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Andrea Tonacci – pela suprema liberdade e invenção

agosto, 2023

Pulmões, Lucas Lugarinho

“…das trincas, da trama dos
poros da pedra, surge a água, como
o suor, como o suor na pele, centenas,
milhares de pequenas bolhas…”

 

 

          um dos que caminharam
          silenciosamente entre os índios

                                 foi viver a vida
                                 onde o canto
                                 vem antes da fala

 

I

o principal erro ao tratar de
Serras da Desordem é focar
na dicotomia documentário-ficção

é uma tentativa vã tentar classificar
uma obra, mesmo que por sua
pluralidade de pretensas definições,
quando para além desse amálgama
existe uma unidade, merecedora de
se chamar apenas: cinema

avancemos de uma vez por todas:
chamemos os filmes de filme – por
um cinema sem limite, em prol
da suprema liberdade e invenção

é por isso que Serras é uma harmonia
dos supostos documentário e ficção
e ainda mais: depoimentos, arquivos,
reportagens, encenações, observação,
pesquisa, película, vídeo, vivências,
encontros e até efeitos especiais… porque toda essa
diversidade é fruto de uma coisa só: afeto

e afeto, para além dos sentimentos,
do carinho, é antes de tudo deixar-se
afetar, é estar presente, se
relacionar: conviver

é, como diz Tonacci, explorar um
sentimento, e então não dizer o
que quer do filme, mas escutar o
que o filme quer de você

                            paciência até a coisa se apresentar
           esvaziamento total da intenção

se alguns desses apontamentos fossem
óbvios, Tonacci não repetiria sempre
que fala de seu processo, com sua voz
suave e persistente: não julgar…

eis o mantra: um olhar atento,
um olhar que não julga, um olhar
que não busca, é um olhar que
encontra, onde a experiência é
a revelação

“o sentimento é a vivência de uma emoção
que você trabalha enquanto está filmando
porque você está realmente se relacionando
com aquelas coisas, não está simplesmente
narrando uma história, está descobrindo,
vivendo essa história”

segundo mantra: eu não sei
o que é o filme, é o filme
que revela o que eu sou, é
o que eu faço que revela
o que eu sinto

“como eu posso falar de um filme
que eu fiz, se o processo de fazer
é a busca desse sentido? eu posso
falar só disso, não do que o filme
é, o que ele pretende, mas o filme
como caminho, uma forma de estar
no mundo”

não se trata de classificações mas
sim de um posicionamento perante
a vida – desde o início
está dito: um homem com
uma câmera diante do mundo

por isso Rosselini, pois da
mesma forma que o rap é
compromisso, o cinema é
responsabilidade com o que
se filma

         R e s p o n s a b i l i d a d e .

– a antropologia que
encontra nós mesmos –

não se trata de documentar
nem ficcionalizar, mas
vivenciar, explorar
um sentimento

(interior)

nota em tempo: dar a volta
por dentro e conhecer o mundo

 

II

Serras é exatamente um filme estranho
em todos os sentidos: fora do comum,
extra ordinário, misterioso, enigmático,
espantoso, incômodo, ex cêntrico

– marginal? – não, marginalizados.

Serras é um filme instigante, daqueles
que provocam diferentes reações, que
afetam de várias maneiras e encontram
em nós um incômodo ou uma inquietação
pois nos coloca perante o mistério

                 esse tal imprevisível, esse
                                 constante indeterminado

as brechas, nos aponta
Tonacci, a poesia

tantas palavras enquanto
filme marcante no cinema
(nacional) para desvendar
um segredo que se exemplifica
justamente na fala de Carapiru
não legendada

              o som que a palavra conduz
                         a energia que a imagem contém

o que é fruto da Criação só pode
ser compartilhado criativamente
e isso tem menos a ver com espectadores
ativos ou passivos e mais com liberdade

“aliás, nenhum roteiro é porra
nenhuma do que o filme resulta”

se Serras rapidamente ganhou
contornos de cânone, é sempre
preciso atenção constante para
não extrair um modelo superficial
do que é profundo – não se trata de
guias (como reiteram os Zapatistas),
mas de compartilhar um
fundamento

daí a intuição, relegada
pelo julgamento

daí que a verdade é que nem todos
estão preparados para ver imagens
sinceras. apegados às aparências
defendem uma vaidade autoral,
pautados em explicações

“a imagem de uma nascente, da
água saindo, que me fez ver os
caras brotando da mata. quer dizer,
isso se faz à minha revelia, isso
está na minha vida, eu não tenho
como metodizar”

em verdade vos digo:
não se trata de ser genial

não se pode o que não é, portanto
se é o que pode e tudo é poder
– o íntimo é universal
                          sinceridade de espírito

(e alerta: ir um passo atrás
da etimologia das coisas, como resistência
às facilidades, às banalizações. basta
de disfarces! já é hora de tirar
os véus do cinema)

Serras então nos ilumina começando
com um retorno ao som e a imagem
originais: como se Tonacci tivesse
conseguido filmar o Jardim do Éden

da presença dos índios até a montagem
de Cristina Amaral, toda a sequência
inicial é primorosa: primordial

pois o original é aquele que se
conecta as origens, ao princípio:
invenção

e os Awá-Guajá expressam a vivência
da infância, entre os extremos
da representação e incorporação
conseguem estar brincando
                              pureza do paraíso

é quando já não se precisa dizer
que arte é vida, é uma lei natural:
o ser é e o não ser não é, o instante
é a conjuração de forma e conteúdo

“é algo que
não há como não saber
quando acontece”

quando se tem certeza,
não tem dúvidas

 

III

no movimento das folhas ao
vento existe vida e o percurso
de Tonacci não é diferente

dentre tantas abordagens, o que prevalece
é a vida nos filmes: vitalidade

tanto o processo como organismo
vivo, quanto as vidas humanas
impressas nos filmes – além de tantas
outras manifestações

“por que aquilo foi uma oportunidade
pra mim? porque eu pude olhar pintura
o dia inteiro, a noite inteira, assim, os
originais, cara, de lupa. entende o que eu falo?”

longe dos holofotes da indústria
cinematográfica, Tonacci vive
o cinema, como nos mostra décadas
depois Já Visto Jamais Visto, filmagens
da vida, assim como em Bang Bang
vivenciou as filmagens

“tô cagando pra porra
de ser cineasta”

sempre se tratou de vida e seres
humanos: as inquietações que geraram Olho por Olho
e Blá Blá Blá; as relações pessoais que fizeram
censurar Interprete Mais, Ganhe Mais; a imersão que
revelou Os Arara; a experiência de Conversas no
Maranhão: um exemplo do que aponta Guilherme Vaz –
“o cinema pede o não cinema” – a caixa de
equipamentos carregada para a aldeia dos Canela
só foi aberta um mês depois da chegada…

depois de nadar no rio, olhar
as estrelas, caçar, brincar, ouvir
os mais velhos, saber quem é
quem, ser adotado por uma família
da aldeia… só depois de um mês Tonacci
pegou a câmera e disse a que veio

“o olho, através da câmera, mais
que mostrar, procura ver”

pioneiro em vídeo no Brasil, além
dos filmes mais conhecidos (mesmo
que alguns pouco exibidos), filmar parece
ter sido uma constante para Tonacci.

nos anos 70:

os curtas Nô, Arrastão, Trainera,
Tenrykio, ainda em 69
os shows Miles Davis, Milton Nascimento,
Jorge Mautner, Sergio Kera, todos em São Paulo/74
e ainda, juntos, Hermeto, Macalé
e Novos Baianos, em 78
em 75, Do Tabu ao Totem e
Roberto Aguilar em Nova York

em busca da visão dos vencidos
o holocausto de um continente
inúmeros filmes/registros:

            Jimmy Durham
            Mary Jo Hopkins
            Clyde Bellcourt
            Pow Wow Feast In NYC
            Arizona New Mexico
            Comuneros de Milpa Alta
            Festa do Tepache
            Caso Parakanã / 78
            Tupiniquins do Espírito Santo
            Guaranis de Parelheiros
            Guaranis de Espírito Santo / 79
            Congresso Internacional de Índios da América Latina
            Ampam Karakrás / já em 80

“o que aparece nesse encontro é a dimensão
da sua ignorância. porque o universo interior,
o universo existencial dessa pessoa é que é
diferente. o ser humano é o mesmo”

eis a densidade de Serras da Desordem

“é uma alteração definitiva da minha
percepção de mundo, porque a vivência
na floresta mudou totalmente a minha
sensibilidade, meu condicionamento…
depois você volta pra cidade e se
recondiciona, mas aquela experiência
você teve, é presente e você pode
reconhecer esse estado de conhecimento
que você pôde viver no teu cotidiano.
então, pronto, continua o processo de atenção”

você conhece uma experiência
              maior do que você mesmo?

 

IV

a liberdade da maconha
a liberdade da maconha
a liberdade da maconha
a liberdade da maconha
liberdade

“O ator de um filme em realização vive sem distinção
a sua realidade pessoal e a ficção de seu personagem.
Como objeto involuntário do acaso e da circunstância
busca um sentido e uma saída daquela situação enquanto
é perseguido por bandidos, um mágico, uma fantasia
amorosa, um bêbado e sua auto imagem.”

é preciso sublinhar:

“eu nunca tive essa de
barato, eu fumava pela
liberdade criativa que
a maconha pode proporcionar”

assim como o mestre Gil –
“a maconha me auxilia
na introspecção mística”
– compositor da trilha
de Copacabana Mon Amour,
filme inspiração
anarco-rua-mediunidade:
“baixa alguma coisa e
é quando baixa que a
câmera roda”

            e x i s t ê n c i a !

Bang Bang também é
a liberdade do caos ou
antes o trabalho da intuição

Paulo Emílio:

“a eficácia com que constrói
a gratuidade e a desordem
acabam excluindo do filme
essas duas características”

e

“como essas sequências não
derivam e não levam propriamente
a nada é em si mesmas que acabam
nos interessando intensamente”

Pereio dá a dica:
   – pra onde nós vamos?
   – vai em frente, vai indo…

“o filme nos obriga a chegar a uma
forma porque você tem que fazê-lo.
mas para chegar nisso é o contrário
de uma rigidez, de uma escolha a priori
de como tem que ser. é, de fato,
um momento de perda desse tipo
de coisa. é mais um instante de
‘tchau-eu’. é simplesmente o
momento em que aquilo é vivido”

primeira dificuldade de expressar
um sentimento em roteiro: o filme
é o exorcismo das angústias profundas
no ritual coletivo dos eus

Tonacci lembra Aguillar:

“há um momento em que
a razão não tem mais lugar,
o negócio é surfar”

(Aguillar lembra
Guimarães Rosa: não dar
espelhos aos macacos)

outro mantra: você não diz roda
antes da onda chegar, a equipe
participa da criação da onda, se
a onda não levanta, você não surfa

“como realizar isso de uma maneira
que seja reveladora do sentimento
e não simplesmente da intenção
de representar? se eu tô filmando
e sinto a coisa viva, sei que
estou no rumo certo, mas se estou
filmando e racionalizando em
cima, tá errado, pode cortar que
não está funcionando”

e Bang Bang acontece na
criatividade e vida de cada um

o bêbado bêbado
a cigana cigana
o cego circense
Pereio Pereio…

“se essas pessoas não tivessem
essa carga emocional, essa carga
de busca e de ansiedade de vida,
o filme não seria o que é”

liberdade que vai da produção
à montagem, com ápice nas
improvisações dos personagens

e reza a lenda, todos os takes
filmados estão no corte final,
uma comunhão perfeita de
espírito:

invenção
invenção
invenção

                     desenhando o círculo

(a independência dos rolos
antes de A Idade da Terra)

e há de se exaltar a sintonia
sonora, culminando na
imagem do riso no fim

as músicas e os tambores
protagonistas,
     in-a-gadda-da-vida

“Pereio, vai ouvindo a batida e vai
pisando fundo e vai acelerando
conforme a batida da música,
e manda ver!”

uma “sintonia visionária”
por menos expectadores
– salve Jairo Ferreira!

“Quando realizado com afinidade
entre as pessoas, um filme se torna
significativo, o que é diferente
do trabalho fantasioso da linha
de montagem, como se fazer cinema
fosse igual a fabricar um automóvel”

a naturalidade com que a câmera
participa, nos espelhos e sombras,
trata-se menos de metalinguagem
do que de uma intimidade: presença

“o único compromisso que esse
cinema mantém é o mesmo que
nos mantém no mundo”

desde então para além das
dicotomias, esse cinema não
se préocupa com a disputa de
poder artístico-comercial

a figura do mágico ao mesmo
tempo denuncia e subverte o
colonialismo velado hollywoodiano

                           bang!
                           bang!
                           bang!

 

V

D E P O I M E N T O

“Eu tenho a impressão de que nesse período é que eu aprendo, faço o salto, a dimensão do que é o cinema. Que salto é esse? O salto da mente, de você perceber o potencial que é observar imagens e trabalhar com elas como construção de mundo, e não simplesmente fazer um filme, construir algo para um filme. Quer dizer, a linguagem, ela se apresenta. Quando ela vem de fora, ela é outra coisa, ela é instrumento de algum interesse específico, geralmente do capital.

Eu passei a usar a palavra xamanismo porque eu entendo que o cinema é realmente como um maracá na cabeça das pessoas, e não um espetáculo para bater palma, entendeu? Construir uma imagem é um processo xamânico porque você não está fazendo para o mal do mundo,
você está querendo para um equilíbrio do mundo, uma percepção, uma compreensão e ela não é só sua, porque é um ritual público. Tem essa
intervenção no mundo porque ela interfere nas pessoas, dali pra frente não tem volta, você vê aquelas imagens, elas estão contigo.

Mas se isso não se arma e não acontece na cena, não é percebido no olhar, roda de novo, porque não aconteceu e não vai estar na tela. Tem
uma questão subjetiva, de vivência, e não tem como você não perceber. Você só não percebe se não estiver olhando, e se não estiver, então não é cineasta, é outra coisa. Então, esse momento é um momento transformador, não só da realidade, mas é transformador para mim.”

 

VI

filmar é tempo e Serras nos apresenta
a experiência – de fato – o que difamado
processo – camminare – pode proporcionar

o olhar inerente ao suporte,
a agência da câmera, seu tempo
interno, como a essência do fogo
e o impacto de um isqueiro sobre
uma humanidade

o encontro de homens
na mata, o índio e os fantasmas,
o cinema: registrar a revelação

a caminhada do filme
sintetizada no plano final: uma
filmagem de Carapiru da época de
pesquisa junta-se a um elemento da
montagem
              – a conexão fora do tempo

da mão que anos atrás
se levantou, anos depois surgiu o som,
ao movimento de câmera intuitivo ligou-se
o avião de caça, que assombrava um,
portanto, assombrava a todos

         o caminho é individual
         mas a caminhada pode
            ser compartilhada

se filmar é uma forma de olhar
a montagem é um novo olhar
dessa mesma visão, uma nova
convivência, mais uma das
relações afetivas: imersão

                      rastrear os indícios
                               distinguir os caminhos

                       habitar as imagens
                               como o mar de sonhos

é preciso destacar o trabalho
de Cristina Amaral, a sutileza
do corte, a maestria com que
faz sobreposições, sua simplicidade

e a afinidade íntima de sua
parceria com Tonacci:

lealdade

à liberdade

“a responsabilidade da produção
de uma imagem é você permitir
a liberdade da mente do outro
e não dizer a mente do outro o
que ele tem que pensar. isso é
outra coisa, chama-se ditadura,
chamem como quiser”

e invenção

“você sempre será diferente. a tua cara
é outra, o teu somatismo é outro, mas o
sentimento interno de uma situação de
opressão, de um loucura criada em função
de interesse, isso é perceptível por todos.
não precisa ser índio para perceber isso.
você só não quer olhar para isso se você
é um agente dessa repressão”

.

 

Serra do Cipó, 2016

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