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Conversando com Arlindo Barbeitos

1976

março, 2023

Uma pequena nota de introdução

Foi muito por acaso como cheguei nesse poeta angolano. Entrando numa rua aleatória vi uma moça vendendo livros. Dei uma olhada no que tinha e me deparei com esse título: “Angola Angolê Angolema”, de Arlindo Barbeitos. Não sabia o que era, quem era. Gostei da capa dessa edição Sá de Costa. Um pássaro. – ‘Ah, vou comprar, ver o que é. Por que não?’ Semanas passaram. Meses até. Nunca abri esse livrinho de poesia. Bateu uma saudade da língua portuguesa ao meu redor. Comecei a olhar o que tinha na minha estante para ver o que ler e conseguir ouvir essa língua que adoro tanto, já que não ouço muito mais, lá longe no outro lado do mar atlântico. Ouvindo através dos olhos é o que me resta nessa vida de ambiguidade bilíngue. Às vezes parece que o que sou são só línguas silenciosas. “Angola Angolê Angolema” de Arlindo Barbeitos. – ‘Ah é, vou ver o que é.’

Como sempre quando acho um livro de poesia, abro-o assim de modo bruto e vejo qual o poema que cai em mim. Página 70:

o grande silêncio
onde toda a tempestade
começa e acaba
não ouve
mas dança
em palavras
feitas gesto
num saracotear de vento
de teu corpo de pássaro d’água

Arlindo Barbeitos. Poeta angolano (1940-2021) do Catete, no Ícolo e Bengo. Teve que fugir de Angola por causa da perseguição política. Foi para Frankfurt, Alemanha, onde ficou dez anos. Participou do Movimento Popular de Libertação de Angola na luta contra os portugueses. Fundamental para a poesia de Barbeitos: a guerra, o “absurdo da situação colonial”. A guerra é terrível, mas liberta, limpa: “a pessoa que lutou e chorou, pouco depois dançará, capinará, dormirá”. E a poesia, para ele, é um instrumento de libertação. A força da palavra (o verso denso) é libertadora, mesmo doendo. A poesia é “um compromisso entre a palavra e o silêncio”. O poeta traduz esse compromisso que, como todo compromisso, é uma dor que só deve fazer uma coisa – sugerir. E o poeta é a boca tradutora, aquele que traduz porque está entre a palavra e o silêncio. Está na sugestão da dor: o transcender da palavra.

As palavras são formas, gestos, no ar. O palavrear é uma dança, é corpo, não é mais signo. Essa é a oralidade da palavra. Deste modo, a poesia de Barbeitos incorpora a poética africana, a sua tradição oral, assim como as poesias chinesa e japonesa como poesias escritas e faladas, como poesias de ideogramas. A poesia libera a palavra através da sua própria força. Dessa maneira, a língua não é mais nacional, não pertence mais a uma soberania colonizadora, mas a uma estória – e não mais história (sem que a história seja esquecida pois ela é altamente presente) – onde todas as línguas se cruzam, onde as terras não são demarcadas, mas vividas como terras. Onde a natureza pertence a si mesmo e não a nós. A língua que temos como seres humanos falantes, dotados de linguagem, é um palavrear que pertence ao mundo, aos ares, às terras, aos respiros, aos voares, aos andares. É uma outra maneira de imaginar o nosso ser no mundo, que é estórico, e vivo. Mas é justamente por isso que o exílio é tão presente na poesia de Barbeitos. A situação colonial e a luta pela independência. Porque a própria linguagem assim imaginada não pode pertencer à construção histórica do mundo, onde vivemos em nacionalidades e nações, onde as línguas são nacionais e internacionais e não mais vidas, formas, corações batendo, pulmões que respiram…

A língua foi exilada de si mesma por causa de uma ideia do mundo onde a língua confirmou, para o homem, a sua superioridade. Uma ideia megalomaníaca que tirou o lugar da língua para instaurar um outro domínio de língua que não tem nada a ver com ela própria.

Encontrei o texto a seguir na introdução do livro “Angola Angolê Angolema”, uma transcrição de uma fala do autor quando passou por Lisboa em 1975. A experiência do exílio, a situação colonial e a luta pela independência são seus temas. Mas tudo isso na simplicidade da natureza, ou seja, na singularidade da natureza, é o que Barbeitos parece querer atingir:

eu quero escrever coisas verdes
verdes
como as folhas desta floresta molhada
verdes
como teus olhos
que só a saudade deixa ver
verdes
como a menina duma trança só
que soletra em português sa-po sa-po
verdes
como a cobra esguia que me surpreendeu
naquela cubata sem outra história
verdes
como a manhã azul
que acaba de nascer

eu quero escrever coisas verdes

Cecilia Sá Cavalcante Schuback

 

Conversando com Arlindo Barbeitos

 

Em Outubro de 1974, em Frankfurt, um editor alemão amante da literatura africana dava-nos a conhecer a poesia de um jovem angolano, ao tempo assistente no Instituto de Etnologia da Universidade de Berlim Ocidental. E logo a voz de Arlindo Barbeitos nos surgiu como algo de inteiramente diferente no panorama da literatura africana de expressão portuguesa.

Embora preso a um momento da História, concretamente a história do país e do povo a que ligou o seu destino, o poeta ousa transcender esse momento para anunciar o que sente ser a grande metamorfose: a reconciliação do homem com a sua condição. E nesta perspectiva a sua poesia é ela própria, para além de testemunho e de meio de conhecimento de uma realidade, um instrumento de libertação.

O fascínio que desde logo esta poesia sobre nós exerceu – o seu universo, a via livre da sua expressão, a força do estilo, a concentração e a densidade do verso, o seu grande respeito pela palavra – levou-nos ao interesse de um diálogo com o Poeta. E quando da sua passagem independente, o poeta falou. De poesia, um pouco de si. Nós gravamos e pareceu-nos que seria importante que o leitor também o ouvisse abordar os grandes temas: as influências; a forma e o conteúdo; a palavra e a língua; a inspiração – o exílio, a situação colonial e a luta de libertação, a guerra e a revolução

Sá da Costa¹

A capa do livro de Barbeitos, publicado em 1976.
A capa do livro de Barbeitos, publicado em 1976.

Assim como o camponês aprende a trabalhar a terra, o poeta aprende a trabalhar com a palavra, aprende a não dizer de mais e a não dizer de menos, aprende a sugerir. A poesia não deve fazer mais que sugerir; ela é um compromisso entre a palavra e o silêncio, não o silencio de quem não tem nada para dizer, mas o silêncio que é o sumo de muita coisa. Então o poeta traduz. Ele é uma boca, e deve ser a boca daqueles que não têm boca.

Embora o poeta tenha sentido a necessidade de elaborar a sua voz, há uma certa interpenetração dele próprio como aquilo que ele pensa ser a sua Angola e por isso um recorrer a formas tradicionais, canções antigas africanas. Se observar bem, há na minha poesia certas repetições à maneira de canções africanas que pressupõem um conhecimento de formas tradicionais. Meter-se por Angola adentro não é só meter-se pela paisagem, é meter-se pelos homens adentro, pelos homens que não vivem contra a natureza; por isso esta poesia é também um fazer a natureza falar. Há que entender a poesia como a relação do poeta com as coisas, e assim o poeta não fala de si só, ele enriquece deixando os outros falar, falar pela boca dele.

Então por que é que o poeta lê tantos outros? Simplesmente, não pelo desejo de imitar os outros, mas para se determinar melhor ainda. O poeta leu muitos poetas africanos e achou que estava correto, sentia os mesmos anseios que eles, mas afastou-se dos habituais sendeiros da poesia africana de expressão portuguesa.

Li também muita poesia e literatura antiga portuguesa; li, por exemplo, com muito prazer esse poeta cristão-novo Rodrigues Lobo, pouco conhecido, quase ninguém se recorda dele, e que eu acho que é um grande poeta. Mas não sei até que ponto isso possa estar dentro dos meus versos. São influências subterrâneas, e então ai há muitas; há subjacentes, e às vezes saindo mesmo cá para fora, formas culturais africanas que recordo do meu passado, eu vivi no interior, e da minha profissão de etnólogo. Mas também, muito maior que a influência portuguesa, num certo tipo de construção, e muito mais do que se possa pensar, há a influência da poesia chinesa, da poesia japonesa. Temos aqui uma certa maneira artesanal, primorosa, de modelar a palavra, mas tudo isto tem a ver principalmente com a forma, e menos com o conteúdo.

Recordo um amigo que me dizia que na poesia europeia, depois de Baudelaire, não se falava mais da natureza. Eu disse-lhe que isso não me interessava, nem nada. O que é que eu tenho a ver com isso? Porque eu não sou um poeta europeu. Interessa-me ler a poesia europeia porque posso aprender muita coisa que me ajude a exprimir aquilo que não é nada europeu. Senão seria traidor e eu não quero sê-lo. Deixar falar a natureza e o homem que aí vive, aí sofre; nisto, neste sentido, a poesia oriental ajudou-me muito mais. A poesia portuguesa antiga, de certa maneira, mas com toda a franqueza, a poesia portuguesa moderna pela qual eu tenho o maior respeito, sem falar só das grandes figuras como Fernando Pessoa mas de outras como Cesário Verde, de que gosto muito, não me ajudou nada.

Comecei a versejar sem conhecer poetas. Os outros são só uma maneira de ajudar a exprimir-se mais exatamente. E isto não é arrogância, não, é saber que trago na barriga algo de diferente de muitos outros. O que o poeta traz na barriga é o que importa, é por isso que eu sou completamente alheio a tendências, a escolas. Eu sei lá se sou simbolista, ou modernista, ou outras coisas ainda; nem me interessa nada, com toda a sinceridade.

Por isso quando gosto de um poeta, quando gosto de uma expressão poética (por exemplo, quanta beleza há nas exortações dos xamãs da Ásia central, nessa poesia tão violenta, tão forte!), não me importo então pela forma que a poesia possa escolher.

Embora na minha poesia possa haver formas que aparecem da confrontação, sei lá, com um poeta qualquer, por exemplo um poeta de que eu gosto muito, Celan, um poeta de expressão alemã mas que não é alemão. Mas como disse já, a poesia só é poesia se sugere, só tem expressão, só tem força, só é arte em forma de palavra, se simultaneamente retém e transcende a palavra. Por conseguinte poesia não pode reduzir-se à língua ou linguagem. Há aí um poema que é exemplo disso:

o grande silêncio
onde toda a tempestade
começa e acaba
não ouve
mas dança
em palavras
feitas gesto
num saracotear de vento
de teu corpo de pássaro d’água

Quer dizer, este grande silêncio não é ausência, não é vazio. Este grande silêncio é talvez o começo de muita coisa, até o fim; é uma espécie de ovo, por assim dizer, é o momento onde pode começar a gestação, “onde toda a tempestade começa e acaba”, “mas dança”, tem vida. Uma criança quando nasce não fala, mas berra e mexe, “mas dança em palavras feitas gesto”. Para além da palavra, que é expressão de algo, há todo um complexo de coisas (a coisa, a pessoa – e aqui também o desejo de não dividir, não compartimentar), “num saracotear de vento de teu corpo de pássaro d’água”; se quiser, todos os elementos e as pessoas ainda. Enfim, será uma poesia que tende à harmonização no sentido de um terminar da alienação, embora se saiba que é quase impossível. Esta é a grande esperança. Na minha poesia o mais importante é o que não está escrito. A minha esperança, quando escrevo, é que quando escrevo a palavra pedra eu atire a palavra pedra à cabeça do outro e lha parta mesmo, lhe quebre a cabeça. Que exista uma simetria, fictícia porventura, entre a palavra e a coisa, a expressão e a realidade. Que entre a palavra e a coisa ninguém possa pôr a mão, porque não haja espaço, que haja pois uma adesão total. Eu não quero ser forma só, eu não quero reduzir-me à linguagem. Eu não quero ser forma só, eu não quero reduzir-me à linguagem.

Não cabe aqui dizer que a minha poesia é triste, ela é uma poesia, se quiser, religiosa no sentido mais profundo do termo, no sentido em que o ser humano aspira sempre a uma melhoração, pois quando deixa de aspirar não tem mais razão para existir. Religiosa também pelo desejo de um retorno à imanência. Água na água. A harmonia final à qual a revolução também aspira.

E porque é assim eu não necessito de exortar. Porquê exortar, se exortar está à superfície da água e se aqui, sinto eu, se vai muito mais ao fundo das coisas? É no inicio e no fim que as coisas se harmonizam, talvez no sentido, não quero ser pretensioso, que diria Hegel, quando o chamado espírito absoluto vai à procura das coisas, as encontra e as interpenetra acabando, assim a alienação. Algo de semelhante, se quiser.

Eu repetiria que poesia, como eu a sinto, é o compromisso entre a palavra e o silêncio. E acrescentaria que é, além disso, um compromisso com os outros homens, mas de modo algum com o explorador. No fundo é uma poesia de irmandade, além de ser uma poesia de esperança. Simplesmente não é todo o preço.

De esperança:

na noite aveludada

não mais histórias de medo:
mabecos sem cabeça
ladrando pelo pescoço às caravanas de cera

na noite aveludada
histórias da história
que vamos fazendo

Este modo de contar histórias é um modo tradicional, mas há já aqui uma chamada ao presente; não mais o passado dum povo dominado, portanto um passado de medo. Na minha poesia há todo um desejo de construção do novo. A História que vamos fazendo é a história da guerra, do processo de emancipação, a história que nos pertence. A nossa história foi-nos roubada e nos temos de reconquistá-la. Exatamente, este processo da guerra é a reconquista da nossa história em relação ao presente porque reconquistamos aquilo que é nosso.

Que a minha poesia não é uma poesia de exortação. Não, eu não exorto, porque acho que as pessoas que sofreram a situação colonial estão conscientes de que devem lutar, não precisam ser exortadas, e também não sei até que ponto é que poesia escrita no contexto atual, isto é, reduzida a certas classes, possa exortar. Talvez, eu não sei, e por isso evito fazê-lo diretamente, pelo menos.

Tentei dum modo quase permanente transmitir esta dor; a guerra está por detrás de uma série de poemas, a guerra como absurdo da situação colonial. A guerra e a situação colonial não se podem separar, são os dois lados da mesma medalha, são a grande barriga onde cresce toda a minha poesia. A guerra como algo de mau, tenebroso, terrível, por outro lado como algo que nos limpa, que nos liberta. E na medida em que o poeta muito honestamente, humildemente mesmo, deixa falar as coisas e os outros, não necessita exortar, não pode exortar, não pode pôr-se acima daquilo que o rodeia.

Isto não significa que a minha poesia não seja uma poesia de luta. É de uma luta sofrida, a distância e lá mesmo. Uma das experiências mais importantes do poeta foi a permanência, infelizmente muito curta, na fronteira leste de Angola entre 71 e 72; e, ainda que demasiado curta, bastou para aprender muito.

Transmito a minha poesia numa língua que não posso esquecer, é a língua colonial, mas que não deve ser a única língua a ser falada pelo povo angolano. Seria um massacre cultural horrível. Essa língua continua sendo ainda uma língua de estrangeiro em Angola. Então, já que aqui eu sou um ignorante, não conheço as línguas de Angola o suficiente, tento pelo menos, dando um conteúdo nosso, africanizar a língua colonial. Aliás o próprio povo já o faz e o poeta, finalmente, segue-o.

As línguas africanas foram capazes de uma poesia oral belíssima, por que não seriam elas capazes de uma poesia escrita belíssima também? Simplesmente os poetas é que não foram capazes, e o povo angolano não deve esquecer isto.

Fala-me do meu exílio na Alemanha, imperceptível na minha poesia. Sim. Na Alemanha sempre me considerei como angolano. Nunca me identifiquei com a realidade alemã. Mas a minha poesia é, por outro lado e também, de um modo talvez escondido, encoberto, um combate contra a Alemanha e a afirmação de mim próprio como angolano. Por isso aqueles dois poeminhos acerca da identidade, identidade que se apercebe ser fugaz.

a identidade
ou
voo esquivo
de pássaros nocturnos
em torno da lua

identidade
é cor
de burro fugindo

Por detrás destes poemas está a Alemanha, está o exílio. Porquê falar desses problemas assim, se eu posso abstrair, e quando há tantos na mesma situação?

Talvez as aparências não bastem. Há pouco citou aquele poema “Verão dum verão”:

irmão
a diferença entre um ovo de lagarto e um ovo de rola
está no verão dum verão
e não é
porque o lagarto põe ovos
que voará
nem
porque o feiticeiro grande fala com jacarés
que subirá às arvores
a diferença entre um ovo de lagarto e um ovo de rola
está no verão dum verão
irmão

Eu queria explicá-lo um pouco. As aparências não bastam, há que ir ao que está encoberto. O facto de o feiticeiro entender a língua do jacaré não quer dizer que ele suba às arvores. Isso pode significar, por exemplo, que no passado a cultura antiga tenha bastado para uma vida aceitável, agora já não basta. Temos de ir mais adiante. Temos de inventar. E inventar é também sonhar, no entanto, sonhar sem ilusões e sonhar lutando.

Oh princesa sem outra terra
que aquela
que o guerreiro traz em sua mão
Muêne-Pembe
morreu rindo
atirando de joelho no chão
cada dente uma bala
e cada bala um sonho sem ilusão
atirando morreu
Muêne-Pembe
rindo de joelho no chão
cada dente uma bala
e cada bala um sonho sem ilusão
oh princesa sem outra terra
que aquela
que o guerreiro traz em sua mão

Sonhar quer dizer ainda pensar o futuro que temos que construir. Contudo só se pode fazer aquilo que é possível. É perigoso às vezes falarmos do impossível, mas o que é possível não pode ser adiado. E o que é possível so, claramente, se ve medindo-nos com o impossível. Por tal Muêne-Pembe morreu rindo.

Nós estávamos fora de nós, pertencíamos ao outro, e contra o outro nos lutamos agora. E no tempo em que pertencíamos ao outro, tínhamos medo, tínhamos histórias de medo. Ter medo está neste poema:

houve um tempo
em que pássaros azuis
se demorando nas hastes de arvores antigas
e mães aleitando seus meninos em sossego
nos faziam crer
que o temor de séculos era uma lenda

gritos longínquos não seriam outros
que os de macaco assustado
houve um tempo

Já não é mais esse tempo mas um outro em que contamos histórias da história que vamos fazendo. Depois há uma reapossar-se de si mesmo, da nossa própria natureza, que pertence a nós e não a outro.

beijo até à garganta tua boca pantanal
paradeiro obsidiano de sapos miasmas excrementos e orquídeas
[roxas
respiro teu halo mortífero de febres palustres
chupo tua língua dura
tronco de mulemba carcomida
que sopro de mologe zangado
fez tombar à agua
em noite de trovoada seca
respiro teu halo mortífero de febres palustres
beijo até à garganta tua boca pantanal
paradeiro obsidiano de sapos miasmas excrementos e orquídeas
[roxas

No tempo em que era garoto eu ouvia dizer à professora que Angola era feia, que a nossa natureza era horrível, que ela vinha de Portugal e que em Angola se apanhavam doenças. Quer dizer, até isso, a natureza, nos roubaram. Daí este reapossar daquilo que é nosso. Que seja feio, que até não valha nada, mas que seja nosso.

Não existe uma continuidade cronológica nos meus versos. A guerra sempre aí esteve presente. Às vezes de forma circunstancial como em

amanheceu
quem diria
que inda agora hoje era ontem
e que cacos ao longe não iam ser olhos de bicho
quem diria
que patos-bravos mergulhando não eram jacarés
e que lagartos azuis iam a quatro patas
quem diria
que bosta de elefante não eram pedras
e que guerrilheiros antigos iam pisar a sua mina
quem diria
que o professor cismando não era surdo
e que os alunos não iam falar a sua língua
quem diria
que a moça do Mulé
que inda agora era virgem logo já o não é
quem diria
que inda agora hoje era ontem
amanheceu

Foi no momento em que a base onde nos encontrávamos foi atacada por tropas da UNITA.
Mas ela está presente mesmo em poemas onde aparentemente não existe:

almas de feiticeiros desaparecidos
repousam de noite nas copas de árvores antigas

nuvens brancas
pássaros nocturnos

o hospede de sandálias de pacaça
aproxima-se do fogo e adormece

almas de feiticeiros desaparecidos
repousam de noite nas copas de árvores antigas

Porque uma situação de guerra e uma situação colonial são filhas da mesma cabra. Há desconfiança e medo. A guerra está em toda esta poesia porque a guerra é a resposta à situação colonial. Angola é algo de dinâmico, Angola é um processo, acção e reacção. A reacção à acção colonizadora que eu melhor conheci, que eu mais senti, foi a guerra, resposta ao colonialismo que na minha região do interior é muito antigo – quatro séculos e meio.

Se não falo de luta armada mas de guerra, é porque a guerra é algo de mais vasto do q eu a luta armada. A guerra é o trabalho dos camponeses cultivando uma lavra e correndo o perigo de serem bombardeados enquanto cavam. Não dão um tiro, mas é a guerra. A guerra é a canção maravilhosa daquela mãe que traz pela mão uma criancinha e fala de independência. Naquela altura ninguém deu um tira, naquela altura todos estavam felizes, se calhar tinham acabado de comer. Mas é a guerra. A guerra é a vida quase banal do dia a dia em situações extremas. Extremas ainda porque ao mesmo tempo estamos a construir coisas pela primeira vez e com os meios mais precários.

Mas a destruição do inimigo é só um aspecto da guerra, e em meu entender nem sequer o mais importante.

A luta está inserida na revolução e da revolução é difícil falar:

amada
minha amada
a revolução
não é um conto
e
uma borboleta
não é um elefante

como agarrá-lo

devagarinho
o menino ia comendo o peixe frito
assim como quem toca gaita-de-beiço

É quase que alienante a redução de um processo muitíssimo complexo aos seus aspectos mais visíveis.

Há na minha poesia uma certa tristeza pela situação de luta armada que não glorifica? Mas eu vi também camponeses chorando de desespero pela nossa guerra que eles desejaram, que eles fizeram! Porquê não dizer a verdade? Dor é dor, morte é morte. E a morte é um problema. O povo traz a guerra na barriga mas a guerra tem aspectos que não são nada guerreiros. A pessoa que lutou e chorou, pouco depois dançará, capinará, dormirá. O inimigo até talvez esteja perto. Quem o sabe? A guerra pode ser uma esperança de paz. De todos os modos, a guerra é um todo. É uma centopeia com muitas pernas.

 

***

 

¹Sá da Costa – Augusto Sá da Costa, um dos mais importantes editores de Portugal durante a ditadura do Estado Novo de Salazar e por alguns anos posteriores. 

 

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