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breves e mal-desenvolvidas ponderações sobre a questão da maiúscula

janeiro, 2020

escrevo esse texto pensando junto com thadeu e com a polly, e muito por conta do bizarro e triste episódio do ministro da cultura nazista. o thadeu escreveu “cuidado com quem escreve Arte com maiúscula” e a polly colocou um negócio em como tudo nesse governo nazista à brasileira é uma performance de quinta, um simulacro de estratégias artísticas (tradução livre), fala uma coisa do cafona e popular e arremata lembrando da coitada da maiúscula “ O político ruim é o novo Artista com A maiúsculo”.

I

primeiro, precisamos falar da escrita. signos abstratos que designam coisas, sons, sensações, etc. a escrita não tem uma relação necessária com a fala, o som sentido. aliás, arriscaria dizer que (ainda) são coisas muito diferentes. isto é, mesmo com a relativamente recente popularização da escrita, a diferença entre som e signo persiste – talvez não seja nenhum absurdo dizer que tanto o som prescinde do signo, quanto o contrário também é verdadeiro. ou seja, a relação entre som e símbolo não é necessária. é uma criação, quer dizer, é disso que tô tentando falar: de criação.

II

quando deus cria o homem (desculpa por isso, mas na bíblia tá assim… acho que vocês entendem) pede a ele que nomeie todo os seres da terra (inclusive os translúcidos). qual não é a surpresa quando o homem percebe que não consegue nomear a si mesmo. é o sertão de rosa: “nome não dá, nome recebe”. esse nome, não é signo – é som, palavra. e todo som tem um sentido pra nós, macacos de roupa. a função do poeta: augusto dos anjos recebia, sabia de cor antes de tudo. depois, punha no papel. li isso em algum lugar. joão cabral, o contrário, sem ouvido pro verso redondo. quase como que tentando impedir o som de ser som – uma pedra no meio do caminho. contrário não-contrários, poetas: são muitas maneiras. bom, sem me perder muito. o que quero ressaltar é: o que dá nome, primeiramente, é o som.  “que triste não saber florir”. é que joão cabral era um chato, vocês sabem. ele não gostava de música… augusto dos anjos morreu cedo, joão cabral morreu velho – tem a ver? eu que sei… voltando: primeiro era o verbo mas o verbo era o som, palavra – o primeiro sinal de vida humana no choro do bebê. contato.

III

a letra maiúscula sempre me pareceu muito imponente, mas não é culpa dela. talvez o uso abusivo das minúsculas, pelo menos em matéria de poesia, tenha se consolidado apenas ao longo do último século – e muito por conta de possibilidades (técnicas, tecnológicas) de editar publicações. claro que as vanguardas e tal. ao ponto pra não parecer que enlouqueci: a maiúscula veio pra resolver um problema do signo, e não do som. o som é o verbo e o verbo é ação, o infinitivo – de onde derivam todos os tempos, de onde se conjuga a história. acho que o nomear do verbo infinitivo é a dinâmica que possibilita os desdobramentos múltiplos do tempo. enfim, a maiúscula nada tem a ver com um problema de som (que é a questão primordial da poesia, na minha sincera opinião). digo isso porque nós, sociedade escrita, dificilmente distiguimos, na experiência poética, o som do signo – ou ainda mais: praticamente só partimos da escrita nas criações poéticas. mesmo no país dos repentistas e compositores populares, a poesia enquanto disciplina (e o golpe final da disciplinarização da poesia foram as vanguardas) ainda é muito apegada à escrita. mesmo com as recentes (e muitas vezes incríveis) manifestações que têm aparecido com certa força nos pequenos circulos da poesia do sudeste (quer dizer, o que vejo mais e conheço, né, e destaco aqui a subcena). tô falando de criação, como já disse, mas redigo. quer dizer, do ponto de vista do processo de criação artística. e agora tava me referindo a um tipo particular de poesia… tudo é importante desimportante.

IV

sem romantismos, ismos, mas também tem a séria questão de um abandono da caneta e do papel em detrimento do teclado e da tela. longe de mim… pra editar textos longos é muito melhor, mais rápido eficiente coisa e tal. mas em matéria de poesia, não sei. tenho certas dúvidas: não pelo resultado final, a obra, o poema – mas pela relação que se estabelece com a dinâmica de criação. lápis e caneta já são afastamentos desnecessários, muito desenho. tudo é ouvido, você sabe. é por isso que joão cabral “dizem que eu tenho ouvido ruim, compreende?, de modo que o som do decassílabo não ficou de jeito nenhum no meu ouvido.” ou algo parecido. pra você ver, até pro joão cabral, primeiro o som. voltando: quase tudo é ouvido, escuta: des/atenção. se lápis e caneta já são um afastamento, imagina teclado e tela de plasma… a escrita é mais tardia historicamente que a fala, mas também representa um salto histórico. se bom, se ruim… hoje, nas sociedades alfabetizadas, se tornou uma coisa quase natural, naturalizada. quando é uma técnica adquirida, tecnologia. um comentário aleatório: gilvan sempre repete: é dom casmurro que torna machado escritor. ou algo assim… não existe esse escritor anterior à escrita. é no escrever, e escrevendo, que nos tornamos escritos. como diz a márcia: não apenas nós nos tranformamos na transformação, a transformação também se transforma. o menino baldo atravessando rio com medo e voltando com coragem, tanto ele quanto a travessia se transformam – como bem lembra a pri.

V

o problema da maiúscula: como podemos supor, a maiúscula só surge da escrita. mas não qualquer escrita, uma alfabetizada, menos visual e ideogramática, mais linear, sujeito objeto, esquerda pra direita etc. com a invenção de uma das maravilhas humanas chamada livro, as minúsculas vieram e as maiúsculas deixaram de ser toda a escrita. a relação maiúscula-minúscula foi um recurso para otimizar a leitura, provavelmente criada pelas mãos de sábios e antigos editores. quer dizer, assim a maiúscula se torna o símbolo de um ritmo. digo: o símbolo de uma unidade rítmica. será? na falta de palavra melhor… uma das funções da maiúscula é indicar o momento em que uma frase começa. inclusive essa é uma das minhas dificuldades em usá-la. o ponto e a letra maiúscula juntos são coisas muito redundantes, e também isso parece quase sempre minar o ritmo. aquela figura clássica do carnaval: o chato do tamborim – que chega do lado da corda, tira o tamborim sabe-se lá deus de onde e toca todo descompassado… tudo bem, é carnaval. voltando. é na diferenciação entre maiúsculas e minúsculas que a primeira se impõe sobre a outra. quando só tinha maiúsculas só tinha maiúsculas, compreende? – aquele vício do joão cabral. em suma, é quando os sábios e antigos editores decidem fazer livros que essa questão da maiúscula (em relação com a minúscula) aparece –  muito provavelmente (é um texto de riscos) por conta de uma questão prática, de edição. agora, a letra maiúscula não só começa uma frase: ela está também nos nomes próprios. isto é, nomes que conquistaram uma identidade. quer dizer, acho que essa imposição visual da maiúscula acabou por fazer com que ela iniciasse os nomes que  merecem respeito, lembrança etc. efemérides, nomes de pessoas, lugares, deuses, etc. aqui chegamos numa encruzilhada. voltando à questão da polly e do thadeu: Arte e Artista, com maiúsculas. e essa questão: do nome próprio. dos nazismos e políticos crueis performando simulacros de “estratégias artísticas”. da Arte como diferente de arte, artes. quer dizer, como se Arte impusesse um modo, modelo único. como se dissesse respeito a uma arte superior, melhor e maior (que no caso estaria ligada à tradição ocidental, europeia etc.) se é que entendi bem… e arte, artes – que são mais plurais e acolhedoras, acontecem num respeito maior aos diversos processos de criação sensível. bom, separar o singular do plural tanto assim é complicado… e outra: a palavra escrita é também poesia, poema, mas a poesia é maior do que a palavra escrita. e a última: a maiúscula é uma questão bem ocidental, europeia. portanto, tudo bem…

VI

tanto hitler quanto o ministro nazista brasileiro são ou foram artistas – talvez poderíamos dizer, artistas frustrados. hitler, pintor, e o outro, ator e diretor de teatro. até aí, foda-se. a quantidade de artistas frustrados que conheço não tá no gibi. mas a forma perversa como isso aparece na personalidade desses aí… vou falar só do ministro nazista brasileiro, não mais do hitler, porque né… aquele vídeo bizarro e farsante é uma peça de teatro,  uma última montagem de um diretor frustrado: imagina, ele ia ser divulgado nacionalmente. estava ansioso por isso… precisava mostrar serviço. aquele troço poderia caber perfeitamente na montagem do rei da vela que vi uns anos atrás. talvez seja o que a polly chamou atenção: esse modo meio canhestro, cruel, falso, de uma performatividade torpe: o olhar maligno, a cara de malvado, o ambiente e o discurso a la goebbels. o pior dos palhaços é aquele que não sabe que é um… só uma pausa pra dizer o seguinte: discordo da polly no uso das palavras cafona e popular – mesmo que ela as tenha utilizado dentro de um significado mais específico, de uma política populista (tradição de certa direita brasileira). cafona e popular é, pelo contrário, a consagração de todo/a grande artista tupiniquim. acho. quer dizer, quase. mas é um pouco por aí… compreendo o sentido mas os termos não sei se são os melhores… fim da pausa.

VII

uma pergunta: dentro dessa ideia de arte, artes, onde estaria a Arte? metodologicamente, uma pergunta de controle. se arte, artes exclui Arte tanto como o contrário, qual a diferença? talvez resida no fato do poder político, historicamente, ter se distribuído desigualmente, e a compreensão de arte, artes ser mais acolhedora e abrangente do que o sentido histórico unívoco dado à Arte. aquele meme “não confunda a violência do opressor com a reação do oprimido” ou coisa assim. tudo bem. mas escutando mais atentamente, percebendo mais de perto, o que há? essa é uma falsa questão? carneirin fala “o singular é a concentração do plural”.  por quê o que aniquila não é arte? respondo depois. primeiro acho melhor voltar à questão do artista frustrado, muito séria e devastadora para a história humana. acho que não podemos nos diferenciar tanto… digo, tô falando de criação. da dedicação amorosa às musas, às forças da vida. a galera entende querendo não entender também. acho que o ministro nazista pouco tem a ver com arte e muito com frustração… e, sob esse perigo, confundimos Arte, arte, artes com uma propaganda mal-encenada, tosca e que, pior de tudo, aspira ao medo. o que isso tem a ver com arte? bom, qual a diferença entre um artista frustrado e uma artista, por assim dizer, realizada? é difícil dizer… talvez essa realização seja um exercício da criatividade no impulso do limite… acho que a frustração faz parte da criação, a impossibilidade de comunicar exatamente o sentido. digo, exatamente mesmo. o salto poético toca isso talvez, mas é tão breve… enfim: acho que toda pessoa que se dedica amorosamente à vida é artista. porque ser artista é a condição humana primordial, quando realizadas na abertura ao imponderável: as faculdades sensíveis, técnicas, espirituais concretizadas em possibilidades de vida, de força. de permanência e insistência da espécie… mas é aquele negócio do guilherme vaz: todos os seres possuem suas formas de arte (inclusive os translúcidos).

VIII

a arte e o artista têm sido entendidos, cada vez mais, em termos de projeto e pesquisa, quase como uma disciplina científica.  as instâncias legitimadoras possuem uma maneira de apreender e compreender a arte… bom, as coisas estão mudando um pouco, claro. o que quero dizer é: o trabalho consciente sobre um objeto a partir de uma pesquisa regular é o que muitas vezes atesta a sua qualidade. temos no valor trabalho a chave para compreender a arte. a espontaneidade e a simplicidade com que muitas vezes a criatividade aparece se perde num desnecessário oceano de sal das justificativas… é só perceber o funcionamento concreto de qualquer edital que financie as diversas manifestações artísticas (quando eles existiam…). a justificativa é um dos quesitos mais importantes e muitas vezes é preenchido com mirabolantes e enigmáticos conceitos que não dizem respeito a uma acolhimento e entrega sincera à criatividade, mas a uma frágil construção que, em grande medida, não faz sentido nenhum… isso daí é “derramar uma flor que traz escondida”.

IX

acho que estamos confusos. arte não aniquila, o que aniquila é a publicidade, é a propaganda. quer dizer, dedicar sua vida a enganar as pessoas. o diabo… shh! Arte é aquela que acolhe todas as possibilidades, passadas presentes e futuras, de arte artes. sempre na conquista de um caminho próprio… “a colheita é comum, mas o capinar é sozinho…” mas também “um galo sozinho não tece a manhã”. enfim… essa conquista da identidade, realização histórica, talvez seja um dos caminhos do que chamamos arte… são tantos. e todos podem ser Arte, por quê não? às vezes é pra ler melhor… só isso. o ministro nazista é publicidade, o demo, a arrogância e prepotência calcadas em frustrações e inseguranças causam esses delírios totalitários… existem pessoas que dedicam a vida a serem vermes, não me pergunte o motivo… e o quê isso tem a ver com arte? sinceramente…  só se for como exemplo do que não é. tô falando de criação… lembrando sempre. por outro lado, entendo que eles também são humanos, compreende?, como nós. acho que isso é cristo falando… o problema é: como nós deixamos esse bonde bizarro chegar em um nível tão extremo de poder na nossa comunidade? sinto uma apatia de nossa parte, e é muito doido que os burros canalhas tenham chegado nesse nível de poder e nós, os “inteligentes” etc, não tenhamos conseguido eleger um prefeito… Arte é artes, propaganda é o diabo e vamos deixar a maiúscula em paz, coitada! 

Anexo I

Tentando responder à pergunta

A arte é o acolhimento da perda como perda e, por isso, diz da possibilidade do novo. Abandonar o já feito, o já constituído, não é um processo de descaso, mas a consequência da volta no círculo, da integração de mais uma etapa. O que nos adoece não é arte porque não nos impele à vida, e por isso não devemos encarar como tal. O que aniquila é a publicidade – como o midas da história. O que chamamos hoje (porque do amanhã só deus sabe) de arte ruim é  apenas condição de possibilidade da arte boa, não porque é parâmetro (afinal, qualquer parâmetro em arte é aleatório), mas porque todas as contribuições fazem parte do mesmo processo. O que quero dizer é que todas as formas criativas provêm de um diferente mesmo lugar, entendido como uma força em constante transformação, que nos impele à vida. Italo me disse uma vez “quando escrevo um poema, sinto que posso viver, sinto que a vida me permite tudo”.  O nome disso é esperança. É isso que a arte nos dá. Escrever ou ler, pintar ou ver, tocar ou escutar, plantar ou colher, perfazem momentos do mesmo movimento, que se constituem e que não podem ser reduzidos a uma relação mecânica e repetidora. Toda obra boa é aquela que provoca movimento. Essa provocação acontece não porque a obra é estética simplesmente, mas porque ela nos faz acessar o processo de criatividade da nossa própria existência e, nessa experiência, compreender que essa força também nos atravessa – que nós também somos artistas. A obra é obra ela mesma, sem precisar de ninguém nem nada. Do ponto de vista sua feitura, a obra é o resultado de um processo e, por isso, é a última etapa. Mas é só depois dessa última etapa que o artista se torna artista. Por outro lado, a obra é, também, ela própria, novo começo. Por isso não faz sentido tentar estabelecer como parâmetro artístico o tempo ou o esforço empreendido na sua feitura, como se mais tempo significasse mais qualidade ou mais força artística. Apesar da paciência ser determinante. Acho que quanto mais própria, no sentido de quanto mais essa força aparece concentrada, menos ela é sua– no sentido de te pertencer em qualquer nível.  Toda artista precisa acolher esse abandono como desafio de resposta à vida, isto é, como compromisso com a verdade constante da mudança. Escutar, perceber, confiar. Toda criação é uma cura, e toda cura não é apenas cura de si, mas cura de toda a vida. O niilismo sempre aparece como opção viável, como estética possível, mas a arte é mais corajosa que isso… Todas as vidas de todas as eras são artistas em potencial, mas “carece de ter coragem”, como bem disse uma vez Diadorim ao menino Baldo. Travessia.

 

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