David Foster Wallace foi um escritor e ensaísta americano que escreveu proficuamente sobre cultura popular e a vida cotidiana.
Nesse ensaio publicado primeiramente na revista Rolling Stones americana, o autor reconta como em formato de diário a sua reação ao 11 de setembro de 2001, e os ataques terroristas aos Estados Unidos. O autor, nascido em Nova Iorque, morava em uma cidade rural de perfil conservador próxima de Chicago, numa região conhecida como o Meio-Oeste americano.
Na primeira parte do texto, o autor relata os dias seguintes ao 11 de setembro, a sua surpresa com a expressão de patriotismo dos seus vizinhos e a sua saga em busca de uma bandeira, o que envolve um ataque de pânico em uma loja de conveniência. O autor relata de forma pouco sentimental a sua reação e a dos seus vizinhos a esse evento marcante da história contemporânea do seu país e do mundo.
A segunda parte do texto narra no dia do ataque, Wallace assistindo ao noticiário na sala da sua vizinha, Senhora Thompson, junto com um grupo de senhoras da igreja.
De forma também presente em outros dos seus textos, Wallace apresenta um olhar tolerante e curioso em relação aos seus vizinhos que são pessoas em muitos sentidos, políticos e culturais, distantes dele próprio e de muitos dos seus leitores. Esse tratamento cuidadoso em relação a pessoas com diferentes visões de mundo assim como o enfoque pessoal diante de um evento histórico, e do tom em alguns momentos tragicômico para relatar um evento dramático, fazem desse ensaio algo interessante de ser lido.
O ensaio foi posteriormente editado e publicado em uma coletânea de artigos do autor chamada Consider The Lobster, sem publicação na íntegra no Brasil. A presente tradução, no entanto, foi feita a partir do texto originalmente publicado na revista Rolling Stones.
A Vista da Sra. Thompson
Localização: Bloomington, Illinois
Data: 11- 13 de Setembro de 2001
Assunto: Óbvio
Aviso: Escrito muito rápido e provavelmente em um estado de choque
Sinédoque
No verdadeiro estilo do Meio-Oeste, os habitantes de Bloomington não são antipáticos, mas tendem a ser reservados. Um estranho sorrirá calorosamente para você, mas normalmente não haverá bate papos estranhos em áreas de espera ou filas de caixa. Mas agora há algo para falar que supera toda a reserva, como se de alguma forma estivéssemos todos juntos e tivéssemos visto o mesmo acidente de trânsito. Por exemplo, entreouvido na fila do caixa do Burwell’s (que é uma espécie de Neiman Marcus [N.T. uma loja de departamento americana cara] dos postos de gasolina/lojas de conveniência – com localização central ao longo das duas principais vias de mão única e com os melhores preços de tabaco da cidade, é um tesouro municipal) entre uma senhora com um jaleco de caixa da Osco e um homem com uma jaqueta cortada nos ombros para fazer uma espécie de colete caseiro: “Com meus filhos, eles achavam que era algum filme como o Independence Day até que, depois de um tempo, começaram a perceber que era o mesmo filme em todos os canais”. (A senhora não disse a idade de seus filhos).
Quarta-feira
Todo mundo tem bandeiras à mostra. Casas, empresas. É estranho: você nunca vê ninguém colocando uma bandeira, mas na quarta-feira de manhã lá estão todas elas. Bandeiras grandes, bandeiras pequenas, bandeiras de tamanho normal. Muitos proprietários de casas aqui têm aqueles suportes especiais para bandeiras em ângulo na porta da frente, do tipo cuja fixação requer quatro parafusos Phillips. E milhares dessas pequenas bandeiras de mão em um bastão que você normalmente vê em desfiles – alguns quintais têm dezenas delas espalhadas como se tivessem brotado da noite para o dia. Os moradores de estradas rurais prendem as bandeirinhas em suas caixas de correio na rua. Alguns carros têm elas presas na grade ou na antena com fita adesiva. Algumas pessoas de classe alta postes de fato; suas bandeiras ficam a meio mastro. Diversas casas grandes ao redor do Franklin Park ou no lado leste têm enormes bandeiras de vários andares penduradas como estandartes sobre suas fachadas. É um completo mistério onde as pessoas conseguem bandeiras tão grandes ou como as colocaram no lugar.
Meu próprio vizinho, um contador e veterinário aposentado cujos cuidados com sua casa e gramado são nada menos que fenomenais, tem um mastro de bandeira anodizado de tamanho regulamentar fixado em 45 centímetros de cimento reforçado que nenhum dos outros vizinhos gosta muito porque acham que atrai raios. Ele diz que há uma etiqueta muito especial para ter sua bandeira a meio mastro: Você deve primeiro levá-la até o topo e depois abaixá-la até a metade. Caso contrário, é um insulto ou algo do tipo. Sua bandeira está esticada e se destaca de forma elegante ao vento. É, com folga, a maior bandeira da nossa rua. Também é possível ouvir o vento nos campos de milho ao sul; soa como o som de ondas leves quando se está a duas dunas de distância. A adriça da bandeira do Sr. N. tem elementos de metal que se chocam de forma barulhenta contra o mastro quando está ventando, o que é outra coisa que os outros vizinhos não gostam. A entrada da garagem dele e a minha ficam quase lado a lado, e ele está aqui fora, em uma escada, polindo o mastro com algum tipo de pomada e um pano de camurça – sem brincadeira – e, para ser justo, é verdade que o mastro de metal dele brilha como a própria ira de Deus.
“Linda bandeira e aparato de exibição, Sr. N.”.
“É pra ser mesmo. Custou caro.”
“Viu todas as outras bandeiras espalhadas por todo lado esta manhã?”
Isso faz com que ele olhe para baixo e sorria, ainda que de forma um pouco sinistra. “Impressionante, não é?” O Sr. N. não é o que se poderia chamar de o vizinho mais amigável. Eu realmente só o conheço porque a igreja dele e a minha estão na mesma liga de softball, na qual ele atua com imensa precisão como estatístico do time. Não somos amigos. No entanto, ele é o primeiro a quem pergunto:
“Me diz, Sr. N., caso alguém, tipo um estrangeiro ou um repórter de TV, viesse aqui e perguntasse para você qual é exatamente o propósito de todas essas bandeiras em todos os lugares depois do Horror e de tudo ontem – o que você acha que diria?”
“Ué” (depois de um breve intervalo olhando para mim com o mesmo tipo de olhar que ele geralmente direciona para o meu gramado) “para mostrar nosso apoio e empatia em relação ao que está acontecendo, como americanos. “*
O que quero dizer é que, na quarta-feira, há uma pressão estranha para que bandeiras sejam colocadas. Se o objetivo de uma bandeira é fazer uma declaração, parece que em um determinado ponto de densidade de bandeiras, não ter uma bandeira que é mais como uma declaração. Não está totalmente claro que declaração seria essa. E se você simplesmente não tiver uma bandeira? Onde todos conseguiram essas bandeiras, especialmente as pequenas que podem ser colocadas na caixa de correio? Elas são todas do feriado de 4 de julho e as pessoas simplesmente as guardam, como enfeites de Natal? Como elas sabem que devem fazer isso? Até mesmo uma casa meio desmoronada na rua abaixo, que todo mundo achava que estava desocupada, tem uma bandeira no chão perto da entrada da garagem.
As Páginas Amarelas não têm nada na categoria Bandeira. Há uma tensão interna real: ninguém passa ou para o carro e diz: “ei, sua casa não tem uma bandeira”, mas fica cada vez mais fácil imaginar as pessoas pensando isso. Nenhum dos supermercados da cidade tem bandeiras em estoque. A loja de decorações no centro da cidade não tem nada além de coisas de Dia das Bruxas. Apenas algumas empresas estão abertas, mas mesmo as que estão fechadas estão exibindo algum tipo de bandeira. É quase surreal. A Organização dos Veteranos de Guerra poderia ter, mas não pode abrir até o meio-dia, se é que abre (tem um bar). A senhora da Burwell’s faz referência a uma certa loja de conveniência horrorosa na estrada 1-74, na qual ela tinha a impressão de ter visto algumas bandeirinhas de plástico nas prateleiras junto com todas as bandanas e bonés da Nascar, mas quando chego lá, elas já não estão mais lá, foram levadas por desconhecidos. A realidade é que não há uma única bandeira para se ter nessa cidade. Roubar uma do quintal de alguém está claramente descartado. Estou parado em uma loja de conveniência com medo de ir para casa. Todas aquelas pessoas mortas, e uma bandeira de plástico é o que me leva ao limite. Não fica realmente ruim até que as pessoas começam a perguntar se estou bem e tenho que mentir e dizer que é uma reação ao remédio de alergia (o que de fato pode acontecer)…. Até que, em mais uma das estranhas reviravoltas do destino e das circunstâncias do Horror, é o próprio dono da loja (um paquistanês, a propósito) que me oferece consolo, um ombro amigo e um estranho tipo de compreensão não verbal, e que me deixa ir sentar na sala de estoque, em meio a todos os vícios e indulgências mesquinhas que os Estados Unidos têm a oferecer, e me recompor. E que, um pouco depois, em meio a xícaras de isopor de um tipo estranho de chá cheio de leite, sugere gentilmente, papel chamequinho colorido e canetinhas coloridas, o que explica minha agora amada bandeira artesanal.
* Mais algumas respostas selecionadas de vários momentos do dia da caçada às bandeiras e às canetinhas, quando as circunstâncias permitiram que a pergunta fosse feita sem que a pessoa parecesse um espertalhão ou indolente:
“Para mostrar que somos americanos e que não vamos nos curvar a ninguém.”
“A bandeira é um pseudo-arquétipo, um semion reflexivo projetado para antecipar e negar a função crítica” (estudante de graduação).
“Por orgulho.”
“O que elas fazem é simbolizar a unidade e que estamos todos juntos apoiando as vítimas nesta guerra. Que eles mexeram com as pessoas erradas desta vez.”
Vistas aéreas e terrestres
Bloomington é uma cidade de 65.000 habitantes na parte central de um estado que é extremamente plano, de modo que você pode ver os pontos principais da cidade de muito longe. Três grandes interestaduais convergem para cá, além de várias linhas de trem. A cidade fica quase exatamente no meio do caminho entre Chicago e St. Louis, e suas origens envolvem ser um grande depósito de trens. Ela tem uma cidade gêmea menor, Normal, que foi construída em torno de uma universidade e tem uma história um pouco diferente. As duas cidades juntas têm cerca de 110.000 habitantes.
Em se tratando de cidades do Meio-Oeste, a única coisa notável em Bloomington é sua prosperidade. Ela é à prova de recessão. Parte disso se deve às terras do condado, que são de fertilidade renomada e tão caras que nem é possível descobrir quanto custam. Mas Bloomington também é a sede nacional da State Farm, que é a grande deusa das trevas dos seguros para consumidores e, para todos os efeitos práticos, é a dona da cidade, e por isso o lado leste de Bloomington é todo composto de complexos de vidro fumê e empreendimentos pré-fabricados e um anel viário de seis pistas de shoppings e franquias que está matando o antigo centro da cidade, além de uma grande e cada vez mais ampla separação entre as duas classes e culturas fundamentais da cidade, que são tão bem e verdadeiramente simbolizadas respectivamente pelo SUV e pela caminhonete*.
O inverno aqui é um impiedoso filho da puta, mas nos meses quentes Bloomington se parece um pouco com uma comunidade à beira-mar, exceto que o mar aqui é o milho, que cresce de forma esteróide e se estende até a curva da terra em todas as direções. A cidade em si, no verão, é intensamente verde: ruas banhadas por sombra de árvores e jardins explosivos das casas, parques do tamanho de CEPs e campos de golfe para os quais você quase precisa de proteção ocular para olhar, além de fileiras e mais fileiras de amplos gramados fertilizados sem ervas daninhas, todos alinhados perfeitamente até calçada com ferramentas especiais. (As pessoas aqui gostam muito de cuidar do gramado; meus vizinhos costumam cortar a grama com a mesma frequência com que fazem a barba). Para ser sincero, isso pode tudo ser um pouco assustador, especialmente no auge do verão, quando ninguém está na rua e todo aquele verde só fica no calor e ferve.
Como muitas cidades do Meio-Oeste, B-N é abarrotada de igrejas: quatro páginas inteiras na lista telefônica. Tudo, desde unitaristas até pentecostais deslumbrados. Tem até uma igreja para agnósticos. Com exceção das igrejas – e talvez os desfiles normais, fogos de artifício e alguns festivais de milho – não há muita comunidade pública. Todo mundo tem sua família, seus vizinhos e um pequeno círculo de amigos. Pelos padrões de Nova York, as pessoas são reservadas.** Elas jogam golfe, fazem churrasco e vão ao cinema…
…E eles assistem a uma quantidade colossal e extraordinária de TV. Não estou falando apenas das crianças. Algo que é óbvio, mas ainda assim crucial de se ter em mente em relação a Bloomington e ao Horror, é que a realidade – qualquer senso realmente sentido de um mundo maior – é televisiva. O horizonte de Nova York, por exemplo, é tão reconhecível aqui quanto em qualquer outro lugar, mas o que a torna reconhecível é a TV. A TV também é mais social aqui do que na Costa Leste, onde, na minha experiência, as pessoas estão quase sempre saindo de casa para se encontrar pessoalmente em locais públicos. Não costuma haver festas ou encontros propriamente ditos por aqui; o que se faz em Bloomington é reunir-se na casa de alguém e assistir algo.
Aqui, portanto, ter uma casa sem TV é se tornar uma espécie de presença tipo-Kramer constante na casa dos outros, um hóspede perpétuo de pessoas que não conseguem entender por que você optou por não ter uma TV, mas que respeitam totalmente sua necessidade de assistir à TV e lhe oferecem acesso à TV delas da mesma forma instintiva com que se curvariam para te ajudar se você tropeçasse na rua. Isso é especialmente verdadeiro quando se trata de algum tipo de situação imperdível, de uma crise, como a trapalhada da eleição de 2000 ou o Horror desta semana. Tudo o que você precisa fazer é ligar para alguém que você conhece e dizer que não tem uma TV: “Caramba, menino, vem pra cá”.
* Apesar da impressão de algumas pessoas, o sotaque nativo não é sulista, só rural, ao passo que os transplantados corporativos não têm sotaque algum (na frase da Sra. Bracero, o pessoal da State Farm “soa como o pessoal da TV”).
** O termo nativo para uma conversa é uma visita.
Terça-Feira
Há talvez dez dias por ano em que o tempo aqui está lindo, e este é um deles. O tempo está claro, ameno e maravilhosamente seco depois de várias semanas do que parecia ser viver na axila de alguém. É um pouco antes do início da colheita, quando o pólen está em seu pior momento; uma boa porcentagem da cidade está chapada de remédio anti-alérgico, o que, como você provavelmente sabe, tende a dar ao início da manhã uma espécie de qualidade subaquática e sonhadora. Em termos de horário, estamos uma hora atrás da Costa Leste. Às 8 da manhã, todo mundo que tem um emprego está trabalhando, e todos os outros estão em casa tomando café, assoando o nariz e assistindo Today ou um dos outros programas matinais que são transmitidos (nem é preciso dizer) de Nova York. Às 8:00, eu estava no chuveiro tentando ouvir o postmortem do Bears na rádio esportiva WSCR de Chicago.
A igreja a qual eu pertenço fica no lado sul de Bloomington, perto de onde moro. A maioria das pessoas que conheço bem o suficiente para perguntar se posso ir até lá assistir TV são membros da minha igreja. Não é uma dessas igrejas protestantes em que as pessoas usam o nome de Jesus pra cima e pra baixo ou falam sobre o Fim dos Tempos, o que quer dizer que não é maluca ou vulgar, é bastante séria, e as pessoas da congregação se conhecem bem e são bastante unidas. A maioria dos congregantes é da classe trabalhadora ou aposentado; há alguns proprietários de pequenas empresas. Um número razoável de pessoas são veteranos ou tem filhos nas forças armadas ou – especialmente – na reserva, porque para muitas dessas famílias isso é simplesmente o que você faz para pagar a faculdade.
A casa em que acabo sentado, com pedaços de shampoo seco no cabelo, assistindo à maior parte do desenrolar do Horror, pertence à Sra. Thompson,† que é uma das pessoas de 74 anos mais descoladas do mundo e exatamente o tipo de pessoa que, em caso de emergência, mesmo que o telefone dela esteja ocupado, você sabe que pode simplesmente ir até lá. A casa dela fica a cerca de um quilômetro de distância, do outro lado de um estacionamento de trailers. As ruas não estão lotadas, mas ainda não estão tão vazias quanto vão ficar depois. A casa da Sra. Thompson é uma casa térrea pequena e limpa que, na Costa Oeste, seria chamada de bangalô e, no lado sul de Bloomington, é simplesmente chamada de casa. A Sra. Thompson faz parte da igreja há muito tempo, é uma liderança da congregação e sua sala de estar costuma ser uma espécie de ponto de encontro. Ela também é a mãe de um dos meus melhores amigos aqui, F., que foi um Ranger no Vietnã e levou um tiro no joelho e agora trabalha meio infeliz para uma empreiteira que instala franquias da Victoria’s Secret em shoppings. Ele está no meio de um divórcio (longa história) e mora com a Sra. T. enquanto o tribunal decide sobre a disposição de sua casa. F. é um daqueles veteranos de guerra de verdade que não fala sobre a guerra nem mesmo pertence à Organização do Veteranos de Guerra, mas às vezes é sombrio de uma forma atormentada, e sempre vai acampar sozinho durante o fim de semana do Dia do Veterano e dá para perceber que ele tem a cabeça cheia de umas merdas muito pesadas. Como a maioria dos trabalhadores da construção civil, ele precisa chegar cedo ao local de trabalho e já tinha ido quando cheguei na casa de sua mãe, logo depois que o segundo avião atingiu a Torre Sul, ou seja, provavelmente por volta das 8h10. Em retrospecto, o primeiro sinal de choque foi o fato de eu não ter tocado a campainha, mas simplesmente ter entrado, o que normalmente não se faz por aqui. Graças às conexões comerciais de seu filho, a Sra. T. tem uma TV Philips de tela plana de 42 polegadas na qual Dan Rather aparece por um segundo sem paletó com o cabelo levemente despenteado. (As pessoas em Bloomington parecem majoritariamente preferir a CBS News; não se sabe por quê). Várias outras senhoras da igreja já estavam aqui, mas não sei se troquei cumprimentei ninguém, porque lembro que quando entrei todos estavam olhando horrorizados para um dos poucos vídeos que a CBS nunca repassou, que era uma tomada aberta distante da Torre Norte e da treliça de aço exposta dos andares superiores em chamas e de pontos que se desprendiam do edifício e se moviam através da fumaça pela tela, que então um zoom brusco da câmera revelou serem pessoas reais, com casacos, gravatas e saias, com os sapatos se soltando enquanto caíam, algumas se pendurando em parapeitos ou vigas e depois se soltando, de cabeça para baixo ou se contorcendo enquanto caíam, e um casal quase parecendo (não verificável) estar se abraçando enquanto caíam todos aqueles andares, que então foram encolhidos de volta para pontos quando a câmera do nada voltou para o plano aberto – não tenho ideia de quanto tempo a cena durou -, depois disso a boca de Rather parecia se mover por um segundo antes de qualquer som surgir, e todos na sala sentaram e olharam uns para os outros com expressões que pareciam ao mesmo tempo infantis e horrivelmente envelhecidas. Acho que uma ou duas pessoas fizeram algum tipo de som. Não está claro o que mais dizer. Parece grotesco falar em ficar traumatizado com um vídeo quando as pessoas no vídeo estavam morrendo. Algo sobre os sapatos também terem caído piorou a situação. Acho que as senhoras mais velhas reagiram melhor do que eu. Depois, a beleza hedionda da reprise do clipe do segundo avião atingindo a torre, o azul, o prata, o preto e o laranja espetacular, enquanto mais pontinhos em movimento caíam. A Sra. Thompson estava em sua cadeira, que é uma cadeira de balanço com almofadas florais. A sala de estar tem outras duas cadeiras e um enorme sofá de veludo cotelê que F. e eu tivemos que tirar a porta da frente das dobradiças para colocar dentro da casa. Todos os assentos estavam ocupados, ou seja, cinco ou seis pessoas, a maioria mulheres, todas com mais de cinquenta anos, e havia mais vozes na cozinha, uma das quais soava muito perturbada e pertencia à psicologicamente delicada Sra. R., que não conheço muito bem, mas dizem que já foi de uma beleza de grande reputação local. Muitas das pessoas são vizinhas da Sra. T., algumas ainda de roupão, e em vários momentos as pessoas saem para ir para casa, usar o telefone e voltar, ou saem completamente (uma mulher mais jovem foi buscar seus filhos na escola), e outras pessoas chegam. Em um determinado momento, no momento em que a Torre Sul estava caindo de forma tão aparentemente perfeita sobre si mesma – eu me lembro de pensar que ela estava caindo da mesma forma que uma dama elegante desmaia, mas foi o filho normalmente inútil e irritante da Sra. Bracero, Duane, que apontou que realmente parecia como se você pegasse um filme de uma decolagem da NASA e o passasse de trás para frente, o que agora, depois de rever várias vezes, parece realmente exato – havia pelo menos dez pessoas na casa. A sala de estar estava escura porque no verão todos mantêm as cortinas fechadas.*
É normal não se lembrar muito bem das coisas depois de apenas alguns dias ou, em geral, da ordem das coisas? Sei que em algum momento houve o som de alguém cortando a grama, o que me pareceu totalmente bizarro, mas não me lembro se alguém disse alguma coisa. Às vezes parece que ninguém fala e às vezes parece que todos estão falando ao mesmo tempo. Há também muita atividade telefônica. Nenhuma dessas mulheres têm telefone celular (Duane tem um pager cuja finalidade não é clara), portanto, é apenas o velho aparelho fixo da Sra. T. na cozinha. Nem todas as ligações fazem sentido racional. Um efeito colateral do Horror parece ser um desejo avassalador de ligar para todo mundo que você ama. Logo no início, ficou constatado que não era possível entrar em contato com Nova York; o prefixo 212 produz apenas um som estranho e horripilante. As pessoas continuam pedindo permissão à Sra. T. até que ela lhes diz para parar com isso e, pelo amor de Deus, só usar o telefone. Algumas das senhoras conseguem falar com seus maridos, que aparentemente estão todos reunidos em torno de TVs e rádios em seus locais de trabalho; por um tempo, os chefes ficam chocados demais para pensar em mandar as pessoas para casa. A Sra. T. prepara café, mas outro sinal da Crise é que, se você quiser um pouco, terá que pegá-lo você mesmo – geralmente ele simplesmente aparece. Da porta da cozinha, lembro-me de ter visto a queda da segunda torre e de ter ficado confuso sobre se era uma repetição da queda da primeira torre. Outra coisa sobre a alergia ao pólen é que você nunca pode ter certeza absoluta se alguém está chorando, mas ao longo das duas horas de Horror, com reportagens extras sobre o acidente na Pensilvânia e Bush sendo levado às pressas para um bunker secreto do Comando Aéreo Estratégico e um carro-bomba que explodiu em Chicago (este último depois retratado), praticamente todo mundo chora ou não, de acordo com suas habilidades relativas. A Sra. Thompson fala menos do que quase todo mundo. Não acho que ela chore, mas também não balança a cadeira como de costume. A morte de seu primeiro marido foi aparentemente repentina e terrível, e sei que, às vezes, durante a guerra, F. estava em combate e ela não tinha notícias dele por semanas a fio, sem saber se ele estava vivo. A principal contribuição de Duane Bracero é continuar reiterando o quanto tudo se parece com um filme. Duane, que tem pelo menos 25 anos, mas ainda mora em casa enquanto supostamente estuda para ser soldador a arco, é uma dessas pessoas que sempre usam camisetas camufladas e botas de paraquedista mas nunca sonhariam em se alistar (para ser justo, eu também não). Ele também permaneceu de chapéu dentro da casa da Sra. Thompson. Sempre parece importante ter pelo menos uma pessoa para odiar.
Acontece que a causa da crise nervosa da pobre tendinosa Sra. R. na cozinha é que ela tem uma sobrinha-neta ou algo assim que está fazendo algum tipo de estágio na Time, Inc., no prédio da Time Life ou como quer que se chame, sobre o qual a Sra. R. e quem quer que ela tenha conseguido ligar sabem apenas que fica em um arranha-céu vertiginosamente alto em algum lugar de Nova York, e ela está enlouquecida de preocupação, e duas outras senhoras estiveram aqui o tempo todo segurando ambas suas mãos e tentando decidir se deveriam chamar um médico (a Sra. R. tem um certo histórico), e eu acabei fazendo praticamente a única coisa boa que fiz durante o dia todo, explicando à Sra. R. onde fica o centro da cidade. Em seguida, descobre-se que nenhuma das pessoas com quem estou assistindo ao Horror – nem mesmo as poucas senhoras que foram ver Cats como parte de uma excursão de grupo da igreja em 1991 – tem a mais vaga noção do traçado de Manhattan e não sabe, por exemplo, a que distância ao sul ficam o distrito financeiro e a Estátua da Liberdade; é preciso mostrar a eles apontando a água no primeiro plano do horizonte que todos conhecem tão bem (da TV).
Esse é o início do sentimento vago, mas progressivo, de alienação dessas pessoas boas que se acumula ao longo da parte do Horror onde as pessoas fogem dos escombros e da poeira. Essas senhoras não são idiotas ou ignorantes. A Sra. Thompson sabe ler latim e espanhol, e a Sra. Voigtlander é uma fonoaudióloga certificada que certa vez me explicou que o estranho som de engolir que faz com que Tom Brokaw seja tão perturbador de escutar é um impedimento real da fala chamado “glotal 1”. Foi uma das senhoras que estava na cozinha com a Sra. R. que me disse que naquela semana era o aniversário dos Acordos de Camp David, o que eu não sabia. O que as senhoras de Bloomington são, ou começam a parecer, é inocentes. Há o que soaria para muitos americanos como uma estranha ausência de cinismo na sala. Não ocorre a ninguém aqui comentar que talvez seja um pouco estranho que todos os três âncoras da emissora estejam sem paletó, ou considerar que é possível que o cabelo de Rather estar bagunçado talvez não seja 100% acidental, ou que a repetição incessante de imagens impactantes não seja apenas para o caso de alguns telespectadores estarem sintonizando só agora e ainda não terem visto. Ninguém mais parece notar que os estranhos olhinhos sem luz de Bush parecem se aproximar cada vez mais ao longo de sua declaração gravada, nem que algumas de suas falas soam quase como um plágio das declarações feitas por Bruce Willis (como um lunatico de direita, lembre-se) no filme Estado de Sítio, há alguns anos atrás. Nem que pelo menos parte do choque das últimas duas horas tenha sido a semelhança com que várias imagens e cenas espelharam os enredos de tudo, desde Duro de Matar I ao III e Força Aérea Um até Dívida de Honra, de Tom Clancy. Ninguém é ousado ou sofisticado o suficiente para apresentar a reclamação doentia e óbvia da pós-modernidade: Já Vimos Isso Antes. Em vez disso, o que elas fazem é sentar juntas, sentir-se muito mal e rezar. Ninguém faz nada tão nauseante quanto tentar fazer com que todos rezem juntos ou rezar em voz alta ou algo do tipo, mas dá para perceber o que eles estão fazendo.
Não se engane: Isso é, em grande parte, uma coisa boa. Faz você pensar e fazer coisas que provavelmente não faria se estivesse assistindo sozinho, como, por exemplo, rezar, silenciosa e fervorosamente, para que você esteja errado sobre Bush, que sua opinião dele esteja distorcida e que ele seja, na verdade, muito mais inteligente e substancial do que você acredita, não apenas um golem esquisito e sem alma ou um nexo de interesses fantasiado em um terno, mas sim um estadista de coragem e probidade e… e é bom, é bom rezar dessa forma. É apenas um pouco solitário ter que fazê-lo. Pode ser difícil conviver com pessoas inocentes. Não estou afirmando nem por um momento que todos em Bloomington são assim (o filho da Sra. T., F., não é, embora seja uma pessoa extraordinária). Estou tentando explicar o modo como parte do horror do Horror foi saber que a América que os homens naqueles aviões tanto odiavam era muito mais a minha – a minha, a de F. e a do coitado e repugnante Duane – do que a dessas senhoras.
†Nota do editor: alguns nomes foram alterados e alguns detalhes foram modificados.
* A sala de estar da Sra. T. também é o protótipo da classe trabalhadora americana de Bloomington: janelas com vidros duplos, cortinas brancas da Sears com saia, relógio de catálogo com fundo de patos selvagens, estante de revistas com CSM e Reader’s Digest, estantes embutidas usadas para colecionáveis de Franklin e fotos emolduradas de parentes e suas famílias, dois pequenos samplers de tricô de bom gosto com a “Desiderata” e a Oração de São Francisco. Francis, protetores em todas as cadeiras boas e neutras, carpete de parede a parede tão espesso que não dá para ver os pés (as pessoas tiram os sapatos na porta; é uma cortesia básica).