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Enraizerrância

L’Enracinerrance

abril, 2023

Foto de Patrick Bard

Pequena nota introdutória

Vi pela primeira vez a palavra “enraizerrante” na entrevista que fizemos aqui na USINA com o grande poeta Edimilson de Almeida Pereira – que indicou esse texto gentilmente traduzido por Cecilia Sá Cavalcante Schuback. Desde então, essa palavra ressoa vez ou outra na minha vida – muito pelo grau de concentração das tensões ali expressas. O poeta, romancista e ensaísta haitiano Jean-Claude Charles nasceu em Porto Príncipe no ano de 1949 e morreu em Paris, em 2008.  Aos 20 e poucos anos saiu do Haiti e foi para os Estados Unidos estudar e, então, para França. Sua vida foi errante e, inclusive, trabalhou durante um período escrevendo relatos de viagens para periódicos. Seus pousos mais frequentes, porém, eram Paris e Nova Iorque. Além de romances, ensaios e livros de poesia, Jean-Claude Charles também produziu documentários para a televisão francesa.

Gabriel Gorini

Enraizerrância

Há trinta anos eu venho proclamando minha enraizerrância. Usei esse amálgama pela primeira vez em meu ensaio Le Corps noir e ele tem sido constantemente reiterado desde então.

  1. A última vez foi na Universidade Duke, em Carolina do Norte, diante de alunos que em um seminário haviam trabalhado o meu livro sobre o êxodo haitiano, De si jolies petites plages  [Praias tão bonitas]. Para resumir uma longa história: eu havia escrito e publicado uma série de textos marcados pelo fato de terem sido criados em migração, de não serem sedentários em um espaço nacional. Raoul Peck me acenou neste duplo encaminhamento (criação e implementação simultânea de um conceito). O objetivo aqui não é reconstituir famílias e muito menos hierarquizar. É simplesmente uma questão de reparar constelações cada vez mais visíveis. Foi antes da queda do Muro. Peck tinha viajado de Berlim a Paris, me pediu para escrever um roteiro com ele, eu ainda não tinha visto nenhum de seus filmes, ele tinha feito o Haitian Corner [Canto do Haiti], que não tinha sido lançado, ele tinha lido um ou dois de meus livros, alguns relatos de viagem em Le Monde. Na exibição, reconheci o primeiro longa-metragem de um cara que filma com sotaque, mas qual sotaque? Eu disse sim para escrever o roteiro. Um pouco por curiosidade e também porque o ar em Berlim seria uma mudança do ar em Paris por um tempo.

  1. Quando eu estava escrevendo De si jolies petites plages [Praias tão bonitas], muitas vezes eu via esse trabalho como o do escritor americano James Agee. Ele mesmo havia trabalhado com um artista visual: o fotógrafo Walker Evans. Apesar das obrigações da encomenda – um inquérito sobre a classe de alguns brancos pobres no fundo da América – Agee correu o risco de falar sozinho, certamente esperando que alguém ouvisse. Em Elogiemos os homens ilustres, ele escreve o seguinte: “Em parte você escreve para todos os homens que são seus iguais e superiores, e em parte para todos aqueles que são explorados e cativos, e em parte para ninguém. Em parte você está tentando se comunicar (não necessariamente para agradar); em parte você está tentando enunciar, comunicação ou nada”…

Para mim, não era uma questão de fazer como Agee; era apenas que o horizonte de seu trabalho me parecia muito cativante, em termos da relação entre reportagem e escrita literária, documentário e criação. Há algo dessa ordem em Raoul Peck, em graus diferentes. É o que ele tem feito desde seus primeiros pequenos filmes, estou pensando em Merry Christmas Deutschland [Feliz Natal Deutschland], estou pensando em Lumumba – La mort d’un prophète [Lumumba – A morte de um profeta]: este salto qualitativo que permite decolar com a matéria mais pesada que se possa carregar e alcançar um lugar de graça.

  1. Quando Jean Jonassaint, agora professor da Universidade Duke, disse que eu sou “o mais autobiográfico dos escritores haitianos” (cito de memória), ele estava certo. Embora eu não tenha escrito uma autobiografia, mantenho o adjetivo “autobiográfico”. Qualquer um de meus textos reflete essa preocupação, inclusive este, é claro, em que percorro meu trajeto para dizer algumas coisas que penso sobre Peck, o cineasta. Seria preciso datar a época em que Jonassaint me separou, em termos de ocorrências autobiográficas, da massa da produção literária haitiana. Isto não é mais verdade, e ainda bem. Nos últimos anos, outros escritores começaram a usar o material de suas vidas para escrever: estou pensando especialmente em meu amigo Dany Laferrière. Deveríamos sublinhar a novidade desse fenômeno na história literária haitiana, tradicionalmente encostada no único sujeito coletivo. Deveríamos tomar a medida da estrada percorrida. E seu sentido profundo em um país como o nosso. Minha autobiografia ainda está à minha frente. Por enquanto, é possível imaginar uma montagem de fragmentos dos mesmos textos que já seria um esboço autobiográfico, assim como seria possível imaginar uma montagem de extratos de filmes de Peck que produziria um efeito comparável. É verdade que há uma condição difícil em todos os casos: desatar a ficção da realidade. Os dois permanecem entrelaçados em todos os meus textos. Somente minha palavra, a palavra do autor, poderia ser de ajuda decisiva. Isto exigiria uma certa qualidade de memória, como uma exigência ética. Em termos de memória, parece que funciono bem. Quanto à questão ética, deixe-me dar apenas um exemplo: todos os sonhos em meus livros são meus, tenho constantemente em mente a ideia de uma pesquisa onírica o mais próximo possível da minha vida adormecida, nunca acolhi em meus livros um único sonho que eu realmente não tivesse tido, nunca organizei um sonho.

  1. Escrevi em algum lugar: “A vida tem mais imaginação do que eu”. Claro que não é uma ideia muito original, e deve estar em algum livro que nem me lembro mais, coloquei essas palavras na boca de um personagem fictício que parece comigo como se fosse um irmão, e muitos escreveram que esta ficção é original. Este paradoxo não é um acaso. acho que o melhor jeito de se agarrar a uma verdade é agarrar-se à minha própria. A ficção também faz parte da minha verdade. Muitas vezes é irônica. “Para uma história trágica, escrita irônica”, já escrevi também. No caso da história (contínua) dos boat people de Haiti, o exercício desta ironia foi sem dúvida uma forma de pudor. Mas é à realidade que eu tento me ater, tanto a uma realidade coletiva quanto a uma realidade íntima, ao histórico e ao pessoal, num mesmo movimento. Ao que me parece ser a vida verdadeira (que não é “a verdadeira vida” de Rimbaud, que está em outro lugar, como ele afirmou). Eu diria que, além de escrever, é a vida verdadeira que me interessa, eu iria até dizer isso se, com o passar do tempo, este negócio de escrever não me parecesse cada vez mais complexo. Sempre este velho negócio entre a história e o corpo, a escrita da História e a escrita do Sujeito. O fato que essas maiúsculas acabam sendo cansativas não desvia a questão: Artaud e Maiakovski. Também não resolve a única questão que, a meu ver, sempre importou: chegar à sensação de produzir alguns objetos voadores relativamente identificáveis, nos quais tomo a partida dos homens e mulheres que são impedidos de circular, por exemplo, que são presos, reprimidos, encarcerados; nos quais tomo o partido daqueles que sofrem sob o peso do mundo injusto que lhes abate.

Da mesma forma, parece-me que Raoul Peck fez alguns filmes úteis. Estou pensando em Desounen Dialogue avec la mort [Desounen Diálogo com a morte]. A preocupação comum: tentar expor o intolerável ao mais amplo público e com a maior eficácia possível. Correr o risco de falar sozinho também faz parte do programa às vezes. Escrever para salvar a própria pele ao mesmo tempo que a dos outros é uma aposta honrada. É preciso muita força de vontade, um pouco de fúria e um pouco de humor. Por que não se deixar contaminar pela energia contagiosa dos povos?

  1. O conceito de enraizerrância é deliberadamente um oximoro: leva em conta tanto a raiz quanto a errância; fala tanto da memória das origens quanto das novas realidades da migração; repara um enraizamento na errância. Jacques Derrida propõe, para si mesmo, que se fale de destinerrância: um destino de errância. Este não é o nosso caso. Descrevi em outro lugar minha escolha de exílio aos vinte anos de idade – agora tenho cinquenta. Em um correio eletrônico, Raoul Peck me pergunta: “Uma biografia do exílio? Criador de uma Diáspora? Literatura do exílio? Estes termos ainda significam algo hoje? Não deveríamos rejeitar estes atalhos que mal levam em conta a experiência de uma geração que, embora adaptada a diferentes exílios (EUA, Canadá, França, África etc.), se sente cidadã do mundo, ao mesmo tempo em que reivindica uma ancora de origem e sua riqueza (miscigenação?) cultural? Estado dos lugares.” Estamos mais próximos do ponto, mas voltemos à proposta de Derrida: ele a afirma por si mesmo, e claro, é o único com direito a afirmar algo do sentimento profundo de seu destino errante.

De minha parte, sou um enraizerrante. Nenhum outro termo que eu poderia dispor me convém. não sou um “escritor migrante”, mesmo que eu esteja em migração perpétua, em um triângulo do qual o Haiti seria o ápice esquivo, os Estados Unidos e a França, os ângulos de base… e você pode imediatamente ver os limites da metáfora. Pois aqui, as raízes estão no céu e na base há ramos e infinitas possibilidades de enxerto. No total, há muito espaço para se movimentar, para voltear de cipó a cipó, para mudar de árvore etc. E há também lugares onde vivi muito pouco, que não contribuíram muito para minha criação, onde vivi sem nenhuma ancora local (México, por exemplo). Portanto, tenho que passar por tudo o que não sou, um vasto programa, para acabar dando a Raoul Peck uma resposta que conheço há pelo menos trinta anos, na verdade, faz até mais tempo…

  1. Não sou um “escritor cosmopolita”, um “escritor cidadão do mundo”, tudo isso é muito vasto, o cosmos é grande, o peso do mundo é pesado demais para meus ombros fracos, não sou um “escritor sem fronteiras”, o que soa humanitário demais, mesmo que eu não seja repelido pelo humanitário, mas esse é outro problema, não sou um “escritor transnacional”, mesmo que a noção de escritas transnacionais tenha alguma validade, cheira muito a globalização de tudo-vai. Uma “biografia do exilio” presumiria que eu me sinto exilado em algum lugar. Ou talvez exilado em todos os lugares, em nenhum lugar em casa? Esta última hipótese é menos improvável. Não conheço bem o que Édouard Glissant e Patrick Chamoiseau chamam o Todo-mundo, por isso prometo explorar o assunto.

Escritor da diáspora, certamente, desde que se entenda que a dita diáspora faz parte da própria realidade do Haiti, que não é uma entidade homogênea, estranha ao que seria “o autêntico Haiti”, conhecemos o blablabá de sempre daqueles que chamo de policiais de identidade. Eu acreditaria de bom grado que sou um escritor da rua onde nasci em Porto Príncipe, e também de um quarteirão na Rua do Enterro, chamado, segure aí… rua da Revolução, ah sim, nasci sob o signo desse chiste. No entanto, é deste lado da rua que eu vejo um pouco do nosso planeta e que eu cantarolo, entre dois aviões, o melhor que posso, ou seja, mal: “Não o tempo, eu não teria tempo, o tempo não”…

É da Rua do Enterro que me contento em levantar uma de minhas preocupações fundamentais: a livre circulação de pessoas, ideias e criações. O conceito de enraizerrância se inscreve na lógica de uma simples ideia: deixar o mundo inteiro circular! Esta ideia não parece simples para aqueles que nos governam, nem para uma certa parte dos povos. Ela levanta problemas difíceis de resolver, às vezes aparentemente impossíveis. Ainda acho que ela existe no próprio movimento do mundo. Como criador, reivindico o direito de não policiar a identidade.

O trabalho de Peck, como o meu, como o de muitos outros hoje, é um manifesto comovente contra pequenos confinamentos nacionais ou étnicos. Nosso trabalho, em suas intenções, em sua fabricação, em seus sentidos e em seus efeitos, que ainda precisam ser medidos, arruína qualquer possibilidade de retorno à sedentarização em um espaço nacional ou étnico. Eu acrescentaria que em nenhum lugar do mundo podemos evitar uma abordagem imaginativa e humana do fenômeno da enraizerrância. Cabe aos escritores e criadores reafirmar, sem parar, a parte da luz.

  1. A sedentarização destas obras contemporâneas, que coloco na constelação da enraizerrância em um espaço nacional, não corresponderia em nada aos nossos caminhos. Basta ler nossas biografias. Basta se interessar por nossas línguas. Perto do fim da glaciação planetária? Para o escritor e jornalista que sou, não se trata tanto do movimento do corpo no planeta, mas de pôr em movimento, na língua, os lugares que atravessamos, as culturas que encontramos, as línguas que demos, aprendemos, adquirimos, retomamos, e penso também nas línguas que perdemos, as línguas que nos deixam, as línguas que nos abandonam, as línguas que deixamos escapar pela janela e que voltam pela porta, o pôr em movimento, o pôr em escrita do mundo sob o ponto de vista da criança que cresceu.

A enraizerrância em movimento parte de um finalzinho de rua em Porto Príncipe, vai ao mar, dirige-se ao México, passa por Nova Iorque, viaja entre esta megalópole e Estrasburgo, vagueia pelo Texas, desembarca em Paris, estabelece uma sentinela permanente, viaja entre Paris e Nova Iorque, organiza passeios em vários países… Assegurada da raiz e da errância, ela não tem medo das palavras dos outros. Ela diz sim à globalização dos fluxos de escritas, de signos, de sons. Sim à migração de gêneros dentro de um texto que, daí, se torna a-típico. Sim à parte da sombra que marcam os textos e que concorda com uma experiência (por que não?) transnacional.

Com que passaporte ela viaja? Onde ela faz amor, tem filhos? Onde ela vota? Onde ela paga seus impostos? Processos triviais. Em seu livro jusqu’au bout de la patience [até o fim da paciência], no qual Raoul Peck descreve sua experiência como Ministro da Cultura no Haiti, vemos bem as dificuldades para certas pessoas enraizerrantes de enfrentar os pesares, isto é, a brutalidade da concepção sedentária do mundo. Peck fala com uma cólera fria de suas brigas fronteiriças com oficiais de imigração e aduaneiros… quando ainda não era um político oficial ou um cineasta reconhecido.

  1. Raramente me perguntei sobre coragem. Em certos momentos, fazemos o que achamos que devemos fazer, só isso. Quando comecei a olhar para a experiência dos refugiados haitianos nos Estados Unidos, Bahamas e Porto Rico, não me perguntei sobre coragem, ou os perigos. À distância do tempo de investigação, essa experiência, embora dolorosa para os refugiados, terá levado a horizontes de vida transnacional. A maioria dos ex-boat people e refugiados não sonha com uma vida melhor apenas nos Estados Unidos, mas também no Haiti. Não se trata de abandonar a terra natal. Não se trata de transportes beatos para os braços do Tio Sam. O impulso migratório não apaga a origem, ele procura transformar o horror das condições da origem, enquanto mantém a esperança suscitada pela terra sonhada (de acolhida ou de má acolhimento ou de não acolhimento). Esta é a história in progress. Estou pensando em Making History [Fazendo História], o título de um disco e uma série de poemas de meu amigo Linton Kwesi Johnson, um jamaicano de Londres, que canta: “We’re here to stay” (Estamos aqui para ficar). Ele não está desistindo da Inglaterra ou da Jamaica. Assim como os haitianos, a diáspora haitiana. Eu também, francês por adoção, respeito as regras do jogo do cidadão. O povo do barco e o povo do avião compartilham esta realidade. Misturo de propósito minhas preocupações criativas com as de outros. A enraizerrância não conhece a subtração, mas a adição.

  1. Já me fiz muito as perguntas que Raoul Peck me faz. Fiz essas perguntas como escritor, apesar do trabalho em alguns filmes para a televisão francesa. As fazemos muito entre escritores. Já disse por que não estou satisfeito com a destinerrância de Jacques Derrida, um amálgama sem tensão entre os dois termos, marcando uma dobra de fatalidade (o destino da errância). Esta discordância é menor em relação ao fenômeno do número dos criadores de hoje se perguntando a grande questão de nossos lugares nas sociedades que habitamos ou atravessamos e o que fazemos com estas habitações, estas travessias.

Parece que precisamos dar um nome à questão. Entre Paris e Montreal, a romancista Régine Robin se pergunta sobre os “discursos que estão por trás dos tempos”. Há também, a meu ver, discursos por trás dos trabalhos de seus próprios autores; práticas que estão à frente de seu tempo e com dificuldade de encontrar suas palavras. Na conferência de Duke, Robin evocou “um futuro diaspórico que está ocorrendo”, um “novo nomadismo”, o “futuro plural de nossas sociedades”, a questão da relação entre um escritor e sua comunidade, o judaísmo na escrita (mencionando Edmond Jabès e Philip Roth). Ela se lembrou do conceito de “escritas migrantes” e “escritas mestiças” (Robert B. Oriol e Fournier), “escritas da migração” (Émile Ollivier), “escritas híbridas”… Ela tinha relido Mil Platôs de Deleuze e Guattari, e claro que “rizoma” ou “raiz” não substitui as criações em si. Ela diz maravilhosamente (cito de minhas anotações) que escreve “na distância entre si e si mesmo, num desapego de si mesmo, em um terceiro lugar”… Paol Keineg, de quem eu não ouvia falar desde Le printemps des bonnets rouges [A primavera dos bonés vermelhos], peça culta dos anos setenta, aventurou-se ao termo “distância”, com uma entonação tal que se podia sentir a montanha de nuances que cobria (este francês agora só pode escrever nos Estados Unidos). Hedi Bouraoui, poeta e romancista de Ontário francófona, desenvolveu seu conceito de “escrita intersticial”, o que significa que ele escreve nos interstícios das muitas culturas que o habitam, nenhuma das quais é hegemônica… Os filmes de Peck poderiam ter servido como apoios perfeitos para estas discussões. Levei algum tempo, por exemplo, para entender que o sotaque nos filmes de Peck tinha um componente alemão, dentre outros. É realmente necessário encontrar as palavras singulares que se encaixam nas linguagens singulares dos criadores? Às vezes ajuda, às vezes pesa, abranda. Correr o risco de pensar como os outros, desde que pense? Muitas vezes fico satisfeito com a leitura pública, sem debate.

  1. Ficção ou documentário, a escrita do real é uma questão chave no cinema de Peck. Nossas sessões de trabalho com o roteiro me mostraram o quanto este cineasta dá importância a esta questão. Este cinema reforça a ideia de que as relações ficção/realidade não devem ser simples colagens. Elas têm uma dimensão estrutural. Por outro lado, sabemos que as noções de “realidade”, “verdade”, etc., pelo menos desde os trabalhos de Michel Foucault, têm sido vigorosamente questionadas. Entende-se que o criador se compromete com uma visão pessoal, e que o poder da imaginação é teoricamente ilimitado. Sempre me dei limites, notadamente formais, o que me deixa uma grande liberdade. Sei que minhas declarações oníricas têm um limite estético (o horizonte do surrealismo do início do século através do qual entrei na poesia e na literatura aos quinze anos de idade, e por desconfiança abandonei o delírio metafórico); e um limite neurológico (o da memória dos sonhos, para não mencionar a minha velhice por vir). A consciência deste duplo limite me torna ainda mais atento à escrita de sonhos, e à escrita de ficções. Assim como a consciência dos limites do olhar sobre o real também me torno atento à questão da escrita do real. Se admitirmos que a ilusão naturalista está morta e enterrada há muito tempo, parece-me que Raoul Peck se sai muito bem na maioria das vezes. De minha parte, escrevo mais dificilmente hoje do que quando tinha vinte anos, mas sinto que sou um melhor escritor.

  1. Frequentando artistas visuais e músicos ainda me ajuda a elaborar uma reflexão que me mantém longe das ilusões cripto-românticas da inspiração. As facilidades de escrita durante o meu curto período mexicano (1970) e meu primeiro período em Nova Iorque (1971) têm se afastado de mim. Tive que passar pela modernidade teórica da época, até eu aceitar a ideia de trabalhar em uma fábrica, de escrever meus livros tanto quanto eles me escrevem, de colocar uma certa quantidade de minha própria carne neles. Desde a descoberta de Rimbaud aos quinze anos, até o ódio ao delírio metafórico, passando pelo movimento surrealista, eu era um jovem tranquilo. Os anos setenta, ou seja, meus primeiros anos de enraizerrância, salvaram o resto de meu trajeto como escritor. Ao esfregar minha pele contra outras peles, ao esfregar a minha língua contra outras línguas, acabei experimentando o que Foucault chamou de “a espessura histórica da língua”, e querendo sacudi-la. Ciente das condições de produção na fábrica, do real como construção, de como ela é feita, como é financiada, como é escrita, como é dita, como às vezes enlouquece etc., eu estava finalmente pronto para me tornar um escritor-jornalista. Desde minha crítica à invenção do corpo negro até meu relato sobre a difícil invenção da democratização no Haiti, a orgia da realidade a que me dediquei foi bastante feroz. Arrisquei constantemente perder meu olho, minha mão, minha orelha, e foi frequentando artistas visuais e músicos, particularmente o jazz americano, o que me salvou. Supondo que fui salvo. Levaria muito tempo para analisar o processo. Além de “loucos” como Guyotat, por exemplo, o salto qualitativo que mencionei acima tem um inimigo vigilante entre os escritores: a língua programada pelos usos dominantes. Ver o que está acontecendo no trabalho de outras pessoas, literalmente e em todos os sentidos, pode ser um encaminhamento agradável e útil.

  1. Gostaria de terminar com uma saudação de respeito ao poeta Magloire Saint-Aude, cujas obras completas podem agora ser encontradas em uma edição magnífica editada por François Leperlier. No momento em que a desculpa da insularidade é uma tristeza cada vez menos evidente, refiro-me à homenagem que o escritor Patrick Leigh Fermor dirige a este imenso morto, mais vivo que tantos contemporâneos, em seu conto de viagem ao Haiti, por volta de 1947, creio, Ventos alísios [Vents alizés]. Patrick Leigh Fermor leu e admirou os poemas de Saint-Aude, que ele também conheceu em um café em Porto Príncipe. Saint-Aude se distanciou de quase todo mundo, não tem ilusões sobre nada. Em um avião, Fermor fala com um burguês haitiano sobre o poeta. Este último faz um discurso odioso. Não posso deixar de pensar que a enraizerrância me liberta do fantasma deste burguês “todo bem vestidinho” dos anos quarenta que “sorri tolerantemente” e diz em voz alta e inteligível que Magloire Saint-Aude, um dos melhores escritores de seu tempo, aquele que André Breton considerou como um dos maiores deste século, Saint-Aude foi alguém que não fez nada, e Fermor citando o burguês “Nada, a não ser estes poemas que ele escreve”.

Nova Iorque, março 2000

Obras principais: Négociations, 1972 [Negociações]; Sainte Dérive des cochons, 1977 [Santa Deriva dos porcos]; Bamboula Bamboche, 1984; De si jolies petites plages, 1982 [Praias tão bonitas]; Quelle fiction que faire?, 1999 [Que ficção o que fazer?]

 

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