Tudo na vida começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida.¹
Clarice Lispector
Como começar? Como começar um mundo ou, antes, como começar em um mundo que parece se aproximar do fim? Por que começar? Estas não são apenas perguntas que fazem o pensamento girar, são perguntas que estão na ponta dos dedos, e quando circulam como sangue pelo corpo, quando deixam de ser apenas pensamento para serem perguntas-letras, algo da resposta já se insinuou… Como começar? E, num átimo, já começou. No fundo, todo começo é assim: simplesmente começa. Sem porquê, nem para que, começa. Suas causas e metas, suas razões e fins são sempre depois, são epígonos. Todo começo, como começo, é um prelúdio.
Texto prelúdio do fim e, por isso, começo do começo. “Mais próximo que nunca: Faltam 100 segundos para a meia noite”². Esta é a perspectiva do Boletim dos Cientistas Atômicos e do seu chamado “Relógio do Fim do Mundo”, o Doomsday Clock. Aqui, a meia noite representa a hora mais escura, a aniquilação do gênero humano. Mas este é um texto-sopro, “não é um lamento, é um grito de ave de rapina. Irisada e intranquila. O beijo no rosto morto”³, como disse Clarice Lispector certa vez. Pois a meia noite é não só a hora mais escura. Meia noite, não nos esqueçamos, também é a hora do começo do dia. Por isso, depois da meia noite, falamos em 1 da manhã, 2 da manhã, etc. Letras pretas em fundo branco… Inefável metáfora para prelúdio do fim e começo do começo? Para um texto branco em fundo preto, forjado no mistério da noite e capaz de levar luz ao submundo?
Texto branco em fundo preto foi exatamente como Haroldo de Campos imaginou seu poema, o â mago do ô mega, onde a certa altura se lê: “um duro tão oco, um osso tão centro, um corpo, cristalino, a corpo, fechado em seu alvor… Zero ao Zênit, nitscendo, ex nihilo”. Em uma clara-escura referência a Nietzsche, um poema-noite para, no oco do nada, forjar uma alvorada, uma manhã. Em um dos textos de Ecce Hommo, a saber, Aurora, Nietzsche nos brinda com uma inscrição indiana que diz: “Há tantas auroras que não despontaram ainda…” ⁴. Também na última frase de seu Humano Demasiado Humano, lemos:
Nascidos dos mistérios da alvorada, eles [andarilhos e filósofos] ponderam como é possível que o dia, entre o décimo e o décimo segundo toque do sino, tenha um semblante assim puro, assim tão luminoso, tão sereno-transfigurado: – eles buscam a filosofia da manhã. ⁵
Sobre o â mago do ô mega, Haroldo de Campos nos diz que “impressos em branco sobre fundo preto, esses poemas fazem reverter para o céu noturno, salpicado de estrelas-palavras (Vieira), a página branca de Mallarmé. Céu noturno, branco ao contrário” ⁶ . A respeito do modo de composição, afirmou ainda que na série o â mago do ô mega propôs-se a chegar “ao eidos do poema, à coisa da coisa, […] um zero vazio e significante ao mesmo tempo, algo como o sujeito zerológico – em lugar do signo instaura-se o choque dos significantes que se anulam reciprocamente.” ⁷
Haroldo de Campos e Nietzsche, poesia e filosofia… Distintos os autores, distintos os campos, e um mesmo denominador comum: a escuridão, a noite, o nada e um possível alvorecer. A poesia e a filosofia ocupadas em transfigurar a noite do mundo em manhã, em alvorada vital. Ambos tomados pelo que podemos chamar de certa negatividade do e no mundo (do poema ou da realidade), algo a que Nietzsche nomeou de niilismo.
Niilismo é, de modo simples, tudo aquilo que diz não à vida e, em dizendo, faz da vida um impossível. Um dizer não que termina por anular a possibilidade do viver. Mas todo dizer não é somente negação, ou pode haver e há qualquer coisa de sim, de afirmação na negação? Em A Vontade de Poder, lê-se:
Uma filosofia experimental assim, tal como a vivo, toma de antemão como ensaio mesmo as possibilidades do niilismo fundamental: sem que com isso fosse dito que ela estacionasse em uma negação, em um não, em uma vontade de não. Ela quer, antes, atravessar até o inverso – até um dizer sim dionisíaco ao mundo tal como ele é (…). O estado supremo que um filósofo pode alcançar: permanecer dionisíaco em relação à existência – : minha fórmula para tanto é amor fati (amor ao destino).
Em uma de suas Galáxias, Haroldo escreveu: “e não fie, desafie, e não confie, desfie, que pelo sim pelo não, para mim prefiro o não, no senão do sim ponha o não, no im de mim ponha o não, o não será a tua demão.”⁸ Se, a princípio, Haroldo diz preferir o não, é importante lembrar que o não haroldiano comunga qualquer coisa com a negação da negação nietzschiana, i.e., com a negação contra tudo aquilo que nega a vida. Negar o que nega a vida. Assim, lemos em rima petrosa-2: “mas se de tamanho não/tão unânime um não tão/se dessa massa de nãos/como da massa de pão/fermentar um dia um sim/(por mínimo que seja/o seu roçar de cetim)… serei eu a dizer não/um não de sins/o meu não.” ⁹
Como começar? Como começar uma nova vida, um novo mundo? Nietzsche e Haroldo de Campos começaram dizendo não. Mas, afinal, o que é que a negação tem a ver com o capitalismo e a vida? Poderia a negação conduzir um profundo sim à vida? “Pode a própria semente ser a sua necessária terra?” ¹⁰, indagou-se João Guimarães Rosa. Nós, perguntamos: na noite do mundo, no oco do nada, no vazio do niilismo, na negação da negação, pode brotar um sim vital? Pelos caminhos insuspeitados da vida, ninguém menos que Karl Marx parece ter feito pergunta bastante semelhante. Semelhante em tal grau que o permitiu afirmar que “o comunismo é a posição como negação da negação, e por isso o momento efetivo necessário da emancipação e da recuperação humanas para o próximo desenvolvimento histórico.”¹¹
Para que possamos nos aproximar do sentido desta frase e da função do comunismo como negação da negação, é preciso antes entender como Marx define o capitalismo. Em linhas muito gerais, podemos dizer que Marx compreende a essência do capitalismo por um fenômeno duplo e reciprocamente constitutivo, a alienação do trabalho e a propriedade privada. Em seus Manuscritos Econômico-Filosóficos, lemos: “Em geral, a questão de que o homem está alienado do seu ser genérico quer dizer que um homem está alienado do outro, assim como cada um deles está alienado da essência humana”¹² Por este trecho podemos entrever que a alienação do trabalho está diretamente relacionada à definição de essência do homem proposta por Marx.
Marx formula sua definição de essência do homem em contraposição a definição de essência humana proposta por Hegel. Ainda nos Manuscritos, diz:
Ele [Hegel] apreende o trabalho como a essência do homem que se confirma; ele vê somente o lado positivo do trabalho, não seu lado negativo. O trabalho é o vir-a-ser para si do homem no interior da exteriorização ou como homem exteriorizado. O trabalho que Hegel unicamente conhece e reconhece é o abstratamente espiritual. O que forma, assim, a essência da filosofia em geral, a exteriorização do homem que se sabe, ou a ciência exteriorizada que se pensa, isto Hegel toma como sua essência […].¹³
Tal como Hegel, Marx também entende que a essência do homem é o trabalho. O problema está na frase: “O trabalho que Hegel unicamente conhece e reconhece é o abstratamente espiritual”. A partir deste ponto, Marx chega à conclusão de que a definição da essência do homem formulada por Hegel termina por ser abstrata, donde a consciência-de-si, i.e., “o vir-a-ser para si do homem”, não basta para defini-lo de modo efetivo, prático. Esta é a razão que o leva a afirmar que Hegel viu, apenas, “o lado positivo do trabalho”, muito embora reconheça que o resultado final da Fenomenologia do Espírito é a dialética e esta é, tão somente, “a negatividade enquanto princípio motor e gerador.”¹⁴
O que Marx propôs? Propôs que se pensasse, para além do lado positivo do trabalho, como Hegel, o seu lado negativo. Por quê? E agora precisamos relacionar esta pergunta à alienação e à propriedade privada. Vejamos uma clássica cena do filme Tempos Modernos (1936), de Charles Chaplin.
Esta é uma imagem que, talvez, possa nos servir de cena-síntese, i.e., uma cena que está imediatamente junta à tese de Marx. Chaplin, como se vê, é o responsável por apertar o parafuso. O trabalhador à direita da cena, i.e., à esquerda de Chaplin, é o responsável por martelar e fixar o parafuso na peça. Já o seguinte, o responsável por passar um tipo de óleo (provavelmente) na peça. Como se observa na imagem, cada trabalhador é responsável por apenas uma parcela na produção do produto, uma parcela que não garante ao trabalhador nem a visualização, nem a posse do produto final.
Marx analisa o trabalho sob dois aspectos. Vamos comentar o primeiro em relação à nossa cena. Ele diz da “relação do trabalhador com o produto do trabalho como objeto alienado e poderoso sobre ele. Esta relação é ao mesmo tempo a relação com o mundo exterior sensível, com os objetos da natureza como um mundo alheio que se lhe defronta hostilmente.”¹⁵ Ora, se a essência do homem é definida por Marx como trabalho, então a alienação do produto final não implica apenas em uma consequência social, i.e., de classe, antes diz de uma posição ontológica, de uma mudança na essência do homem, pois aquilo que é o resultado, aquilo que a força essencial produz, é algo alheio e diferente dela mesma.
Na medida em que Chaplin e os outros trabalhadores que observamos junto à esteira não detém nem os meios para a produção, nem o produto final, eles não estão sendo alienados apenas do resultado, do produto, seja esse qual for. Se a essência é o trabalho, e o trabalho produz algo diferente do homem mesmo, então o trabalho aliena o trabalhador não só dos meios e do produto. A consequência ontológica do trabalho passa a ser uma negatividade, pois ele termina por alienar o homem de si mesmo. Por isso Marx disse que Hegel viu apenas “o lado positivo do trabalho”, como aquilo pelo que o homem pode sustentar-se sobre suas próprias pernas, como ele aparece para si mesmo.
Se a essência do homem o arrasta para longe de si mesmo a tal grau fazendo com que ele não mais se reconheça, tornando-o um estranho de si, então já não há diferença entre o homem e o produto que ele produz, esse algo que é, por natureza, diferente dele. Por isso, a consequência fatal da alienação pelo trabalho não é apenas a produção de um objeto exterior, exteriorizado, alienado. Antes, é a nefasta visão de que este objeto alienado não é só um produto qualquer, mas o próprio homem. Homem que passa a produzir a si mesmo como alienação, como negatividade, como não-homem. Essa é a dinâmica que possibilita com que o homem possa vender a força de sua essência, i.e., sua força de trabalho, e é por isso que tanto a força de trabalho quanto o produto final podem assumir um único e mesmo valor. Força de trabalho (força essencial humana) e objeto, ambos, assumem o valor do dinheiro. Como homem-dinheiro, o valor do homem, i.e., sua essência, deixa de poder ser distinguida de todos os outros objetos do mundo. O “trabalho decompõe-se em si e no salário. O trabalhador mesmo [como sendo] um capital, uma mercadoria”. ¹⁶
É neste sentido que Marx diz que o “objeto alienado é poderoso sobre ele [o homem]”. É poderoso porque reflete ele mesmo como falta, como algo deletério, i.e., des-essencializado. Como homem oco, “o homem carente, cheio de preocupações, não tem nenhum sentido para o mais belo espetáculo; o comerciante de minerais vê apenas o valor mercantil, mas não a beleza e a natureza peculiar do mineral; ele não tem sentido mineralógico algum”.¹⁷ Por isso a relação com o trabalho não determina apenas a relação do homem com ele mesmo, mas como Marx observou, diz de todo o “mundo exterior sensível”. É deste modo que “o trabalho alienado aliena do homem a natureza, [e o homem] de si mesmo, de sua própria função ativa, de sua atividade vital; ele aliena do homem o gênero [humano]”. ¹⁸
Esse é, justamente, o segundo aspecto pelo qual Marx analisa o trabalho, a relação do trabalhador com sua própria atividade, “como uma atividade alienada, não pertencente a ele, a atividade como miséria, a força como impotência, a sua vida pessoal – pois o que é a vida senão atividade – como uma atividade voltada contra ele mesmo, independente dele, não pertencente a ele”. ¹⁹ O trabalho, ou seja, a força essencial humana, voltando-se contra o próprio homem. Instala-se em sua essência, portanto, uma negatividade, i.e., uma força humana, demasiadamente humana, que nega, justamente, o próprio homem. Produzindo o homem como negação, o capitalismo faz com que esse não-homem assuma a fala de seu novo ser produzido… O não-homem converte-se numa espécie de arauto do niilismo, aquele que diz: – Homem, não! A força afirmativa do trabalho vista por Hegel transformada no mais fundo e profundo negativo, negando o homem e a vida. É por isso que Marx pôde inverter a equação “trabalho alienado” e “propriedade privada”. Em uma leitura superficial, geralmente compreende-se que é a propriedade privada que conduz à alienação do trabalho. Esta não é, entretanto, a posição de Marx. Para ele:
A propriedade privada é o produto, o resultado, a consequência necessária do trabalho exteriorizado, da relação externa (äusserlichen) do trabalhador com a natureza e consigo mesmo. A propriedade privada resulta, portanto, do conceito de trabalho exteriorizado, isso é, de homem exteriorizado, de trabalho alienado, de vida alienada, de homem alienado.¹⁰
A propriedade privada é o resultado, é o efeito, e não a causa, conforme Marx, porque sua existência depende do homem esvaziado, do trabalhador tornado objeto que “pode precipitar-se diariamente de seu pleno nada no nada absoluto e, portanto, na sua efetiva (wirkliche) não-existência (Dasein)”.²¹ Se ainda nos lembramos das palavras de Haroldo de Campos ao comentar o seu o â mago do ô mega, então podemos dizer que Marx percebeu a “coisa da coisa”, o eidos do capitalismo.
O capitalismo tem o poder de transformar o homem no “sujeito zerológico”, i.e., “em um zero vazio e significante ao mesmo tempo”. Esvaziado desde si mesmo, em si mesmo, posto que sua força essencial, seu trabalho, reverte contra ele, instala aquilo que Campos chamou de “choque de significantes”. A essência do homem se chocando contra o homem, anulando reciprocamente, homem e essência. Anulação que não desloca apenas o significante, i.e., a forma material, tangível, a matéria-homem. Mas anulação que, por fazer com que os significantes se choquem, desloca o significado da história, o conceito. O capitalismo transforma o ômega, i.e., a última posição histórica, desde o âmago. É somente a partir deste movimento, desta anulação radical do homem e da vida, que pode haver propriedade privada, pois ela depende de um esvaziamento do sentido de Terra. Por isso Marx diz: “A terra como terra, a renda da terra como renda da terra perderam, com isso, sua qualidade social distintiva (Standesunterschied), e converteram-se em capital e juro (Interesse) que nada dizem, ou antes, que apenas sugam dinheiro.”²²
Terra, mundo, natureza, história e homem… Tudo que é e há sob um único e mesmo valor, o valor sobrevalor, i.e., o valor que supervaloriza a si mesmo, o dinheiro. E afinal, um dos lemas da sociedade financeira e de consumo não é o de que “o dinheiro chama/atrai o dinheiro”? Eis seu fundo. Narcísico como seu criador, o homem, que agora já não se vê a si mesmo nas águas dos rios, mas enxerga seu reflexo em cifrões
Agora já estamos em condições de voltar à questão inicial, a saber, compreender o que Marx quis dizer quando afirmou que “o comunismo é a posição como negação da negação”. Se o capitalismo é a dinâmica pela qual o homem se dissolve, é anulado, é esvaziado desde o coração de sua força, então ele é um profundo dizer não à vida. O capitalismo, para Marx, é uma negação. Negar o que nega a vida, por isso o comunismo é a posição como negação da negação, porque nega o capitalismo. E é deste modo, também, que Marx compreendeu que ele era “o momento efetivo necessário da emancipação e da recuperação humanas para o próximo desenvolvimento histórico”.
A questão que realmente interessa aos nossos dias é que Marx já havia percebido que, como negação da negação, o comunismo não era, nem poderia ser, “a figura da sociedade humana”, i.e., seu último termo, sua posição final. E por que não poderia? Mais uma vez precisamos atentar para a definição de existência que Marx legou. Se “um ser se considera primeiramente como independente tão logo se sustente sobre os próprios pés, e só se sustenta primeiramente sobre os próprios pés tão logo deva sua existência (Dasein) a si mesmo”, então nada que existe em função de algo exterior, i.e., diferente de si mesmo, se sustenta por si e em si. Como figura da negação da negação, o comunismo precisa do capitalismo como Quimera para poder vir a ser, então, Belerofonte. Por isso Marx compreendeu que ele era um “momento efetivo” no curso do desenvolvimento histórico.
A pergunta que temos de responder hoje, de modo ético e efetivo é: onde estará, então, esta figura essencialmente positiva, esta figura que por princípio já abandonou a necessidade do dizer não, de negar o capitalismo, e já conquistou per si, simplesmente por existir, um profundo e imenso dizer sim à vida? Wittgenstein nos permite esboçar uma resposta. Em seu Tractatus Logico-Philosophicus, encontramos duas teses, donde a primeira diz: “A figuração pode afigurar qualquer realidade cuja forma ela possui”²⁵ . Já a segunda: “Sua forma de afiguração, contudo, a figuração não pode afigurar; apenas exibe”. Como figuração, o capitalismo pôde e pode figurar a terra, o mundo, a natureza, a história e o homem. Mas por já ser uma figuração, i.e., um modo de composição de figuras, ele não pode figurar sua afiguração, i.e., a forma pela qual toda e qualquer figura, o que o inclui, vem a existir.
Em Um Sopro de Vida – Pulsações, último livro escrito por Clarice Lispector e publicado somente em 1978, meses após seu falecimento por um câncer, em 1977, encontramos o dilema de um autor que escreve para salvar a vida de alguém, provavelmente a sua própria, revela. Diz-nos este Autor: “Hoje está um dia de nada. Hoje é zero hora”. Dia de nada, zero hora… Autor no cerne do niilismo. Mas esta não é a única frase do livro, ao contrário, é uma das primeiras.
Um livro “feito aparentemente por destroços de livro”. Se ainda podemos recorrer à metáfora do mundo e da vida, como um livro, então este inominado Autor nos responde como pode brotar, no seio do nada, em um mundo destroçado, um dizer sim que já sempre abdicou da necessidade de negar. Lemos: “Eu queria iniciar uma experiência e não apenas ser vítima de uma experiência não autorizada por mim, apenas acontecida. Daí minha invenção de um personagem. Também quero quebrar, além do enigma do personagem, o enigma das coisas”.
Se o autor é inominado, ou melhor, é nomeado através da existência da personagem, i.e., seu nome é Autor, a personagem inventada possui um nome, Ângela. Ângela soa aos nossos ouvidos como Ângelo, como angélico, como anjo… Ângela é o anjo que ensina seu Autor a nada menos que aprender a morrer, pois “Deus não mata ninguém. A pessoa é que se morre”, diz. Restando poucas páginas para o fim do livro, o Autor diz: – “Perdi o Livro de Ângela, não sei onde deixei a vida dela”. De modo análogo, a poesia e a literatura nos ensinam a morrer. Mas a morte pelo verso tem a mesma natureza da morte de Ângela. Diz o Autor, depois de perder o “Livro de Ângela” e de perdê-la de vista: “Ângela interrompeu a vida indo para a terra. Mas não a terra em que se é enterrado e sim a terra em que se revive. Com chuva abundante nas florestas e o sussurro das ventanias”. A literatura e a poesia comungam com Ângela Pralini este tipo especialíssimo de morte, uma morte em vida que faz o homem reviver para si. Uma figura da morte capaz de devolver à afiguração o imenso poder de figurar outra terra, outro mundo, outra natureza, outra história e, por fim, outro homem.
Como começar? Como interromper o capitalismo e soprar vida nesta modalidade de homens natimortos? Em um poema chamado o anjo esquerdo da história, Haroldo de Campos diz: “[…] somente o anjo esquerdo/ da história escovada a/ contrapelo com sua/ multigirante espada po-/ derá (quem dera!) um dia/ convocar no ror/ nebuloso dos dias vin-/ douros o dia/ afinal sobreveniente do/ justo/ ajuste de/ contas.” ²⁶
Esse anjo da história, esse Angelus Novus desejado por Walter Benjamin e pintado por Paul Klee, esse anjo esquerdo da história intuído por Marx e poematizado por Haroldo de Campos, ele já sempre veio por intermédio da literatura e da poesia. A característica trágica do capitalismo é que ele rouba do homem seu poder sentir, por isso Marx reconheceu que “a sensibilidade tem de ser a base de toda ciência.” ²⁷ Essa educação da sensibilidade, essa “formação dos cinco sentidos”, Marx também reconheceu que “é um trabalho de toda a história do mundo.” ²⁸
Na literatura e no sonho, não há distância, i.e., não há nenhuma diferença entre a natureza da realidade e a natureza do sonhador (teoricamente conhecemos esta distância pela velha dicotomia entre a forma e o conteúdo). Por isso, enquanto estamos dormindo, raramente podemos perceber que estamos sonhando. No e pelo sonho, homem e mundo são geneticamente idênticos. Esta é uma espécie de enigma do capitalismo. O homem oco, incapaz de sentir, não consegue distinguir, i.e., não vê diferença alguma entre o vazio que ele é e o esvaziamento do mundo promovido pelo dinheiro. Por isso, esta é a única realidade que ele conhece e pode conceber. Mas o capitalismo é um sonho agitado, uma angústia, um pesadelo. Um pesadelo do qual o homem só poderá acordar desde o próprio pesadelo. É preciso que, de dentro do pesadelo, ele se saiba sonhando e decida, por si, acordar. Para acordar, ele precisa se decidir por morrer para o pesadelo. Um tipo de morte em vida que só a arte, de modo geral, pode nos ensinar. Uma morte radicalmente distinta daquela movida e promovida pelo capitalismo e pelo homem nadificado. Este é o papel fulcral da literatura na vida, ela ensina o homem a sentir, a pressentir a sua realidade e a dizer uma espécie de sim calado, aquele sim que, de repente, na calada da noite, nos faz abrir os olhos e perceber que já é dia. Sim! Sim… “Há tantas auroras que não despontaram ainda…”.
Sim, é possível brotar, ex nihilo, uma aurora. É possível que no seio da noite e do homem escuro, venha a ser dia. Mas para que isso seja, é preciso que eduquemos nossa sensibilidade, nossos sentidos, Marx diria. O problema das teorias do mundo, das filosofias, das explicações lógicas e racionais da nossa realidade é que elas já estão sempre do lado de dentro do modo de figuração que o capitalismo é, ou seja, ainda que neguem essa lógica do capital, pertencem a ela: simplesmente por negá-la, elas a confirmam – porque, tal como o comunismo, precisam dela para existir, são figuras da negação da negação. A arte, não. Mas como não estamos comentando a arte de modo geral e genérico, e sim a poesia e a literatura, dizemos: a literatura, não. Ela desde sempre já dispensou esta necessidade de negação e emancipou-se de ser uma figura da negação da negação.
Em 11 de dezembro de 1956, Clarice Lispector, lendo Grande Sertão: Veredas, recomendado à ela por seu correspondente e amigo Fernando Sabino, escrevia:
Fernando, estou lendo o livro de Guimarães Rosa, e não posso deixar de escrever a você. Nunca vi coisa assim! É a coisa mais linda dos últimos tempos. Não sei até onde vai o poder inventivo dele, ultrapassa o limite imaginável. Estou até tola. A linguagem dele, tão perfeita também de entonação, é diretamente entendida pela linguagem íntima da gente – e nesse sentido ele mais que inventou, ele descobriu, ou melhor, inventou a verdade. Que mais se pode querer? Fico até aflita de tanto gostar. Agora entendo o seu entusiasmo, Fernando. Já entendia por causa de Sagarana, mas agora vai tão além que explica ainda mais o que ele queria com Sagarana. O livro está me dando uma reconciliação com tudo, me explicando coisas adivinhadas, enriquecendo tudo. Como vale a pena! A menor tentativa vale a pena. ³⁰
Onde o capitalismo diz não, onde o não-homem afirma sua existência pela nadificação da vida, a literatura diz sim. Diz sim sem qualquer necessidade prévia de um dizer não, de ser mais uma figura da negação da negação. Descobre ou, como disse Clarice, inventa esse sim. Nove anos depois desta carta de Clarice, em janeiro de 1965, no Congresso de Escritores Latino-Americanos realizado em Gênova, Guimarães Rosa, em diálogo com Günter Lorenz, iria dizer a respeito de seu próprio trabalho de escritor:
O homem ao dizer: eu quero, eu posso, eu devo, ao se impor isso a si mesmo, domina a realidade da criação. Eu procedo assim, como um cientista que também não avança simplesmente com a fé e com pensamentos agradáveis a Deus. Nós, o cientista e eu, devemos encarar Deus e o infinito, pedir-lhes contas, e, quando necessário, corrigi-los também, se quisermos ajudar o homem. Seu método é meu método. O bem-estar do homem depende do soro contra a varíola e as picadas de cobras, mas também depende de que ele devolva à palavra seu sentido original. Meditando sobre a palavra, ele se descobre a si mesmo. Com isto repete o processo da criação. Disseram-me que isto era blasfemo, mas eu sustento o contrário. Sim! A língua dá ao escritor a possibilidade de servir a Deus corrigindo-o, de servir ao homem e de vencer o diabo, inimigo de Deus e do homem. A impiedade e a desumanidade podem ser reconhecidas na língua. Quem se sente responsável pela palavra ajuda o homem a vencer o mal.
Descobrir-se a si mesmo pelo trabalho, a junção simétrica entre Hegel e Marx. Onde ambos estacionaram não na vontade de não, como dissera Nietzsche, mas no dizer não como princípio motriz, Rosa iluminou o sim, o sim primordial instalado pela literatura, o sim capaz de ajudar o homem a vencer o mal… O mal em que ele mesmo se converteu. Nem comunismo, nem lógica, nem pensamento racional-filosófico… Talvez só a literatura seja capaz de inventar uma real figura de resistência frente ao capitalismo, porque só a literatura nos ensina a ser desde o nada, desde os abismos da existência. Périplo do não-homem à existência, a odisseia de todo vivente, “travessia perigosa, mas é a da vida”.³¹
Notas:
¹LISPECTOR, Clarice. In.: A hora da estrela.
²Dentre as questões abordadas pelo Boletim ou Relatório, uma delas inclui a possibilidade de voltar o relógio. Voltar o relógio significa, nesse caso, afastar os ponteiros da meia noite. Alguns dos caminhos apontados pelos cientistas incluem uma maior participação social nos rumos das novas tecnologias como, por exemplo, as energias nucleares e termonucleares. Um diálogo mais estrito com os líderes globais no sentido de exigir desses uma crescente responsabilidade com relação ao futuro da humanidade, a possibilidade da vida. Os cientistas ressaltam que este é um tempo perigoso, mas que o perigo é criação nossa. Disponível em: https://thebulletin.org/doomsday-clock/>. Acesso em: 23 Mar. 2020
³ LISPECTOR, C. In.: Um sopro de vida.
⁴ NIETZSCHE. Aurora. In.: Ecce Hommo. p. 94
⁵ NIETZSCHE. Humano Demasiado Humano. §638.
⁶ CAMPOS, Haroldo de. Depoimentos de Oficina. p. 35.
⁷ Idem. Ibidem. p. 36.
⁸ CAMPOS, H. circuladô de fulô. In.: Galáxias. [Grifo meu]
⁹ CAMPOS, H. rima petrosa-2. In.: Crisantempo: no espaço curvo nasce um. p. 34
¹⁰ ROSA, João Guimarães. Do diário em Paris III. In.: Ave Palavra. p. 1132.
¹¹ MARX, K. Propriedade Privada e Comunismo. In. Manuscritos Econômico-Filosóficos. p. 114. [Grifo meu]
¹² Idem. Trabalho estranhado e propriedade privada. In.: Manuscritos Econômico-Filosóficos. p. 86. [No texto em língua portuguesa, traduzido por Jesus Ranieri, não se encontra o termo alienação. A solução tradutória de Ranieri para o alemão Entfremdung é “estranhamento”. Estranhamento quer dizer, no contexto, o homem estrangeiro do homem, i.e., o homem que se torna um estranho tanto para si mesmo quanto para os outros pela supressão do trabalho. Mantive o termo alienação tanto por ser a tradução corrente quanto, em vista disso, por facilitar a compreensão do texto.]
¹³ MARX, K. Crítica da Dialética e da Filosofia Hegelianas em Geral. In.: Manuscritos Econômico-Filosóficos. p. 124.
¹⁴ Idem. Ibidem. p. 123
¹⁵ MARX, K. Trabalho Alienado e Propriedade Privada. In.: Manuscritos Econômico-Filosóficos. p. 83.
¹⁶ MARX, K. A Relação da Propriedade Privada. In.: Manuscritos Econômico-Filosóficos. p. 96
¹⁷ Idem. Propriedade Privada e Comunismo. In.: Ibidem. p. 110.
¹⁸ Idem. Trabalho Alienado e Propriedade Privada. In.: Op. Cit. p. 84.
¹⁹ Idem. Op. Cit. p. 83.
²⁰ MARX, K. Trabalho Alienado e Propriedade Privada. In.: Op. Cit. p. 87.
²¹ Idem. A Relação da Propriedade Privada. In.: Op. Cit. p. 93.
²² Idem. Ibidem. p. 94.
²³ MARX, K. Propriedade Privada e Comunismo. In.: Op. Cit. p. 114.
²⁴ Idem. Ibidem. p. 114.
²⁵ WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. (2.171) & (2.172). p. 60.
²⁶ CAMPOS, H. o anjo esquerdo da história. In.: Crisantempo: no espaço curvo nasce um. pp. 71-72.
²⁷ MARX, K. Propriedade Privada e Comunismo. In.: Op. Cit. p. 112.
²⁸ Idem. Op. Cit. p. 110.
²⁹ LISPECTOR, Clarice; SABINO, Fernando. Cartas perto do coração. p. 169.
³⁰ ROSA, João Guimarães. Diálogo com Guimarães Rosa. In.: Ficção Completa, volume I. p. 48.
³¹Idem. Grande Sertão: Veredas. p. 494.