pesquise na USINA
Generic filters

Escuta Profunda (Deep Listening) – Parte 2

Deep Listening

2003

janeiro, 2024

Foto: The Center for Contemporary Music Archives, Mills College

 Nota dos tradutores

Pauline Oliveros (1932-2016) foi uma acordeonista e compositora norte-americana associada aos movimentos da vanguarda da música eletrônica e experimental.  Um de seus conceitos mais importantes é o de “Deep Listening”, ou Escuta Profunda, como traduzimos aqui: a atitude de uma escuta atenciosa e paciente, aberta para a natureza sonora da existência a partir de um estado profundo de consciência. Oliveros procurou desenvolver essa linguagem a partir de diversos exercícios performáticos e meditativos.

Munida de seu acordeão, a compositora convidou o trombonista Stuart Dempster e o artista sonoro Panaiotis para colocar em prática suas ideias. Os três foram a uma cisterna subterrânea, que estava vazia por algum motivo e onde o som reverberava por mais de 40 segundos, e começaram a improvisar como que conversando com o som que tomava conta do lugar. O registro foi gravado e lançado no álbum Deep Listening, de 1989.

No início dos anos 2000, Oliveros publica uma espécie de guia, compilando os exercícios de Escuta Profunda que desenvolveu ao longo de décadas: Deep Listening: A Composer’s Sound Practice (Escuta Profunda: uma prática sonora de um compositor). Dele, tiramos alguns trechos para traduzir. Dividimos em duas partes: a primeira, de caráter introdutório, é o prefácio principal do livro. Nele, Oliveros discorre sobre sua trajetória e relação com a Escuta Profunda.  A segunda parte da tradução é composta de uma explicação mais detalhada do método e alguns exercícios propostos pela compositora. Você também pode encontrar alguns livros e outras informações em seu site oficial.

Aqui você pode conferir a Parte 1 da tradução.

***

INTRODUÇÃO

Qualquer pessoa pode praticar a Escuta Profunda. A forma contida neste livro evoluiu com muitos anos de prática em workshops, retiros e aulas.

O que é a Escuta Profunda?

Essa pergunta é respondida no processo de praticar a escuta com o entendimento de que as complexas formas de onda, continuamente transmitidas do mundo exterior pelo ouvido para o córtex auditivo, requerem um envolvimento ativo com atenção.

Impulsionada pela experiência e pela aprendizagem, a escuta se realiza voluntariamente. Escutar não é o mesmo que ouvir e ouvir não é o mesmo que escutar. O ouvido está constantemente recolhendo e transmitindo informação – no entanto, a atenção ao córtex auditivo pode ser afinada. Pouquíssima informação transmitida ao cérebro pelos órgãos dos sentidos é percebida a nível consciente. Reações podem acontecer sem que tenhamos consciência.

 

Então o que é a consciência?

A consciência foi considerada um epifenômeno pela comunidade científica e não foi estudada de maneira séria até recentemente. A consciência não tinha localização. Além disso, os sinais são percebidos pelo cérebro até meio segundo antes do indivíduo estar consciente de um estímulo. O cérebro lembra-se então do estímulo como acontecendo no momento presente ou no instante imediato, no sentido do tempo. Portanto, a percepção do tempo é uma ilusão.

Então, o que é a consciência?

Consciência é a percepção de estímulos e reações no momento. Consciência é agir com percepção, presença e memória. O que é aprendido é retido e recuperável. Informação, conhecimento sobre eventos, sentimentos e experiências podem ser antecipados do passado para o presente. Desta forma, tem-se o auto-reconhecimento.

O ouvido possibilita ouvir e escutar.

Fisicamente, ouvir significa que as vibrações ou formas de onda que estão dentro da gama da audição humana (frequência tipicamente entre 16hz e 20.000hz e amplitude de 0,05dB a 130dB) podem ser transmitidas ao córtex auditivo pelo ouvido e percebidas como sons.

No entanto, a palavra ouvir tem muito mais dinâmica e significados em uma história cultural  que está em contínua mudança. Ouvir, de acordo com o Miriam Webster Dictionary, pode significar “ouvir atentamente, ou que a informação foi recebida especialmente pelo ouvido; ouvir alguém ou alguma coisa; considerar algo oficialmente como juiz, comissário, ou membro de um júri; compreender completamente alguma coisa; assistir à Missa ou ouvir a confissão na Igreja Católica Romana”.

A escuta tem muito pouca definição se comparada com a audição. Embora as duas palavras sejam frequentemente utilizadas de forma intercambiável, seus significados são diferentes. Escutar, de acordo com o Miriam Webster Dictionary, significa “dar atenção ao som ou sons ou perceber com o ouvido, ouvir com atenção cuidadosa, considerar seriamente”.

Ouvir e escutar tem uma relação simbiótica com o uso comum de algo permutável. Eu diferencio “ouvir” e “escutar”. Ouvir é o meio físico que permite a percepção. Escutar é dar atenção ao que é percebido tanto acusticamente como psicologicamente.

“Ouvir transforma uma gama de vibrações em sons perceptíveis”

A escuta acontece no córtex auditivo e é baseada na experiência das formas de onda sendo transmitidas pelo ouvido ao cérebro. Aprendemos a associar e categorizar sons como mamãe, papai, miau, água corrente, assobios, estalos, cliques e uma miríade de outros sons pela experiência. Muitas formas de onda, depois da primeira experiência, são descartadas despercebidamente sem a interpretação consciente. Entender e interpretar o que o ouvido transmite ao cérebro é um processo que se desenvolve a partir de reações instantâneas de sobrevivência a ideias que dirigem a consciência. O processo de escuta continua ao longo da vida.

As descrições físicas das propriedades sonoras e da escuta não explicam o mundo fenomenal da percepção que acontecem no córtex auditivo. De acordo com Stephen Handel em Ouvir: Uma Introdução à Percepção de Eventos Auditivos¹, “Não há variação da pressão sonora que conduzirá sempre a uma única percepção”. Da mesma forma, não há percepção que venha sempre de uma e apenas uma variação de pressão. Os físicos continuam então a estudar a natureza das descrições físicas do som e psicólogos, a percepção do som. Os físicos podem medir as ondas acústicas e a pressão. Os psicólogos devem medir a experiência dos ouvintes. De forma que nem a disciplina pode compreender a percepção auditiva. Padrões de pressão sonora ajudam a audição, mas a história cultural e a experiência influenciam a escuta.

Então o que é a Escuta Profunda? “Espaço acústico é onde o tempo e o espaço se fundem conforme são articulados pelo som.”

Profunda tem a ver com complexidade e capacidades, limites além das compreensões ordinárias e habituais – i.e “o assunto é muito profundo para mim” ou “ela é uma pessoa profunda”.

Um assunto que é “muito profundo” excede o entendimento espontâneo ou tem muitas partes desconhecidas para ser compreendido facilmente. Uma “pessoa profunda” desafia o conhecimento estereotipado e podemos levar muito tempo, ou mesmo nunca, venhamos a entender ou conhecer.

“Escuta” pareada a “Profunda” ou “Escuta Profunda”, para mim, é aprender a expandir a percepção dos sons para incluir todo o continuum de espaço/tempo do som – encontrando a vastidão e as complexidades tanto quanto possível.  Simultaneamente, uma pessoa deve ser capaz de perceber um som ou sequência de sons como um foco no continuum de espaço/tempo e perceber seus detalhes ou trajetórias. Esse foco deve sempre retornar ou estar dentro do continuum espaço/tempo (contexto). Tal expansão significa que a pessoa está conectada com todo o ambiente e além.

Qual é a diferença entre a Escuta Profunda e a meditação?

Escuta Profunda é uma prática que tem a intenção de ampliar e expandir a consciência do som em quantas dimensões de consciência e dinâmicas de atenção forem humanamente possíveis. A fonte da Escuta Profunda como prática vem da minha trajetória e experiência como compositora de música de concerto, como intérprete e improvisadora.

A Escuta Profunda vem de perceber minha escuta ou escutar minha escuta e discernir os efeitos no meu continuum corpomente, de escutar os outros, a arte e a vida.

Escuta Profunda é uma prática e um termo que não vem de nenhum contexto religioso, mesmo que praticantes de religiões às vezes usem essas palavras. Thich Nhat Hanh² é um monge zen budista, e seu uso do termo “escuta profunda” tem um contexto específico como 1 dos “5 treinos de consciência” que ele propõe. Essa é uma escuta centrada na compaixão para restaurar a comunicação, aliviar o sofrimento e trazer felicidade para todos os seres. Escuta (como um prática nesse sentido) seria treinar para responder com tranquilidade e clareza mental. É uma determinação e um comprometimento para reconciliar e resolver conflitos.

Meditação, em todos os sentidos da palavra, é fundada e definida em diversas religiões e práticas espirituais. A meditação é usada em toda sua rica variedade de sentidos para acalmar a mente e promover receptividade ou concentração.

Em uma configuração religiosa, a atenção é direcionada para questões morais e éticas, valores, crenças e princípios da fé particular e da conexão com o divino, ou um ser divino,  ou seres. Se uma pessoa está refletindo cuidadosa e continuamente sobre algo, ou se engajando em um estudo sério de um tópico em particular, planejando ou considerando uma ação, tanto a meditação religiosa quanto a secular é a atenção engajada de maneira particular. Há um esvaziamento, uma expansão e contração da mente; há relaxamento ou “se deixar ir” e foco (atenção a um ponto). Meditação implica disciplina e controle. Existe algo para praticar!

 

Escuta Profunda é uma forma de meditação. A atenção é direcionada para a interação de sons e silêncios ou para o continuum som/silêncio. O som não é limitado a sons musicais ou falados, mas inclui todas as vibrações perceptíveis (formações sônicas). A relação de todos os sons perceptíveis é importante. A prática visa expandir a consciência para todo o contínuo espaço/tempo de som/silêncios. Escuta Profunda é um processo que estende ao receptor esse continuum, assim como focar instantaneamente em um único som (engajamento para um detalhe direcionado) ou sequências de som/silêncio.

Para adquirir a disciplina e controle que a meditação desenvolve, é essencial relaxamento e concentração. A prática da Escuta Profunda tem a intenção de facilitar a criatividade na arte e na vida através dessa forma de meditação.  Criatividade significa a formação de novos padrões, excedendo as limitações e limites de antigos padrões, ou usando antigos padrões de novas formas.

Animais são escutadores profundos. Quando você entra em um ambiente existem pássaros, insetos ou animais que estão te escutando completamente. Você é recebido. Sua presença pode ser a diferença entre vida e morte para as criaturas daquele ambiente. Escutar é sobrevivência! Humanos têm ideias. Ideias levam a consciência para novas percepções e perspectivas.

O som carrega inteligência. Ideias, sentimentos e memórias são provocadas por sons. Se você é muito estreito na sua consciência de sons, é mais provável que você seja mais desconectado do seu ambiente. Mais frequentemente que não, o modo de vida urbana causa desconexão e um foco estreito. Muita informação chega no córtex auditório, ou o hábito estreitou a escuta para apenas o que parece ser valioso e importante para o escutador. Todo o resto é mal sintonizado ou descartado como lixo.

Compaixão (desenvolvimento espiritual) e compreensão vêm de escutar imparcialmente todo o espaço/tempo continuum do som, não apenas o que preocupa alguém agora. Nesse sentido, descobrir e explorar podem tomar lugar. Novos campos de pensamento podem ser abertos e o indivíduo pode se expandir e achar oportunidade de se conectar a comunidades de interesse de novas formas. A prática aumenta a abertura.

O nível de consciência da paisagem sonora trazido à tona pela Escuta Profunda pode levar à possibilidade de moldar o som da tecnologia e dos ambientes urbanos. Escutadores Profundos que são designers, engenheiros e planejadores de cidades podem aumentar a qualidade de vida, bem como artistas sonoros, compositores e músicos.

Pauline Oliveros, 24 de junho de 2003

Boletim da USINA

Quer ficar por dentro de artes e tudo mais que publicamos?

Nosso boletim é gratuito e enviamos apenas uma vez por mês. Se inscreva para receber o próximo!

Boletim da USINA

Quer ficar por dentro de artes e tudo mais que publicamos?

Nosso boletim é gratuito e enviamos apenas uma vez por mês. Se inscreva para receber o próximo!