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Persistência da Retina

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Publicado originalmente em "Por um cinema sem limite", Azougue Editorial, pgs 67-72.

Rogério Sganzerla

Portanto – e isso precisa ficar bem claro – a preocupação do cineasta moderno não é oferecer mensagens mas revelar alguma coisa. Não se trata de impor, através de truques, o que ele já tinha na cabeça mas de tentar descobrir o mundo com a câmera, revelá-lo durante o ato de filmagem. Flagrar as coisas como elas são. Os verdadeiros cineastas, dos quais depende o futuro do cinema, não tem visões. Não elaboram ou expressam seus mundos exclusivos. Arriscam-se a ver as coisas como elas são, de frente: olham, captam, filmam coisas em contínua evolução e na terceira pessoa do presente do indicativo – correndo risco. E pensam diretamente em ângulos, panorâmica, plano-sequências. Esta é também a política de Griffith, Stroheim, Hawks, Lang, Walsh, Welles, Losey, Allan Dawn, Murnau, Mizoguchi, Tomu Uchida, Godard. Para eles, como para um cinegrafista de atualidade, a revelação pode surgir de um minuto para o outro, pois a verdade não tem hora. Importante é o sentido de risco e sua imanência.

Para alguns realizadores a verdade do cinema nasce com o ator – com sua presença diante da câmera: seja a ilusão do espetáculo (Lang), a inteira verdade do ator (Godard), o mistério do ator (Losey). Ator é matéria cinematográfica, mas isso não se trata, veja-se bem, de uma volta ao intimismo estrelista ou ao macaquismo de auditório do passado. Há os que buscam o momento especial, o instante privilegiado da liberdade ou ascese através da câmera (como Welles em “Cidadão Kane”) ou da literatura (conforme Fellini) ou do personagem – típico do cinema romanesco de Antonioni (toda sua mise-em-scène dirige-se à revelação da fragilidade dos sentimentos), Bergman (a engrenagem de “Noites de Circo” conduz à humilhação total do empresário), Visconti (“O leopardo” também é uma pomposa e eloquente cerimônia que materializa a consciência de um nobre, com seus desejos impossíveis e a antevisão da decadência).

Novamente o homem e sua câmera deve se portar como um sentinela alerta a 24 fotogramas por segundo, atenta 24 horas por dia, sem separar a realidade e a imaginação, o mundo e a arte, a vida e o cinema. O cinema é uma arte anacrônica, daí sua modernidade.

O filme é feito da ação de uma emulsão, objetiva e obturador para captar (registrar e reviver) ao decompor – e falsear o movimento com o tempo falseando – partindo da ilusão como princípio principal (ponto de partida e de chegada, avançados); porque se baseia no princípio físico da persistência da retina, que é a impressão de realidade ou ilusão de movimento que o olho sofre em “movimento” de registros inanimados de seres objetos, aparentemente “móveis”, mentida erigida como ciência (a reprodução do movimento é a própria “mentira”) e a arte – que como o pensamento é e conduz ao mistério; ou ao supremo. Cinema “arte da ilusão” baseia-se no falso. Devido à ilusão mesma da visão humana, nasceu a câmera e antecessores do cinema, arte temporal pois a matéria-prima da câmera é o tempo, e no cinema a duração. Baseia-se no falso, nada mais – como a vida mesma – na ilusão, matéria, nada mais.

Nesse universo em representação, a arte ocorre a seu duplo e o autor em busca do “outro”. O que é o duplo e o outro?

Não existe duração contínua, estável e linear como se oferece a tela; o movimento não é apreendido, mas decomposto: a câmera de filmagem é semelhante a uma câmera de fotografar, nada mais é do que uma câmera fotográfica em movimento constante. As imagens separadas são projetadas como (se fosse) uma coisa só graças a um mecanismo de relojoaria. O instante não é captado mas secionado, dividido, falseado, pois o princípio ocular da persistência da retina – como o pensamento – tende a associar movimentos separados no tempo, confundindo ilusoriamente por uma “ilusão da mente”. Da associação (projeção, relação) à ilusão há um passo. Aparência ilusória.

Mais do que ninguém, em Godard todos são livres: autor, ator(es) e espectador(es). Valorizando a aparência das coisas, rompe com a convenção e a tradição do artista que procura a essência do mundo através de recursos espúrios de associação; simplesmente não trai nem submete as aparências a apriorismos estatizantes, obrigando-as (através de símbolos e acúmulos literários) a dizer aquilo que não podem dizer. Um objeto não diz isto nem aquilo; diz-se a si próprio; ele é. Em 1951 Jean-Luc Godard observava que o “verdadeiro cinema consiste somente em colocar coisas diante da câmera”. Adotando a política do cinema mudo, os realizadores contemporâneos recusam a comparação daquilo que as coisas são com aquilo que deveriam ser. Henry Agel: “Uma imagem é uma imagem. Uma descrição visual permanece sendo uma descrição… A imagem esconde uma opacidade, que impede o espectador de ir mais adiante do que vê.”

Assim, nesse cinema, desde que o mundo é mundo, “uma mentira é uma mentira” (Mizoguchi), “um policial é um policial” (Fuller), “uma árvore é uma árvore” (King Vidor), “um prato é um prato, uma mensagem é uma mensagem, os homens são os homens e a vida… é a vida” (Godard), o mundo é o mundo e o cinema é… cinema. Que tende ao cinema-verdade, à documentação progressivamente mais bruta e mais sóbria da realidade.

As aparências são o material fundamental; sabemos que elas são enganosas; daí o drama de “Agora ou nunca” (de Michel Deville), “Pierrot le fou” à “Dama de Shangai”, onde seres enganam-se, erram, mentem e finalmente sofrem – porque vivem sua vida à base de ilusões – isto é, ainda não imersos e/ou submersos no princípio uno, e para onde vai esse cinema, valendo-se de uma técnica de respeito e/ou desrespeito pela duração física do real – seja o plano-sequência, o som direto e a profundidade de campo.

Filmes desenvolvendo-se em eterno presente que é o tempo da consciência (do espetáculo cinematográfico). Por isso, nada nos emociona; o tratamento, a duração e a pontuação constantemente lembra-nos que tudo não passa de um filme. A “mensagem” é essa: situar o espectador, consequentemente o ator e o autor, no seu lugar, consciente de sua condição.

Além de filosofar sobre arte, público e liberdade, Godard e o cinema moderno faz filosofia assim em torno de seu método – a câmera cínica.

Seres do cinema moderno agem, sofrem, vivem teatralmente. Num certo momento de “Uma mulher é uma mulher”, de Godard, se diz que “nas comédias, como nas tragédias, no fim do terceiro ato a heroína hesita”, e a heroína… hesita. O ator-personagem de Godard tenta não se transformar em objeto, é um ser livre que precisa improvisar uma moral ou uma política para preservar sua liberdade. Pode ser cinismo, imitação ou referência filmológica (nostalgia pelo silencioso reflete-se na conversa do filósofo de “Viver a vida”: “Falar é inútil, seria agradável vivermos sem falar” – Ça serait beau: Seulement, c’est pas possible). É uma solução provisória e instantânea, do momento presente. Nota-se que o distanciamento não é só problema do autor mas dos personagens, que afirmam sua liberdade através do universo de representação teatral, exprimindo a consciência do trabalho, de que estão participando de um filme e nada mais: eis um distanciamento dentro do distanciamento.

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