. Ainda que eu ache que não seja uma contraposição, pelo menos na poesia. Para mim o que mais importa, seja em um ou em outro, é a poesia estar muito comprometida com a afirmação da vida, e obviamente com a afirmação do lugar em que eu me encontro, que está em mim, que me constitui. E, obviamente, essa experiência da cidade é muito intensa, da dilaceração; muito mais do que é da tranquilidade. Você nunca se torna íntimo da cidade; ela é justamente o que impossibilita a sua intimidade com ela. A cidade está sempre deslocando o seu conforto; o carro, o ônibus, barulhos infernais, respirar fumaça, com a sirene no seu ouvido. Não é confortável! É a Fronteira Desguarnecida. E é uma coisa que está colocada no meu trabalho inteiro, onde as vozes da cidade vão entrando no texto. Eu nem escrevo mais: acato, acolho, escuto. Sentava em ônibus e pegava trem para ouvir conversa. Teve um momento de dar a cidade não apenas o elemento de referência, mas trazer as vozes da cidade para o poema, minimizar o máximo uma suposta possibilidade de uma criação de uma voz pessoal, em nome das vozes da cidade. Deixar as vozes aparecerem ali. Para mim, também a cidade, ao longo dos poemas, não era só, e nem tanto, ainda que isso também é uma questão de tema, ou de referência. Fazer uma poesia urbana, sobre o Rio de Janeiro (Sebastianópolis), claro que tendo uma referência à cidade como designação. Mas o que eu queria mais com a minha poesia, era chegar a uma tentativa de uma sintaxe urbana. O que estava me motivando na maior parte do tempo era como eu conseguiria trazer para a escrita essa fragmentação , esse caótico. De que maneira que ele poderia adentrar a sintaxe? De que maneira que eu conseguiria ter uma escuta do poema em que eu poderia escutar buzina, sirene, pratos quebrando: esses diversos sons que a gente escuta diariamente. A ideia minha era: como fazer uma poesia dentro do barulho? e que, ao mesmo tempo, se sustentasse em algum grau como poesia.
USINA – Você leva esse barulho para o poema, mas você como poeta vai para o silêncio.
Pucheu – Sim, eu preciso demais do silencio. Acho que essa parte da Cidade da minha poesia, era o “como lidar”, como dizer sim à Cidade. Somos estrangeiros na cidade. Não estou dizendo que não somos estrangeiros no campo – também somos estrangeiros lá – mas na cidade tem um atravessamento dispersivo muito grande. O teu corpo é um corpo misturado ao maquínico. Os sons da cidade estão dentro de você, a dispersão da cidade está dentro de você. A minha experiência no Socavão é muito forte: nos últimos três anos eu tenho ido muito para lá.
Por conta de acontecimentos familiares eu arranjei uma casinha num canto da cidade, simples, mas com um terreno lindo. Enfim, o que me traz ao Rio, no fundo, é o amor. Se não fosse o amor eu ficaria lá direto. Tem uma experiência lá para mim hoje, que do mesmo modo que a cidade, é a experiência de um suposto fora que te invade, e que te constitui enquanto pessoa. A diferença é que o que te constitui no Socavão é um tempo absolutamente outro que o urbano. É pedra, é rocha, é floresta, o céu azul! É mais confortável dizer que eu sou rocha, céu e floresta do que eu sou sirene, acidente de transito, sacanagens institucionais, jogos de força colocados o tempo inteiro. O jogo de força da natureza é mais tranquila. Ainda mais para mim, que levo uma vida de estudos, de escrita. É o que importa para mim hoje em dia: ler, escrever, ter alguns amigos, e o amor. Não há muita dispersão, o tempo sobra lá. Eu tenho um lado ansioso, lá essa ansiedade é baixada, vou dormir às 20h30 da noite. Lá você lê, lê, vai tomar banho de rio, lê mais, e o tempo sobra.
USINA – Voltando agora para a relação entre poesia e filosofia: não só nessa relação mítica, mas também na forma como você escreve em fragmentos e proposições, que está muito presente na filosofia.
Pucheu – A poesia se tornou aquilo de mais importante na minha vida no mesmo momento em que a filosofia também se tornou. Eu já escrevia antes, mas escrevia sem ler, por necessidade. Aí teve um momento em que fui ler Drummond, Pessoa, como todo mundo, né? Logo depois fui ler Mautner, e adorei! Foi nesse momento que a filosofia entrou na minha vida, por puro acaso. Coincidentemente foi um momento em que as duas forças interagiram em mim. E eu fui para a filosofia por causa do Zaratustra do Nietzsche. Eu era uma pessoa que escrevia poesia e fui fazer filosofia. Fui impelido pelo Zaratustra para mudar um monte de coisa na propria vida. E o Zaratustra é esse livro em que poesia e filosofia também é indiscernível, é uma fronteira desguarnecida completa entre poesia e filosofia. Desde então, eu poderia dizer que tudo que eu queria era isso: ao longo do tempo – conforme eu fui escrevendo e publicando – tudo que eu queria era descobrir de que maneira que eu conseguiria cumprir no meu imaginário um certo arco que iria da poesia a filosofia, da poesia ao ensaio, da poesia aos modos de escrita teóricas, tentando buscar cada vez mais os pontos medianos desse arco. Os pontos em que filosofia e poesia não fossem lugares extremos, mas que fossem lugares de interseção. Então, para o poeta a filosofia sempre foi importante como leitura, inclusive antes de eu começar a dar aula. E agia no poeta com uma força muito grande. A professora que virou a minha orientadora de mestrado, que era de filosofia grega bancava essa minha interseção entre filosofia e poesia. Teve um encontro com estudantes de filosofia grega no IFCS, com os professores. Eu levei um poema que tinha escrito a partir do Crátilo do Platão. E todo mundo lendo ensaio, obviamente, textos sobre filosofia grega, mas eu li um poema. E a minha orientadora bancou isso! Depois eu soube que ela teve que escutar horrores dos outros professores por conta do meu poema.
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Eu nunca quis dar aula. As duas coisas que eu queria fazer era escrever e estudar. Na época o meu sonho era ter uma bolsa vitalícia, acabei conseguindo dando aula. Então teve certo momento em que para a poesia a leitura da filosofia era fundamental. E quando eu comecei a dar aula eu não conseguia conciliar o dar aula com o escrever poesia. Era muito difícil. Dar aula tem essa coisa de ter que falar, tem que ter uma proposta, tem que ter um texto. E por mais que você possa sair dele você tem que retornar a ele. Tem que tornar aquilo de alguma maneira legível. Você pode sair, mas tem que retornar. Enquanto que o poeta não; você está lendo uma coisa, e então ela lhe gera outra coisa. E você vai em direção a essa coisa! acabou aquilo de antes. O Rimbaud te gera alguma coisa, e então acabou Rimbaud, você já parte para o seu próprio poema! Enquanto que dando aula sobre Rimbaud você é forçado a voltar ao Rimbaud! Isso era um ponto para mim, e quando vim dar aula aqui na UFRJ, eu fiquei oito anos sem escrever nada de poesia. Entre 2002 e 2010, fiquei sem escrever nada, nem uma linha. E no início eu estava adorando dar aula aqui.
Eu tinha dado aula numa faculdade particular, e tinha achado um horror! Não sabia, então, se gostaria de dar aula na UFRJ. Eu não gostava de dar aula. A minha experiência tinha sido tão traumática que eu não gostava. E eu achei que a última saída para mim era fazer um concurso para a UFRJ. E eu dizia para mim: se eu não gostar de dar aula aqui, desisto de dar aula. Porque aqui seria o lugar perfeito, poderia lidar com o que quisesse. Então eu tive que tentar passar por essa experiência aqui, que seria a saída que se colocava para mim. Talvez se não gostasse viraria tradutor, sei lá. Mas no início estava adorando! Só não resolvi a questão da poesia. E foi então que eu tive a sacação óbvia, que foi a que me fez ficar feliz aqui integralmente: eu me dei conta de que as leituras teóricas que iam para a poesia, agora teriam que ser o inverso: o poeta é que tem que ir ao teórico. Vamos resolver isso buscando uma escrita ensaística que seja também poética. Vamos enveredar nesse caminho. E aí foi quando eu me libertei; tanto fazia se era poema ou ensaio. Já não dizia respeito à forma, que aí a poesia já deixava de ser uma coisa meramente de gênero… o que importa é escrever, criar! Não importa da onde que a poesia vem. E, então o primeiro poema depois desse gap de oito anos surgiu a partir de uma aula. É o poema do surfe, que é de retorno à escrita poética. Eu estava explicando isso em sala: o verso acaba, mas a oração não acaba, e então você a interrompe e volta no próximo verso com ela. Aí eu brinquei com os alunos: como um surfista na onda. Então eu lembrei que fazia muito tempo que não via um filme de surfe; cheguei em casa à noite e peguei um filme sobre ondas gigantes.Fiquei extasiado com aquilo! E então surgiu o poema! A partir daí fui ver todos os filmes de surfe, e voltei a escrever.
USINA – E quando surgiu Kafka nessa história?
Pucheu – Agora! Quero dizer, eu já tinha lido Kafka antes, mas não dessa forma. Nesse ano que eu tirei para ficar no Socavão, em que eu fiz pós-doutorado…. e é engraçado que todo mundo achou que iria fazer a pós em Paris; e eu falei: que nada! eu quero morar no Socavão! A pós vai ser uma maneira de eu conseguir morar lá! E então eu perguntei um amigo meu que dá aula na UERJ, no Instituto de Artes da pós, se poderia fazer a minha com ele. Falei a minha proposta, e ele aceitou. E agora esse projeto vai sair, está no prelo. Vai sair pela Azougue. Mas, então, peguei esse tempo em que estava no Socavão fazendo a pós, estudando e escrevendo. Estava acabando esse livro, e um dia, para descansar, fui reler Kafka. E fiquei extasiado! Fui inteiramente absorvido! Fui ler sobre… Acabou virando uma obsessão desses últimos três anos. Nem é meu projeto de pesquisa, mas meu estudo acabou virando um livro que deve sair ano que vem. Kafka, então, entrou por um acaso, na minha vida, não foi uma escolha.
Fica essa coisa, eu tenho um apartamento aqui no Rio e essa casa no Socavão, então a biblioteca se divide, e o únicos livros que eu tinha lá de prosa era Kafka e Borges, que eu tinha levado para a minha namorada. Se ela quisesse ler alguma coisa que pegasse uma coisa que não tem erro! Meu projeto, no entanto, não é esse. Só fui inteiramente absorvido por Kafka.
USINA – Como você vê a relação entre obra e vida?
Pucheu – Eu não consigo ver nenhuma separação entre escrita e vida. O que significa dizer, em algum grau, que isso o que a gente chama de obra – o que essa construção do livro de poemas, por exemplo, é chamado de precariamente de obra – está o tempo todo acionado na nossa própria vida. Inclusive quando alguma força te leva a escolher, ou a ser escolhido, ou a encontrar a saída menor que você pode. Pela escrita isso implica em várias coisas. Implica em aprender a lidar com muito pouca grana. Eu tive sorte que sempre tive uma família que me deu o básico: nunca paguei aluguel. Isso me permitiu dizer a mim mesmo, quando eu parei de dar aula na universidade particular, que não precisava de dinheiro para viver. Só para comer. Então eu poderia viver com muito pouco. É isso: dava para comprar o meu próprio tempo por um preço muito baixo, era só eu gastar pouco. E foi isso que eu fiz durante muito tempo. Depois de um tempo eu não estava satisfeito, mas eu acho que em vários níveis essa implicação entre obra e vida também significa dizer que a sua vida é uma obra. Ela também se coloca num movimento de criação. E a nível estrito a obra de poema que você cria é atravessada pela intensidade da sua vida, e vice versa. Quero dizer, muitas vezes a intensidade da vida vai para o poema, e a intensidade do poema vai para sua vida. Então, acho que essa relação nunca é de representação. É difícil falar disso, mas são implicações mútuas a partir de um certo campo de intensidade que opera tanto no que diz respeito ao que é chamado da tua vida pessoal, tanto no que diz respeito no que você escreve. Um afetando o outro. A única maneira de se falar isso é muito mais numa questão de atravessamento de forças do que outra coisa. Por exemplo, existe um trabalho de corpo diferente entre o intelectual e o esportista. Isso te transforma. As forças que operam entre um e outro são diferentes. Uma força inclusive entre o anonimato do escritor e a celebridade do jogador de futebol.
USINA – A princípio você não queria ir para a sala de aula, mas acabou se tornando um professor. Como foi isso?
Pucheu – Pois é, porque assim, eu queria estudar e escrever. Tive bolsa de iniciação científica, do mestrado, do doutorado, ai acabou né. Foi ter pós-doutorado bem depois, mas acabou e ai eu falei “e agora?”, por isso eu queria bolsa vitalícia, que ai eu ficava em casa estudando a vida inteira, mas não existe. Ai a saída foi dar aula, só que eu adorei essa saída, eu adoro dar aula, hoje pra mim é de uma realização imensa, ainda que eu acho que é uma realização…é uma realização imensa, adoro, essa coisa, é um privilegio, estar com vocês assim, honestamente falando, é o único emprego do mundo que você só encontra jovem, só você envelhece, mas ninguém envelhece, os jovens quando envelhecem saem, fazem a faculdade e saem, ai vão entrar mais jovens, que dizer, você ta sempre lidando com uma galera nova, aberta, disposta, e isso já é uma coisa hiper bacana. E essa coisa minha, eu acho, da poesia e da teoria ao mesmo tempo, porque isso me constitui, então quando vai pra sala de aula acho que é isso também, acho que de alguma maneira, desde ai que eu to falando. E ao mesmo tempo que…eu to sempre escrevendo, buscando escrever pelo menos, nem sempre escrevendo, estou sempre nessa diversidade. Então se eu começo a ler Kafka com mais seriedade que quero escrever, entendeu? Qual é a questão aqui que me interessa? Aliás uma delas vida e obra, o diário de Kafka…diário é vida-obra, ele nunca quis publicar, mas é escrito. As cartas. Então, assim, eu fico, caramba, que incrível, foda, como eu posso levar esse meu espanto para o texto? Como eu posso dizer esse “porra é foda kafka”, não vou falar isso num texto, mas isso é o que move na verdade, sabe, você ta lendo e fala “caralho!”, filho da puta, é por isso que a gente escreve, por isso que a gente vai escrever ensaio, pra dizer esse caralho, pra dizer essa exclamação, de uma maneira minimamente consistente, sem dizer que ta dizendo caralho, acho que esse é o grande lance, não adianta dizer caralho, cheio de exclamação, como você entra nessa exclamação, como você desdobra a sua leitura dessa exclamação, tentando fazer com que essa leitura também seja exclamativa, tanto quanto a dele. Se consegue ou não é outra coisa, a tentativa é essa.
Agora, como é que eu escrevo sobre a Construção? Como eu escrevo a partir da Construção? Não sei, no impasse do momento, entendeu?
USINA – Sobre a produção da obra que a gente estava falando antes. Tem uma coisa que a gente discute sempre, que é uma crise do novo, em discussão na produção criativa como um todo, seja na arte, na literatura. E essa crise do novo, ao mesmo tempo que somos bombardeados pela novidade, a ideia de inovação, por outro lado tem uma crise do novo, o novo só como aspecto de algo que já foi feito. Ou seja, algo que a gente já viu, só que com uma nova cara. Quer dizer, o novo é possível?
Pucheu – Achei ótima sua colocação. Eu tô em vista com outra coisa, mas vou dizer primeiro uma, que é o seguinte. Tem essa coisa de que tudo já foi dito, que de alguma maneira atravessa o que você falou. Eu diria assim, tudo já foi dito, mas tudo ainda resta dizer, acho que essa dimensão da falta é constitutiva, não há possibilidade de tudo já foi dito, não existe, se tudo já foi dito acabou o mundo, travou o mundo, se a palavra é alguma coisa da dimensão de uma pura positividade que não há falta, travou, congelou o mundo. Então acho que se por um lado a gente vive um momento que temos um acesso ao passado monumental, e uma acesso ao presente também, monumental. Você pode ter acesso a tudo, você pode ter acesso da pintura rupestre ao que há de mais performático de um maluco que ta fazendo alguma coisa agora, entendeu? Quer dizer, é claro que há um excesso nisso, mas acho que esse excesso de maneira alguma é um excesso amedrontador. Acho que é um excesso que ele pode ser usado, se você não trabalha como monumento, ele pode ser usado a favor da criação. Em relação ao novo, focando mais no que você perguntou, eu acho que existe uma ânsia do novo muito grande como se nós soubéssemos o que é o novo, como se esse novo pudesse ser determinado. Porque falar que se faz algo novo de alguma maneira esta dentro de um jogo de poder
USINA – A priori, você sabe o que é o novo.
Pucheu – Exatamente, aprioristicamente você saberia já o que é o novo e consequentemente eu faço o novo. Eu acho que se o novo é novo ele é novo exatamente porque nós não conseguimos elaborá-lo, o novo só é novo na medida em que a gente não consegue saber dele. Então o novo só funciona como um certo motor inacessível, você nunca acessa o novo, porque se você pode dizer o novo ele já deixou de ser novo. O novo só é novo enquanto você não pode dizê-lo, porque se você diz: “essa musica aqui é nova”, já deixou de ser nova, ela se estabeleceu enquanto alguma coisa. Então acho, que por mais que nos instigue um atravessamento qualquer em direção, eu não diria o novo, mas eu diria em direção a isso que é inapropriável, é preciso que a gente tenha esse inapropriável como motor, o que significa dizer, que eu não quero também ficar fazendo coisas que todo mundo já fez, então existe alguma dimensão que me lança numa tentativa, ou que lança a todos nós numa tentativa de criar uma experiência, de escrita ou de obra, ou do que quer que seja, criar essa experiência, fazer essa experiência criadora, e essa experiência não é nem uma recusa do passado, até porque hoje a gente não tem mais essa passado dado, acho que hoje quando a gente olha pra trás a gente está construindo essa passado, que passado? Que passado que a gente ta construindo? Não há mais um passado completamente dado, acho que o passado se faz…aquela cena da Odisséia, do Ulisses tendo que dar sangue pro Tirésias dizer o caminho dele de volta, tem que dar sangue dos vivos pros mortos poderem falar. Temos que dar o nosso sangue do nosso tempo pro passado poder falar, é com o sangue dos vivos que o passado fala. Acho que é um experiência na verdade, se não há esse passado dado, se o passado também é uma construção a gente perde essa necessidade que a vanguarda tinha de romper com o passado. E por outro lado, acho que o novo talvez seja uma direção em relação ao inacessível que nos move, mas uma vez que você realiza, já deixou de ser novo, então sempre é alguma coisa do âmbito do impalpável, do não sabido, do desconhecido.
USINA – E já é uma outra relação com o novo, porque, foi isso que você falou, a vanguarda tem uma necessidade de se afirmar enquanto novo, em definir o novo. E a gente, pelo menos no que você coloca, já é uma outra postura diante do novo, de enxergar que na verdade, enfim, você alcança…esse movimento pode partir de lugares menos prováveis.
Pucheu – A gente vive num momento, eu acho, pós-vanguardista, o que significa dizer, não é mais um momento de ruptura, o que não significa dizer que não é um momento de experimentação, mas significa dizer, que não há um modo especifico de fazer arte, nem dois, nem três, nem cinco, que se sobredetermina em relação aos outros, há um vazio também nesse modo, o que não é dizer que vale tudo indiferentemente, o que significa dizer assim, o modo singular de como eu entro nesse jogo, ainda que esse modo singular não possa ocupar esse lugar vazio, ou seja, é quando eu acho que há uma dimensão política do fazer, se eu faço poema assim e não assado, é que eu quero intervir dentro do jogo de uma certa maneira, o que não significa dizer que é a única, o que não significa dizer tampouco que eu poderia intervir de qualquer maneira. Eu só posso intervir com essa, mas é dentro dessa que eu quero afirmar, ai chega o outro que quer afirmar de outra e o outro de outra, e acho que é esse embate que forma esse campo do contemporâneo, digamos assim.
USINA – Mas agora a gente tem esse momento pós-vanguarda, um pouco pautado por essa ideia de que só a expressão já vale e a técnica seria marginalizada, deixada um pouco de lado. A ideia do oficio, do poeta enquanto artesão.
USINA – Ou o contrário, porque, por exemplo, com as novas tecnologias, há um domínio pleno dessa técnicas, até por exemplo nessa nova experimentação da poesia visual, de tentar levar a poesia pro espaço, há uma coisa também de achar que você domina um técnica, de que agora a gente vai fazer uma poesia que é super tecnológica e que não garante nada de estado poético necessariamente…
Pucheu – Uma coisa importante que está sendo dita é como a variedade de formas chegou a um ponto de uma multiplicidade cada vez maior, de se não ter mais controle de uma forma específica querendo se sobrepor à nenhuma outra, sabemos que essa essência da arte é vazia. Por um certo lado, o que se chama a atenção é que isso pode acarretar num certo esvaziamento da técnica. Mas também posso dizer que por um outro lado, ocorre na arte também um fortalecimento do conceito. Essa arte que esvazia a técnica, por um certo lado, é a arte que quer se colocar como arte conceitual. E onde a invenção do conceito se sobrepõe em relação a própria obra material. E consequentemente a técnica fica submetida a uma outra dimensão. Que não é mais uma dimensão de um privilégio dela própria enquanto técnica. Se você faz a grande obra você tem a ideia de uma obra: essa ideia já é a obra. Alguém que colhe neblina, e registra. Não é a neblina que é a obra, é a ideia. Não se trata de uma técnica. Ao mesmo tempo, o que você sinalizou do ponto de uma arte conceitual em detrimento de uma arte da artesania. Ela também trouxe um ponto que a gente está vivendo o tempo todo hoje. Como não existe essa dimensão obrigatória de uma grande técnica, se você é um poeta e quer mexer com video-poema, você não precisa ser um Godard do cinema. Você pode pegar uma câmera qualquer e fazer um filme, e ele pode ficar legal! Pode ter nesse vídeo, com uma simplicidade qualquer, com uma carência de conhecimento técnico, uma dimensão poética bacana, e que pode nos afetar mais que uma suposta grande obra. Esse é o ponto difícil, eu acredito. Ao mesmo tempo que existem poemas que são trabalhados artesanalmente, mesmo que não sonetos, mesmo que não forma fixa. Mesmo que leve cada um a descobrir qual é o seu modo, sua técnica, a artesania do seu trabalho. A Gabi está fazendo vídeos agora, tenho adorado ficar brincando, ficar fazendo vídeo-poema, tenho usado vários poemas meus. O primeiro que a gente fez juntos foi de um arranjo do livro novo que é em busca de um paradigma para a relação entre o crítico literário e o poeta, que são frases ditas por surfistas de ondas gigantes. É essa coisa da dupla, do jet-ski e do surfista, que depois alternam. A relação entre o poeta e o crítico é essa, um que coloca o outro na onda. Não numa dimensão de oposição, pois ambos são artistas, teóricos e críticos. Tem vários poemas-vídeo, mas esse foi o primeiro poema crítico, o primeiro vídeo de crítica literária (risos), brincadeira, né? Depois ela fez um lindo sobre uma história do Kafka, que ela pediu para eu fazer. Aí eu disse que não fazia, mas o roteiro, eu podia escrever, e escrevi. Saiu na Cult, agora, no dossiê. Foi um vídeo super bonito. Você pode abrir mão de uma técnica, ninguém está querendo ser um Kurosawa. É um vídeo menor, de uma linha de fuga, uma saidinha, um fio que você quer explorar, ou então um poema que eu me dedico mais. Gosto dessa coisa da experimentação, onde a performance do fazer artístico ganha um elemento bacana, e o resto dessa performance, o que a gente chama de obra, é que tem várias maneiras disso aparecer, não obrigatoriamente pelo grande desempenho da técnica ou da artesania.
USINA – A gente acabou com isso do grande mito, da grande narrativa, e agora não sei se são várias pequenas narrativas, ou várias grandes narrativas. Mas a gente teve essa discussão da modernidade, também. Um fala que é pós-moderno, outro fala que é muito moderno e outro fala que nunca fomos modernos. Ninguém sabe o que é o novo, a gente não aprende.
Pucheu – Exatamente. Tem um texto meu, que está saindo nesse livro, chamado “Efeitos do Contemporâneo”, que é uma maneira minha de lidar com o contemporâneo. É um texto longo, de 28, 30 páginas, não sei. Muito rapidamente falando, a ideia dele é essa mesma, que o contemporâneo é exatamente isso que é inapreensível. E que do contemporâneo nós só lidamos com os efeitos dele, não propriamente com ele. A gente lida com ele como uma coisa inapropriável. A gente está sempre lidando com alguns efeitos do contemporâneo. Que efeitos do contemporâneo que eu valorizo mais, que me interessam mais, nos quais eu entro mais. Aí entra nessa dimensão o jogo da política, da política artística. A que “Ó, o que você diz não é o que você diz, nem o que ninguém diz ou que se coloca num lugar central”. Mas, assim, quais são os atravessamentos dos quais te interessam falar? Te interessa ir para um lugar de experimentação das novas tecnologias? De hibridismo das tecnologias? Te interessa ir para uma experimentação de fazer sonetos? Como? Paulo Henriques Britto, por exemplo, que é um sonetista exímio, (faz) uma série de sonetos maravilhosos que falam do contrabando, são falas de contrabandistas em soneto, como Manoel de Barros diria, “ele está passando a mão na bunda do soneto”, ele está sacaneando o soneto, tá rindo do soneto, ao mesmo tempo que ele próprio é o soneto. Todo elemento do fetiche erótico, que acaba também se tornando o fetiche do soneto, que tematiza o fetiche o tempo todo. “Pé sujo, fedorento, chulé, quero chupar o pé do cara”, entendeu, é esse modo de lidar com formas fixas, da tradição…
USINA – E artesanato para além das formas fixas, também.
Pucheu – Exatamente, como é que se quebra lá uma hora, coloca o verso quebrado, não coloca a rima, faz versos brancos. Cada um tem um jeito de lidar com isso, ou outros podem partir para uma experimentação mais radical. Você pode juntar verso e prosa, fazer várias experimentações.
USINA – Técnica com arranjo do ritmo do poema.
Pucheu – É, exatamente, qual é o ritmo do poema? E, ao mesmo tempo, qual é o ritmo que você está querendo instaurar nesse projeto, que te interessa ao longo do projeto. Meus poemas estão se tornando cada vez maiores. No “Numa fronteira desguarnecida”, quando acabei o “Escritos da Frequentação”, quando se acaba um livro, você passa um tempo sem escrever, você fica um tempo meio jurando que nunca mais vai escrever uma linha na vida. Com poesia você sente que é o último livro, acabou, você não tem mais o que dizer. Não tem mais, esvaziou completamente. Você se sente esgotado, você não vê uma possibilidade nova, mas eu lembro que depois de um tempo, depois que eu acabei “Escritos da Frequentação”, eu ouvi um ritmo qualquer, e eu pensei “acho que esse ritmo é o ritmo da minha próxima poesia”, só que eu não sabia que ritmo era porque não tinha palavra, olha que maluquice. Aí um dia eu estava lendo René Char na biblioteca da Aliança, ali no Centro, e falei “é isso!”, aí fiz um poema ali na hora, e pensei “é esse o ritmo!”, aí fiz o livro inteiro nesse ritmo, os bloquinhos, ali, né, em prosa. Aí depois, sei lá, o “Ecometria” começa em verso e termina em prosa, o “A vida é assim” já é misturado poema e prosa, esses agora são versos que vão se alongando, poemas longos. Não todos, mas muitos. O do presidente é um poema longo, essa coisa que eu queria que o poema fosse uma onda, 30 metros de poema (risos).
USINA – É bonito porque é uma ideia da poesia como uma ambiência, como um estado. Mais do que como uma forma, ou até mais do que como uma palavra, ela é um estado.
Pucheu – É, eu fiquei muito pensando, você falando assim, porque até o século XIX, as grandes viagens, essa relação com o mar é uma relação dos navios, do Ulisses. A Moby Dick, passando pelos descobrimentos, é uma relação dos navios lidando com o mar, o perigo ao mar, e eu tenho que atravessar o mundo, e para isso, dez anos como Ulisses ficou, que eu tenho um barco. Aí chega o século XX, chegam os surfistas e diminuem o extremo, é uma prancha, são dois metros, 4 cm, sei lá, de largura, é isso que separa do abismo. Para mim essa imagem é muito forte. Na verdade a questão do poema para mim não é tanto formal. O poema é aquilo que sobre a marca do informe, é o que resiste ao informe, é aquilo que te aproxima e te separa do informe do mar. 30 metros, cara, são dez andares! Um prédio de dez andares que os caras estão descendo, ou seja, é a morte na certa. Só não é morte porque os caras são geniais, são incríveis.
USINA – Então o surfista tem muito a ver com o poema.
Pucheu – Completamente, todos os meus livros foram uma onda dessas (risos). Todo meu reino por um cavalo! “A kingdom for a horse, my poems for a wave”! (risos)
USINA – O que é afeto para você?
Pucheu – O afeto é o que mais nos move, tudo é afeto, vida é afeto. Não sei, afeto é um ser impactado por qualquer outro. Exceto que o afeto talvez seja essa dimensão porosa do nosso corpo e da nossa vida, mas acho que é o que há de mais importante, mesmo que por um gato, por uma pedra, por uma árvore, por uma pessoa. Por uma onda. São afetos marítimos, intensidades marítimas. Tem um termo que eles usam, que vem da Polinésia, que traduziram, que é o “waterman”, que são aqueles caras que o meio deles é a água, caras que podem ficar horas na água, salvar pessoas na água, sobreviver condições inteiramente adversas. Por isso que nesse livro novo tem um poema chamado “languageman”, que parte do “waterman”, que é essa brincadeira. Eu não sou um “waterman”, o que me coube foi ser um “languageman” (risos). Onde o afeto, como o poeta, a teoria, a aula, a relação de conversa, a entrevista, se passa pela palavra. Não é só a palavra, mas ela dá a dimensão do afeto, do ser impactado, afetado pela palavra. Ter sido analisado pela palavra. Não sou o “waterman”, mas a minha lida com as condições adversas e incríveis são pela palavra, não pela prancha.
USINA – Você surfa?
Pucheu – Não, aí eu fui tentar surfar quatro vezes (risos).
USINA – Você tem fama de surfista!
Pucheu – Mas a fama eu vou deixar rolar, por causa dos poemas (risos). É só fama. Não acredite na fama!