Hoje tudo é político. A cada passo nós nos deparamos com político. De sentina do direito o poder se foi totalizando, totalizando e se tornou providência universal. Tudo é poder. O poder é tudo. Todo problema é uma questão política e de política. Todas as áreas de atividade são absorvidas pelo sorvedouro do poder. Já não existe espaço exterior, nem infra- nem suprapolítico.
No nível biológico, as áreas de vida e sobrevivência passaram a integrar o espaço do poder. Nascimento e morte, fome e saúde, mortalidade e natalidade, o bem e o mal-estar constituem campos das atividades biopolíticas. No nível econômico, as áreas da produção e suas ordens compõem a infra-estrutura. Modos, relações, fatores e sistemas de produção, planificações, planejamentos e instituições, os muitos mercados, as moedas, os insumos e modelos perfazem os campos das atividades econômico-políticas.
No nível social, os diversos serviços, toda a previdência, a saúde pública e os seguros, a educação, o lazer e a cultura, todas as necessidades de indivíduos e grupos compõem os campos das atividades sócio-políticas.
E a totalização da política não pára por aí. Enquanto as necessidade infrapolíticas entraram para a esfera política, os problemas do sentido e dos valores da vida, do homem e do mundo se vêem canalizados cada vez mais para desaguarem no mar totalitário da política total. Marx já o percebera na segunda metade do século dezenove, quando disse que a política é a herdeira e executora da Filosofia: “A realização da filosofia é a sua perda.”
Mas esta totalização é problemática. Para tudo se tornar uma questão de poder, a política tem de descobrir os flancos e ser questionada em sua pretensão de totalidade. Se tudo é uma questão política, a política está em crise.E qual é a crise da política total? Por toda parte se ouve e sempre de novo se repete que ninguém se deve dedicar à filosofia, sem ter pensado o lugar político e a função social da filosofia. Não há filosofia sem política é um refrão da moda, uma das muitas moedas que passam hoje de mão em mão, como um cheque ao portador.
Platão, o pensador, pensa, ao contrário. O que não pode haver é política sem filosofia. Nesta tese reside todo o sentido filosófico e todo o vigor do pensamento de uma famosa passagem, muito citada, muito comentada mas pouco pensada do livro V (E) da República. A passagem faz uma afirmação de princípio: é uma necessidade essencial da política que os filósofos tenham o poder. Rep.473d.
Como toda sentença do Pensamento, também esta passagem da República é uma provocação e o desafio de toda filosofia política. Dá muito que pensar. E de fato tem sido debatida há mais de dois mil e quinhentos anos de História Ocidental embora, na maioria das vezes, sem um mínimo de responsabilidade e compromisso com a vida do pensamento. A forma mais frequente de se entender a passagem atribui a Platão uma estupidez: a saber, que os professores e estudantes de filosofia deveriam tomar o poder e assumir a direção da política.
Nesta estupidez se incluem e se admitem, sem pensar, três suposições básicas: 1. a filosofia não passa de uma competência profissional, que se pode ensinar e aprender, como qualquer profissão; 2. pelo simples fato de ser homem, o homem ainda não é pensador; 3. para vir a sê-lo, tem de fazer um curso de filosofia, mesmo que não se empenhe em aprender a pensar. Basta declarar e sair repetindo as palavras dos grandes filósofos com as interpretações da moda e os respectivos usos ideológicos.
O que um entendimento deste nível pôde fazer por muito tempo foi apenas cócegas na preguiça para pensar de mais de vinte e cinco séculos de história. E apesar disto ainda se pode e se deve dizer que Platão é um dos poucos gênios da história do pensamento. É que mesmo um gênio não nos pode dar tudo. O mais importante temos de trazer conosco. O que quer que alguém nos possa proporcionar, uma coisa pelo menos não nos poderá dar; a saber, a possibilidade de receber, em nosso caso, a capacidade de pensar. Esta já devemos ter e trazer conosco. O dito escolástico: nemo dat quod, non habet “ninguém dá o que não tem”, refere-se apenas a coisas já constituídas, prontas e acabadas, a objetos disponíveis. Mas, no nível dos relacionamentos constituintes, i. é, das relações originárias de ser e realizar-se, ocorre precisamente o contrário: nemo dare potest, quod habet “ninguém pode dar o que tem”. E por que não? Porque quem desse o que tem, não daria e sim tiraria do outro a possibilidade de ser outro, de ser diferente, e com isso qualquer condição de receber ou recusar. Assim, para dar, alguém só pode dar realmente o que não tem. Ninguém nos pode dar nada, cuja possibilidade de receber ou recusar, já não nos tiver concedido a realização de nosso próprio ser. Também um gênio só nos pode dar o que ele mesmo não pode ter para dar mas supõe que tenhamos para receber: as condições e possibilidades de fazê-lo.
Platão é pensador e pensador dos grandes, daqueles que nascem, pensam e morrem. E, como pensador, nunca pretendeu fazer cócegas em preguiça nenhuma. O que pretendeu e quis foi presentear o Ocidente com a graça do pensamento. Por isso, para achar graça, é preciso pensar e pensar radicalmente como pensam os pensadores. Ora, para um pensamento radical, os alicerces de sustentação e os fundamentos da decisão política se concentram no viço em que nasce toda a vitalidade e se recolhe toda a força de uma Cidade. Pois é este viço originário, é esta força que, tanto Platão como Aristóteles, chamavam de Politeia e nós hoje chamamos de modelo democrático. Na democracia, a soberania está no direito e o exercício do poder está na lei. Pois a democracia não é a tirania da maioria. A democracia é o reconhecimento e a preservação dos direitos de todos numa ordem universal da lei pelo governo da maioria.
A Cidade é a integração de povo e comunidade, de nação e sociedade num Estado de direito. A proveniência da Cidade não está nem apenas na necessidade nem somente no interesse nem só na colaboração. A origem ad Cidade está na liberdade de criação da convivência que desabrocha das necessidades, dos interesses, da colaboração. É este o sentido radical da famosa passagem de Aristóteles de que “o homem, por imperativo de sua própria condição, é um ser que só se realiza em sua propriedade na e pela cidadania”, (Pol.I, cap. II, §9, 1253 a 2; I, cap. III § 3, 1253b, 11ss; III, 6, 1278b3). Toda Cidade emerge, pois, de tensões e conflitos entre a liberdade de criação e os interesses de colaboração, entre a espontaneidade das forças de convivência e a pressão das necessidades de satisfação. Para se conciliar numa ordem estável a instabilidade de todas as contradições entre direitos, interesses e necessidades, surge a lei e o Estado. O grande desafio do modelo democrático de Cidade reside na organização e no funcionamento do Estado de direito e na soberania da lei. A cidadania consiste em subordinar a lei ao direito e o Estado à lei. Três são as condições deste ordenamento:
A primeira está em definir os princípios fundamentais do direito e da lei. Na Cidade democráticas todos são cidadãos, i.é, todos estão protegidos contra toda ação arbitrária, seja de indivíduos, de grupos ou de instituições. Todo cidadão entre num jogo de regras previamente estabelecidas pela própria cidadania que lhe asseguram o uso de seus direitos e definem pela liberdade os limites de sua liberdade. A segunda condição de uma ordem democrática é o fortalecimento do Estado. Sem Estado forte não é possível nem cidadania nem democracia. Mas não se deve entender mal a fortaleza do Estado. Estado forte não é estado pesado. É o Estado capaz de proteger o direito com a lei e de assegurar o bem comum com a liberdade. Por isso o Estado só é forte se sua presença na vida da Cidade se reduzir ao desempenho e cumprimento de um mínimo de serviços: justiça e segurança, saúde pública e educação fundamental, proteção e defesa. A mão invisível da concorrência regula com mais eficácia o funcionamento da produção e do consumo, da criação e convivência do que a mão visível de um Estado sobrecarregado de funções e serviços. Para ser democrático, o Estado precisa ser forte e, para ser forte, necessita ser leve e desimpedido. A fortaleza ou fraqueza do Estado não se mede nem se avalia pela quantidade de seus deveres mas pela eficiência com que cumpre umas poucas funções básicas. Estado fraco é a ditadura que absorve todos os serviços e funções da sociedade e não se desincumbe de nenhum.
A terceira condição para uma Cidade democrática é um sistema político de funcionamento eficaz. Por que esta exigência? É uma exigência política imposta pela própria fragilidade humana, O poder político da Cidade é para ser exercido por homens falíveis. Nesta situação, somente um sistema de funcionamento eficaz poderá garantir democracia num Estado de direito pela soberania da lei. O que é um sistema eficaz? Sistema eficaz é aquele que se retoma e refaz por si mesmo sempre que uma perturbação compromete seu funcionamento. O paradigma de todo sistema eficaz é o ser vivo. Os organismos vivos se constituem de tal maneira que se vão desenvolvendo e aperfeiçoando por seus próprios dispositivos. Na vida da Cidade, a boa organização é aquela que aprende com as próprias perturbações e por isso se torna capaz de funcionar suficientemente por erros e defeitos de seus cidadãos. O modelo democrático da Cidade requer um sistema político que trabalhe a contento com homens reais e não pressuponha homens ideais. Somente um sistema defeituoso necessita de cidadãos providenciais e seres geniais. Por isso qualquer dependência do bom funcionamento de uma Cidade da qualidade de seus líderes constitui uma ameaça à realidade do modelo democrático. As planificações centralizadas e uniformizantes não só restringem a criatividade das diferenças como excluem a possibilidade do sistema se autocorrigir. Assim, quanto mais simples e leve a estrutura da Cidade, tanto mais eficiente o seu funcionamento, tanto mais espaço para as diferenciações. Os cidadãos criam na razão inversa da especialização técnica e na razão direta da complexidade da cidadania. Sem a previsibilidade dos padrões mutáveis de funcionamento, a espontaneidade do exercício dos direitos se estiola e escoa. É sintoma de falha na montagem de um sistema democrático quando os defeitos de seu funcionamento requerem políticos geniais e cidadãos ideais. As exigências de ética na política e moralidade na administração, hoje tão em moda, constituem uma demonstração cabal de que o defeito não está nos cidadãos, sempre homens falíveis, mas no sistema da Cidade. Muito antes de Niccolò Machiavelli, Aristóteles já tinha chamado a atenção para a regra mestra de toda politeia: a ética do político é a ótica da política. A ótica dos cidadãos é a ética do funcionamento da cidadania. Uma crise sistêmica da economia, por exemplo, não carece de economista genial mas de organização providencial. O desastre de um sistema democrático está em sair correndo atrás de um salvador para suprir os defeitos de seu funcionamento. Um sistema incapaz de se autocorrigir, que depende de personalidades ideais, não é um sistema democrático. É um organismo vivo sem condições imunológicas de autopreservação.
Assim, o modelo democrático de Cidade é sempre e constantemente um desafio sistêmico. O homem, o cidadão, o político são tão importantes e decisivos que o sistema tem de funcionar com eficiência. Sem a eficiência sistêmica ninguém pode assumir, lidar ou transformar numa Cidade democrática a fragilidade dos próprios limites e a falibilidade da própria liberdade.