Quando nos deparamos com os curtas-metragens feitos pelo cineasta brasileiro Aloysio Raulino entre 1970 e 1986, construídos em torno de ideias mais do que de histórias, repletos de citações sonoras e textuais, estruturados como colagens de fragmentos, somos tentados a aproximá-los à tradição do filme-ensaio. Sim, esses filmes são muito mais subjetivos do que os documentários convencionais e, comparados com a ficção narrativa, como diria Thomas Elsaesser, “o argumento e a associação prevalecem sobre a antecipação e o impulso narrativo”. Eles são muitas vezes, como diria Laura Rascaroli, “a expressão de uma reflexão pessoal e crítica sobre um problema ou um conjunto de problemas”, sejam eles as desigualdades urbanas, o colonialismo ou o subdesenvolvimento.
Mas se quisermos ser precisos e fazer justiça aos filmes de Raulino, devemos pensar o ensaísmo a partir de uma perspectiva diferente e questionar alguns dos pressupostos que comumente associamos a esse tipo de filme na Europa e na América do Norte. Em primeiro lugar, é preciso duvidar da suposição de que esses filmes “geralmente não oferecem os tipos de prazer associados às formas estéticas tradicionais, como a narrativa ou a poesia lírica”, e que “eles, em vez disso, levam a reflexões intelectuais que muitas vezes insistem em respostas mais conceituais e pragmáticas”. Pois na obra de Raulino, e na de outros cineastas latino-americanos, corpo e intelecto nunca estão separados; as respostas emocionais são tão importantes quanto as conceituais; teoria e poesia sempre andam de mãos dadas.
Thomas Elsaesser afirma, citando Sven Kramer e Thomas Tode: “depois de mais de uma década de crescente atenção acadêmica, começa a surgir um consenso que parece confirmar que os filmes-ensaio ‘são filmes que refletem seu próprio modo de representação, são mais propensos a desenvolver uma ideia do que narrar uma história e, às vezes, produzem trabalhos intelectuais e filosóficos que são uma forma de pensamento ou, pelo menos, estimula o pensamento’”. O consenso acadêmico parece indicar que o filme ensaístico é, acima de tudo, um exercício intelectual.
O cinema de Aloysio Raulino, embora ensaístico em muitos aspectos – refletindo constantemente sobre seus próprios modos de representação, construídos mais em torno de ideias do que de histórias –, desafia constantemente essa suposição. Seu trabalho de câmera é fortemente tátil; seu tratamento visual dos corpos é ao mesmo tempo sensual e analítico; seu estilo de montagem é intelectualmente desafiador, mas nunca distante e pensativo – é sempre bastante musical e emocionalmente envolvente.
Se pensarmos em um filme como Lacrimosa (1970), realizado em colaboração com Luna Alkalay quando ainda eram estudantes universitários, poderíamos certamente identificar algumas ideias sobre as quais o filme se dispõe a refletir. O letreiro de abertura diz: “Recentemente foi aberta uma avenida em São Paulo. Ela nos obriga a ver a cidade por dentro”. Começa então uma viagem pelas margens da metrópole e a câmera busca explorar as vísceras de uma cidade partida, propondo uma reflexão sobre a decadência urbana e o subdesenvolvimento crônico. Mas quando o homem com a câmera (o próprio Raulino) entra em uma favela à beira da avenida, o que nos move não são as informações textuais trazidas pelos títulos esparsos (“O lixo é o único meio de sobrevivência”), mas os rostos das crianças correndo pelo território, os movimentos agressivos da câmera, os silêncios abruptos e os ataques repentinos do Réquiem de Mozart.
Através do trabalho de câmera e da textura sonora do filme, a favela se torna um terreno fantasmagórico habitado pelos condenados da Terra, obrigando-nos a uma resposta corpórea radicalmente emocional (embora nunca fácil ou inequívoca). Ao final do filme, as associações entre um poema, uma canção (ambas do poeta chileno Ángel Parra) e uma imagem provocativa de um mapa do Brasil branco sobre fundo negro nos remetem a um pensamento racional, mas é tarde demais: não iremos esquecer nunca os rostos daquelas crianças que olham radicalmente para o eixo da câmera.
Jardim Nova Bahia (1971) talvez seja o trabalho mais conceitual de Raulino. Começa como um retrato de Deutrudes Carlos da Rocha, um lavador de carros nordestino que luta para sobreviver na megalópole paulista, mas logo se transforma em um filme reflexivo e metalinguístico quando o participante é convidado a produzir suas próprias imagens. O filme é uma experiência inaugural tanto de cinema participativo quanto de etnografia reversa (um dos momentos mais comoventes é quando Deutrudes filma um casal burguês na praia), e nos convida constantemente a questionar a forma cinematográfica, as hierarquias de poder e a relação entre quem filma e quem é filmado.
Mas não há narração, nem reflexão excessiva sobre o gesto, nem comentário verbal sobre os resultados do experimento. Em vez disso, há movimento constante, das cores extremamente brilhantes ao melancólico preto e branco, da música alegre à dança atravessada pela tristeza. O mais importante em Raulino nunca é a força do conceito, mas “a emoção da ideia quando ginga”, como no verso de uma canção sobre futebol de Chico Buarque. O mais importante nunca é afirmar uma ideia, mas vê-la dançar e dançar com ela.
Teremos Infância (1974) começa como um retrato de Arnulfo Silva, “o fenômeno”, um homem que perambula pelas ruas de São Paulo e se descreve como “o mais ilustrado físico orientador da paz de espírito universal supervisor pedagógico psicólogo cientista sociólogo sábio alto de data”, e como uma reflexão sobre a infância empobrecida na cidade grande. Mas quando o filme encontra dois meninos que assistiam às filmagens e passa a acompanhá-los em uma deriva pela cidade, torna-se essencialmente um ensaio sobre a feitura de um retrato. A câmera busca o olhar das crianças, que devolvem o olhar e interrogam o gesto de quem filma.
A câmera habita um espaço liminar entre atração e repulsa, entre transparência e opacidade, como se fosse possível trabalhar intensamente em direção à revelação e ao mesmo tempo lançar reflexivamente o gesto cinematográfico em direção a uma crise. O cineasta incentiva as crianças a falar, mas elas recusam, e tudo o que resta ao espectador são os cacos de uma relação impossível. O ensaísmo de Raulino é háptico: embora o filme certamente aborde as questões mais pungentes da tradição documental – alteridade, desequilíbrio de poder, ponto de vista – ele o faz a partir de um mergulho visceral, cavando perguntas com a fisicalidade da câmera e fazendo-as explodir no ritmo da montagem.
O Tigre e a Gazela (1974) é o filme de Raulino com maior quantidade de informação textual. À primeira vista, poderia ser pensado como um ensaio sobre o colonialismo baseado em Frantz Fanon, onde os retratos e as imagens urbanas funcionam como ilustrações para a tese. Mas o filme é muito mais sofisticado. Os textos de Fanon e Aimé Césaire comentam as imagens de transeuntes, em sua maioria negros, nas ruas de São Paulo, mas sempre há algo que ultrapassa a ilustração ou a definição.
A resistência imemorial manifestada em cada olhar, a alegria indomável dos corpos, o canto da mulher que a princípio aparece como uma confirmação dos danos do colonialismo, mas depois ressurge como uma heroica lutadora pela libertação. “Ó, corpo meu, fazei de mim um homem que interrogue”, diz a frase de Fanon que encerra o filme; interrogar com o corpo: um princípio que poderia abranger toda a obra de Raulino.
No final, nenhuma palavra pode definir mais a realidade, e o filme rompe com a análise racional e se torna pura devoção à energia: as imagens do Carnaval de rua reanimadas pela música afro-brasileira de Milton Nascimento são uma explosão de contraste entre preto e branco, movimento intenso e luzes brilhantes. A fé na festa de Raulino está presente em toda a sua obra, mas aqui torna-se a afirmação vigorosa de uma fuga estética e política da racionalidade colonial.
À primeira vista, O Porto de Santos (1978) parece um diário de viagem, retratando a vida comum ao redor de um dos maiores portos da América Latina. Enquanto ouvimos os sons dos martelos, das buzinas e das ondas do mar, a câmera de Raulino vagueia por uma paisagem composta por enormes navios cargueiros e imensas estruturas metálicas, em busca dos rostos dos estivadores, dos últimos pescadores indígenas, das prostitutas que trabalham à noite. Há algumas informações históricas e sociológicas esparsas sobre a cidade e transmitidas em voz over, mas o ensaio sobre as contradições sociais da região é composto principalmente de observações precisas e encontros fortuitos.
Como outros filmes-ensaio, no dizer de Elsaesser, os filmes de Raulino “são movidos por uma estrutura de pensamento, por mais aparentemente oculto ou à primeira vista imperceptível que esse processo de pensamento possa ser”. Mas então, abruptamente, surge a cena inesquecível em que um homem de cueca dança provocativamente no meio de uma rua de terra, enquanto seus vizinhos vêm assistir à performance e ouvimos uma música popular inteira na trilha sonora. A câmera de Raulino é constantemente arrastada pela afirmação da vida, e sua montagem não hesita em abandonar a tarefa intelectual, entregando-se ao impulso da alegria e da sensualidade. Um filme ensaístico, sim, mas que sabe dançar.
Inventário da Rapina (1986) é o filme de Raulino mais facilmente aproximável à tradição hegemônica do filme-ensaio. O tom meditativo, a estrutura fragmentada e heterogênea, a “multiplicidade mutável do material”, e especialmente a abordagem profundamente pessoal o colocam dentro desse repertório. Aqui, “a ‘voz’ autoral aborda o assunto não para apresentar um relato factual (campo do documentário tradicional), mas para oferecer uma reflexão profunda, pessoal e instigante”.
O filme reúne momentos íntimos familiares (Raulino aparece diante das câmeras pela primeira e única vez em seus filmes), citações de Norman Mailer a Paulo Emílio Sales Gomes e Leni Riefenstahl, imagens alegóricas cuidadosamente compostas, poemas de Cláudio Willer escritos em superfícies diversas ou lidos pelo próprio Raulino na banda sonora, músicas variadas e, claro, não faltam os encontros de rua com trabalhadores, artistas e vagabundos que sempre povoaram esta filmografia.
Embora seja difícil apontar um único tema emergindo do furioso fluxo de imagens e sons, o filme é principalmente um inventário dos vestígios e das consequências do colonialismo no Brasil. É uma desconstrução de discursos monumentais e práticas violentas e a afirmação de uma visão dissonante. Mas é tão enigmático que, mesmo para quem passou anos assistindo, revendo e analisando este filme, alguns momentos ainda resistem à interpretação.
Mesmo a obra mais ensaística de Raulino está extremamente próxima da poesia. Até o seu filme mais intelectual é um musical. Até o mais melancólico está cheio de utopia. “Não este país fantasmagórico / que se quer presente o tempo todo / e tenta invadir até mesmo o nosso sono / porém outro país / redescoberto agora, mais uma vez / neste encontro dos nossos olhares / outro país que ainda lateja / sob o tapete trêmulo do Terceiro Mundo”, diz o poema, enquanto as crianças retiram a venda e olham, mais uma vez, diretamente para o eixo da câmera.
Thomas Elsaesser escreve:
“Agora que o filme-ensaio está ganhando terreno também fora da Europa, na América Latina e em África, onde tradicionalmente se esperava que os documentários fossem instrumentos contundentes de advocacia política, apoiando causas específicas, expondo males sociais ou atuando como armas militantes em lutas políticas — pensemos no “Terceiro Cinema” argentino ou no “Cinema Novo” do Brasil — a adoção da forma mais solta e reflexiva do filme-ensaio pode ser uma indicação, não necessariamente de que essas lutas foram vencidas, mas de que um tom mais pensativo e melancólico reflete agora o estado da política e do engajamento pessoal também nos países do Hemisfério Sul.”
Esse tipo de representação historiográfica do cinema documental na América Latina é muito comum entre críticos e historiadores do Norte Global, mas é ao mesmo tempo flagrantemente ignorante e francamente equivocado.
Se associarmos o engajamento político e a instrumentalização da forma num sentido tão totalizante, o que faríamos com os filmes-ensaio ambivalentes, provocativos, irônicos, subjetivos e reflexivos realizados por Gerardo Vallejo, Nicolás Guillén Landrián, Sara Gómez, Arthur Omar, Ana Carolina e Paulo Rufino, Raúl Ruiz, Gabriela Samper, Carlos Álvarez ou Aloysio Raulino ao longo das décadas de 1960 e 1970 em países como Argentina, Cuba, Chile, Brasil e Colômbia?
Não existe uma conexão automática e obrigatória entre um filme ser uma arma numa luta política e a sua forma ser fechada e irreflexiva. Além disso, a pensatividade e a melancolia não deveriam ser critérios para o ensaísmo no cinema. Muitos cineastas latino-americanos compuseram ensaios intelectual e formalmente extraordinários, mas de uma forma engajada, furiosa e, muitas vezes, alegre e profundamente emocional.
O arco narrativo de Elsaesser, que sugere a história de uma forma que está sendo desenvolvida na Europa e na América do Norte e que depois chega ao Hemisfério Sul para sofisticar esses pobres documentários militantes, não é apenas politicamente problemático e com traços de colonialidade, mas também historicamente incorreto. A forma subversiva, polifônica e inesgotável de ensaísmo praticada por esses cineastas não tem nada a perder em comparação com qualquer um dos mais poderosos filmes-ensaio realizados na Europa ou na América do Norte nas décadas de 1960 e 1970, e qualquer pessoa que conheça esses artistas pode confirmar isso.
Um filme de Nicolás Guillén Landrián ao lado de um filme de Chris Marker não passa vergonha por um segundo. Jean-Luc Godard declarou mais de uma vez sua admiração por Santiago Álvarez. Sara Gómez e Agnès Varda, além de terem trabalhado juntas em Salut Les Cubains (1963), comporiam uma bela sessão dupla. A obra de Aloysio Raulino, quando apresentada na Europa, suscita sempre o mesmo assombro: “por que ficamos tanto tempo sem conhecer isso?”, dizem os espectadores.
Talvez pudéssemos começar, então, por inverter a questão. Perguntar não o que a tradição do Norte tem a oferecer a esses pobres documentários latino-americanos, mas sim o contrário: o que a tradição latino-americana do ensaísmo tem a oferecer ao pensamento do filme-ensaio em geral?
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Referências:
Elsaesser, Thomas (2017). ‘The Essay Film: From Festival Favorite to Flexible Commodity Form?’ [2015], in Alter, Nora and Corrigan, Timothy. Essays on the Essay Film. New York: Columbia University Press, 240-260.
Corrigan, Timothy (2011), The Essay Film: From Montaigne, After Marker. New York: Oxford University Press.
Rascaroli, Laura (2008) ‘The Essay Film: Problems, Definitions, Textual Commitments’, Framework, 49, 2, 24–47.