Sento na escada de pedra e limo, rachada pela metade em todos os degraus. A terra por debaixo briga para levantá-la, expulsá-la do domínio conquistado. Contamos cem ou talvez cento e dez, cento e vinte anos que foi construída, aqui no lado leste da casa, no exílio de todos os sortilégios domésticos.
Apoio o queixo sobre o punho fechado, o cotovelo sobre o joelho, o pé sobre a pedra. Vejo a árvore-carranca acomodada no solo escuro e fofo ao canto do rio. De criança, lhe pedia conselhos. Era enorme e frondosa, com os ventos fortes da noite sua silhueta oracular guiava os curiosos ou assustava os desavisados. Hoje está contorcida, envolta em si mesma e com folhas quase neon. Encarna a tristeza pela descoberta da impotência, saber a falsidade das próprias previsões. O que será de um vidente que não vê o futuro?
No fim do quarteirão, um bloco maciço se estende em direção ao céu. Não tenho ideia que tipo de construção é essa. Agora vivo na sombra prematura do já tão raro sol.
A chuva ininterrupta não mais me atinge com força, fico horas ensopado realizando quaisquer tarefas a céu aberto. O corpo arde calado. Posso ouvir o ruir dos materiais orgânicos, posso ouvir as paredes que craquelam por dentro, a pedra de limo que embaixo de mim estala a cada minuto como placas tectônicas se chocando.
Vejo os olhos curiosos dos gatos d’água, olhos verde brilhante cortando o breu, gemem com tons graves cada vez menos parecidos com sua própria espécie. Me espiam detrás dos balaústres de alabastro, detrás dos meus réquiens de palavras esquecidas. Gatos de mil vidas e as línguas mortas pelo terror, pelo caos que cai do céu.
Logo irei também nadar no mar de ruínas, sair dessa ilhota no tempo.