Há duas maneiras de abordar o fenômeno literário. O critério histórico, que se poderia chamar diacrônico, e o critério estético-criativo, que se poderia denominar sincrônico, a partir de uma livre manipulação da famosa dicotomia saussuriana, retomada mais recentemente pela crítica estruturalista.
A poética diacrônica procura reconhecer, ao longo de um dado período cujas características são extraídas da história – o Classicismo ou o Romantismo, por exemplo -, as várias manifestações não necessariamente coincidentes do mesmo fenômeno, estabelecendo-lhes as concordâncias e discordâncias, sem a preocupação de hierarquizá-las de um ponto de vista estético atual. A sede do historiador literário diacrônico é, portanto, quanto possível, esteticamente neutra: interessa-lhe a congérie dos fatos, seus desdobramentos, sua sucessão no eixo do tempo. No processo fatual que é a evolução literária assim vista, um evento sociológico ou de significação meramente documentária pode assumir maior importância que uma ocorrência caracterizadamente estética. Tome-se, por exemplo, entre nós, o caso de Alvarenga Peixoto. Mesmo após a magnífica edição de suas poesias feita por Rodrigues Lapa (1960), há ainda quem insista em ver no amigo de Cláudio e Gonzaga sobretudo o cantor protonativista do mediocríssimo Canto Genetlíaco, ou o encomiasta das também medíocres odes a D. Maria e ao Marquês de Pombal (nesta, salvam-se ainda alguns versos). Com a descoberta, porém, pelo notável estudioso português de 5 sonetos inéditos de Alvarenga, salta aos olhos que o peso da obra reduzida desse Inconfidente está, justamente, na sua produção de sonetista, onde relampeiam laivos barroquistas na ousadia das metáforas (“Márcia corre a cortina das estrelas”; “E a mão da Noite embrulha os horizontes”), e onde se podem detectar admiráveis soluções logopaicas (de giro sintático e movimento de palavras), como: “As meninas dos olhos delicadas, / Verde, preto ou azul não brilha nelas; / Mas o autor soberano das estrelas / Nenhumas fez a elas comparadas”. Yeats, sem dúvida, tinha em mira essa atitude esteticamente desinteressada, senão muitas vezes francamente reacionário, do historiador diacrônico, quando afirmava a respeito de certos críticos: “They don’t like poetry; they like something else, but they like to think they like poetry“.
Não se sentindo solicitado por um sistema de valores estéticos que se haveria de por, necessariamente, no eixo do que lhe é coetâneo (sincrônico); não se aventurando a intervenções assim motivadas sobre a ordem dos fatos que identifica ao correr do eixo de sucessão (histórico), o crítico diacrônico aceita a “média” evolutiva da tradição, o gráfico já historicizado que esta lhe subministra quanto à posição relativa seus planetários de papel impresso se rejam por estrelas fixas, e os veredictos literários, uma vez emitidos pelo primeiro historiador de tomo (o caso de Sílvio Romero entre nós), passem tão mansamente em julgado.
Não há dúvida, porém, de que a tarefa da poética diacrônica é importante, como trabalho de levantamento e demarcação do terreno, e, ao enfatizar-lhe os defeitos e limites, meu desejo é chamar a atenção para outro tipo de poética – a poética sincrônica -, muitíssimo menos praticada, mas cuja função tem um caráter eminentemente crítico e retificador sobre as coisas julgadas da poética histórica. Para o crítico de visada sincrônica não interessa o horizonte abarcante e esteticamente indiferente da visão diacrônica. Roman Jakobson fornece os subsídios para a elaboração desse conceito, quando escreve: “A descrição sincrônica considera não apenas a produção literária de um período dado, mas também aquela parte da tradição literária que, para o período em questão, permaneceu viva ou foi revivida. Assim, por exemplo, Shakespeare, de um lado, e Donne, Marvell, Keats e Emily Dickinson, de outro, constituem presenças vivas no atual mundo poético da língua inglesa, ao passo que as obras de James Thomson e Longfellow não pertencem, no momento, ao número dos valores artísticos viáveis. A escolha de clássicos e sua reinterpretação à luz de uma nova tendência é um dos problemas essenciais dos estudos literários sincrônicos”.
O exemplo mais característico que conheço do exercício de uma poética sincrônica é o livro ABC of Reading (1934), de Ezra Pound. Trata-se de um guia para a leitura criativa (seguido de antologia comentada) da poesia de expressão inglesa, considerada. do ponto de vista da renovação de formas. Lê-se no seu preâmbulo: “O duro tratamento dado aqui a um grande número de autores meritórios não é sem propósito, mas nasce da crença firme de que a única maneira de manter em circulação o melhor do que se escreveu, ou de ‘popularizar a melhor poesia’, é através de uma drástica separação do melhor face a uma grande massa de obras que foram longo tempo consideradas de valor, que pesam dominadoramente sobre todos os currículos, e que são responsáveis pela ideia perniciosa de que um bom livro deve, necessariamente, ser um livro chato” Esta atitude sincrônica da mente poundiana reponta de um livro ainda anterior, The Spirit of Romance (1910): “Todas as idades são contemporâneas. (. . .) O futuro começa a se agitar no espírito de alguns poucos. Isto é especialmente verdadeiro no caso da literatura, onde o tempo real independe do aparente, e onde muitos mortos são contemporâneos de nossos netos, enquanto que muitos de nossos contemporâneos parece que já se reuniram no seio de Abraão ou nalgum receptáculo mais adequado. (…) Necessitamos de uma ciência da literatura que pese Teócrito e Yeats numa mesma balança, e que julgue os mortos enfadonhos tão inexoravelmente como os enfadonhos escritores de hoje, e que, com equidade, louve a beleza sem referência a almanaques”. Uma das coisas que mais preocuparam Marx nas suas esparsas e nada dogmáticas reflexões estéticas foi, justamente, o problema da perduração da obra de arte para além das condições históricas que a geraram (caso da arte grega, por exemplo). Pois bem, este é no fundo um capítulo fundamental da poética sincrônica, para a qual Homero é coevo de Pound, Propércio fala pela voz de Laforgue, os andaluzes Gôngora e Garcia Lorca dão-se as mãos, Sá de Miranda conversa com Fernando Pessoa, Novalis e Höelderlin confraternizam com Rilke, Maiakovski tira Puchkin de seu pedestal e dialoga com ele: