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Corpo que se molda

junho, 2023

Alice Nin

Entre ver as fotos e fazê-las tem um abismo gigante. Ai que você se toca do tamanho do processo que você vai encarar toda hora. Depois você realiza que sendo mulher é bem mais chato. A troca de ideia perpassa lugares que os meus amigos homens, ao fotografar, não precisam atravessar. Eles se jogam no mundão e saem por aí clicando tudo e todos sem muitos poréns em relação ao corpo deles. A câmera na mão de uma mulher é outra coisa. Tem que aprender a jogar com isso, não tem jeito. Fico de cara em como a roupa que eu to usando muda tudo. Se eu saio com um vestido e sandália, ai é foda. Se eu boto uma bota, calça jeans e blusa meio séria, ai é mais fácil. Parece que as pessoas me levam mais a sério, e ai respeitam um pouco mais. Só que mesmo assim é chato, além de quente. Como é que faz então? Eu não quero ter que agir de um jeito masculino pra fotografar as coisas, mas ao mesmo tempo não rola de ficar aguentando os olhares e comentários sempre. Vai te consumindo e ai você desiste de sair pra fotografar. Só que se der aquela insistida consigo mesma rola. Ultimamente tenho conseguido levar mais na lábia os caras, de um jeito que pra mim é mais confortável, e sem engolir sapo deles.

A gente fez uma caminhada que saía de Benfica até o Centro, para um trampo do Norte Comum.

Botei uma calça jeans uma bota e uma blusa mais séria, (encarei como um experimento). Me senti bem ridícula, porque eu não sou daquele jeito, mas foi de fato bem mais fácil pra fotografar os homens. Teve um vendedor da estação de trem que foi muito simpático, ele tinha um sorriso bonitão, todo galante, pediu meu telefone depois que tirei foto dele. Teve um cara estranhíssimo que ficou fazendo umas analogias da câmera que eu não entendi direito e que claramente só deixou eu fotografar ele depois de me dar uma boa olhada. Mas ai você encontra uns caras como esse motoqueiro. Descemos a escada da estação de metrô e demos de cara com ele. Tava ali paradinho em cima da moto, numa boa. Fui lá pedir pra fotografar, ele me olhou tranquilo e quase que sem se mexer falou que sim. Ele praticamente não se mexeu. Depois a Gabi comentou comigo uma coisa que eu boto muita fé, ele é dessas pessoas que o corpo parece que se sustenta em harmonia no espaço, sem esforço nenhum. Corpo encaixadinho na moto, não consigo imaginar ele fora dela. Corpo que se molda. Esses encontros de olhares em que mal se fala as vezes são os que mais valem a pena, ele tava tão confortável olhando pra mim que eu me senti confortável também. Como se assim rapidinho eu fosse ele e ele fosse eu.

 

Gabriela Perigo

saímos as 6 da manha da casinha, eu tomei um banho gelado pra não duvidar que tinha acordado. foram poucas horas de sono e não fosse estarmos todos juntos ali provavelmente teríamos desistido. Fomos. de benfica andando até o centro da cidade, praça tiradentes. o dia já estava amanhecido, o céu claro mesmo que o sol não tivesse posto a cara ainda. os corpos já se agitavam uns aos outros acordando a cidade pro dia de trabalho. naquele dia nosso tempo de um caminho não objetivo era estranho aos outros corpos que em acordos silenciosos caminhavam lado a lado apressando-se entre si. os fluxos intensos das gentes transpassavam meu corpo parado no meio da passarela do metro de são cristóvão. da onde também se via o ponto de ônibus do 460/461. lotado. um monte de gente esperando os poucos ônibus que atravessam a cidade pelo rebouças e chegam muito mais rápido à zona sul mesmo que num aperto só. me lembrou eu mesma pegando o 476 pra ir pra praia, até 8 da manha sai um extra da porta lá de casa em vez de sair do méier, e é o jeito mais rápido de chegar na praia, disseram que ele ia acabar, então toda vez que aparece descendo o viaduto eu celebro por dentro, foi um pouco estranho estar com a intenção de registrar fotograficamente aquilo ali, parecia que transformava a vivencia em uma simulação, um pouco, as vezes só. se eu pensasse, sim.

mas no fim das contas o fato é que andamos, e andamos. e andamos. e eu andei por lugares que passo a anos, quase todos os dias da minha vida mas que nunca tinha colocado os pés no chão. vi outras coisas. e outros céus. passamos por um monte de lugar que não era lugar de gente, era lugar pra carro, e não fosse estarmos em muitos me sentiria insegura ali. eu e meu corpo de mulher no meio de avenidas e viadutos. ainda perto de casa, escombros e vias em construção, uma cidade remendada, a paisagem me lembrou uma outra cidade que a praia está em erosão e o mar avançando, já comeu uns 4 quarteirões. por aqui, a especulação imobiliária erode a periferia e deposita seus escombros vivos e mortos repaginados, maquiados, na orla da cidade, zona nobre da cidade. casas e memórias apagadas no meio do caminho. insistem pelas frestas como as plantas nas rachaduras das casas abandonadas. mas meus pés nem chegaram a cansar, foi estranho constatar a proximidade dos pontos de partida e chegada. 1 hora e meia entre aqui e lá. é muito perto, e é muito longe. os viadutos distanciam as passadas. vimos o centro recebendo o monte de gente que vem de perto e longe todo dia, tododia tododia. e que se não vem, não abre a loja, nem a padaria, nem o escritório. o fluxo de gente que vem abrir os olhos e acender as luzes de cada janela dos prédios infinitos. o que aproxima ou distancia mundos? há tempos já não tem a ver com distância contável em km.

 

texto e foto sobrepostos na diagramação da USINA impressa

 

Desalinho
E me aninho
No quase

Costura de
Agulha fina
Ponto embolado
Sem precisão

Minha carne
Na pele do mundo

Avessos podem não se tocar
Mas serem entrelaçados
Pelo mesmo fio

Pinga sangue quente
No chão
Quase não
Debaixo do viaduto

 


 

Atento
Intento dizer
Mas na hora
Engasgo

Tudo gasto
Feito os muros das cidades esquecidas/
Apagadas

Descasca feito pele ao sol
É pele
Muro é pele de todos

e

A pele o perímetro do corpo.

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