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A Criação

2013

Publicado originalmente em Filosofia Contemporânea. Teresópolis: Daimon Editora, v. 1. 250p

The Birth of the Pearl - Edmund Dulac

No pórtico dos templos Zen, tanto na China, quanto no Japão, às vezes se acha pendurada uma tábua tosca com a inscrição: “Olha bem debaixo de teus pés!”. As presentes reflexões sobre as obras de arte a partir da criação, recomendam e entregam a este olhar debaixo dos pés!

Toda criação é uma atropelada que não tem nem data de nascimento, nem berço de origem. Pois é a própria criação que faz a data e determina a origem de criadores e obras. Se a arte de criar for um rio, a criação não é nem a margem, nem o leito, mas a correnteza, e o criador é o barco balançando na passagem das águas, que demarcam as margens e estendem o leito para o curso e percurso da história humana.

Em suas peregrinações de ser, não ser e vir a ser, o homem, em todos nós, vive, em todo momento e a cada passo de sua passagem pela vida, a identidade e a diferença entre real, realização e realidade. “O homem é uma ponte”, já pregava Zaratustra: mas ponte não se reduz à instalação. Só há ponte e só se dá ponte onde e porque acontece travessia. Não se trata, porém, de fato entre fatos, nem de coisa entre coisas, seja dada, feita ou pronta, seja deste ou de outro mundo, trata-se da estranheza constitutiva do desafio próprio da existência histórica, porque finita, dos homens. A realidade é sempre subreptícia. Sua vigência nunca é direta, seu vigor nunca é imediato. Seu impacto é sempre oblíquo. A realidade se dá nas realizações na medida em que se retrai nas peripécias do real. Assim em todo ser humano, a humanidade nem se esgota nem prescinde dos indivíduos. Tudo que se apresenta ao homem é sempre concreto, nascido e crescido de uma pluralidade. Ora dar-se enquanto se retrai, tornar-se presente na ausência, manter-se vigente na falta, eis o vigor e a força inovadora da criação em toda e qualquer obra. O modo de ser de uma criação se define, pois, pela integração de identidade e diferença no seio deste vigor. A existência histórica de toda criação é a viagem que os homens sempre fazem entre realização e realidade nos transcursos de diferenciação do real. Para realizar-se e ao realizar-se, o homem irrompe num mundo e nesta irrupção e por ela se lhe instalam níveis, se lhe impõem limites de relacionamento com tudo que é e está sendo. Em sua história, o homem realiza, de algum modo, todas as realizações.

Impulsionado pelo impacto oblíquo e arrastado pelo subtrair-se contínuo da realidade nas realizações, o constrói sua existência na tensão entre as obras de suas mãos e os recursos de ser, não ser e vir a ser. As épocas históricas são as vicissitudes deste impacto oblíquo e deste direto, i.é, dos interstícios instalados nos contatos com o real pelo impacto da realidade. Só realizações servem de arranque e oferecem alvo ao empenho de suas referências. Para criar uma obra, o homem é criado pela obra. O Grito de Eduard Munch é o grito que toda criação sempre dá para a história humana: o homem é uma realização que, diretamente, só alcança outras realizações e jamais atinge a realidade. Mas às vezes produz realizações que parecem abolir as diferenças da temporalidade. Pois dão acesso, embora indireto e velado, ao desafio da realidade. São as obras de arte. Em seu envio, encontram-se momentos, traços, combinações, tensões, movimentos de uma temporalidade não apenas povoada de realizações, mas sobretudo carregada pela realidade em retração, em contração, em proteção, em distensão.

A experiência histórica deste retirar-se se dá numa aventura e é toda um salto na luminosidade de uma escuridão estimulante de desempenhos. O instante de invenção da obra não apenas não se repete, como nunca se aprende. Todo instante se improvisa num risco e se arrisca numa improvisação. O instante de risco e improvisação se propõe nas experiências, nas tensões, nos impulsos de um traço, de um movimento, de um som, de uma presença, com todas as inseguranças, hesitações e ansiedades, mas também com toda a ousadia, aventura e o fascínio da criação de uma obra. O homem se faz, então, a grande obra de arte, por ser a única obra de todas as criações. Dele valem sempre as palavras de Zaratustra: “o grande no homem é ser ele uma travessia e não um ponto final. O amável no homem é ser ele a avalanche de uma descida e a força de uma passagem” (Werke, DTV,16).

No grande Diálogo, POLITEIA, República, Platão encontra na Cidadania a vigência essencial da POLIS, a vitalidade de toda política. Trata-se de um impulso da realidade com que Platão nos faz experimentar a finitude da condição humana, com uma formulação lapidar de três palavras apenas:

TA MEGALA PANTA EPISPHALE

Rep 497 d 9

“Tudo que é grande precipita-se numa avalanche de transformações!”

Toda criação está numa tempestade histórica. Toda grandeza acontece numa atropelada de revoluções. É que, para se criar em qualquer área ou nível, o que se dá e ocorre, ocorre e se dá como a vida: onde tudo que é grande, nasce grande, cresce grande e, ao chegar ao fim, finda grande. Somente para o pequeno, que tudo apequena, somente para o mesquinho que tudo amesquinha, o grande tem de ser eterno e durar para sempre. É o que acontece em toda criação, princípio e fim da grandeza histórica dos homens. Começa grande, continua grande e termina grande.

Na criação da pintura, por ex., a cor deixa de ser meio de expressão e a arte de pintar já não é representação de nada ou símbolo de alguma coisa. A cor é o próprio real realizado e a arte, a própria realidade em seu advento nas obras. Nas pinceladas e traços da pintura se faz presente a vigência essencial da criação. Pois a criação é sempre uma nova cultura do espírito que encontra a realidade, presenteando-se numa manifestação humana. Toda criação realça, de uma maneira ou de outra, o caráter de mistério das chegadas históricas da humanidade. É sempre a recondução à fonte das correntezas que da fonte brotaram, a criação conquista novos modos de ser real e transforma num desempenho cósmico a dinâmica de fazer-se mundo do mundo. O quadro torna-se, então, a cor em que o pincel de uma mão criadora transfigura magicamente a tinta. O pincel de tinta vem a ser destarte, o hissopo que canta Davi, como a iniciação de todo princípio: “Hás de aspergir-me com o pincel lustral e tornar-me-ei mundo; hás de lavar-me com a cor e ficarei mais puro do que a neve”!

Já se disse que a criação nos faz, a nós, seres efêmeros, experimentar que não somos nós que pensamos o mundo. É o mundo que nos pensa. Esta frase não é resposta. É provocação, e provocação de muitas perguntas. Pois, que significa pensar, quando se diz que é o mundo que nos pensa? – Numa preleção de 1956, Heidegger nos lembra ao pensamento que aquilo que mais nos faz pensar neste nosso mundo, que nos dá tanto a pensar, é que ainda não pensamos apesar de tudo que acontece. Impõe-se aqui uma outra pergunta: nas peripécias deste mundo, que nos pensa, não vai muito de uma pretensão que, ao pensar-nos, nem se dá conta de que ele mesmo, o mundo, não pensa e por isso nos impede ou dificulta, ao menos, pensar? – Quem somos nós que o mundo pensa? Será o que temos e não somos ou será o que somos e não temos em nosso poder ou ainda será tudo junto, tanto obter e não ter, quanto o ser e não ser? É possível pensar, sem se pensar também o nada de quem pensa, e o nada do que é pensado? Em que nada, em nos pensando, o mundo pensa ou deixa de pensar, quando nos pensa? – E o mundo, que é este mundo que nos pensa? Serão apenas as organizações e as potências da técnica, a força e os poderes da economia, as conquistas e novidades do progresso? Ou integrarão este mundo e suas ordens também o imundo e suas desordens? Neste último caso, quais consequências imundas arrasta consigo o pensamento do mundo que nos pensa? – Se somente o mundo nos pensasse, como seria ainda possível pensar que é o mundo que nos pensa? Para nos pensar, o mundo, que nos pensa, não dependerá das possibilidades de pensar e não pensar, de ser e não ser pensado? – Será mesmo possível dar alguma possibilidade para quem não tem nenhuma? Pois a possibilidade de receber é a única que nunca se poderá dar, para se poder dar alguma coisa?

É esta a experiência que sempre nos traz toda criação. O fluxo da libertação introduz o artista, que recebe, e o artista, que dá, na vontade de poder de toda criação, única capaz de recriar o grito primal de todo nascimento. Trata-se sempre de transformar este grito originário em novas possibilidades de realização. Santo Agostinho o formulou numa expressão famosa: quem me criou, ao criar-me, deu-me também a possibilidade de criar. Em toda criação, o homem recria o mistério da realidade, criando-se a si mesmo.

Ora qualquer criação é sempre criação da realidade nos percalços de realizações. “Criação da realidade”, este genitivo é, ao mesmo tempo, um genitivo objetivo e subjetivo, embora sujeito e objeto não sejam o cenário condizente para se fazer a experiência da criação, que sempre acontece aquém desta dicotomia e além de sua superação. Por isso é que, na criação, se desvela, de modo extraordinário, a dinâmica de ser e realizar-se da arte e suas vicissitudes. Não se trata apenas de saber fazer. Trata-se sobretudo de saber ser no fazer. A arte erige em obra um sabor originário e não apenas um gosto original, o saber originário de lidar com o real, deixando-se conduzir nas peripécias e pelas peripécias de uma criação. É um saber tão extraordinário que, nele e com ele, surgem e se instalam possibilidades inauditas, i.é, possibilidade que entregue e deixado a si mesmo o real nunca chegaria a revelar e demonstrar. Na criação, a arte entra em tensão e união recíproca com a identidade e diferença de tudo. Um elã circular de posição, oposição e composição prende as diferenças próprias de cada real. Por isso não é possível perceber o que diz e evoca nas obras a criação sem um confronto de relações entre arte e realidade nas diversas realizações.

Nenhum real se desenvolve plenamente, como real, nem chega à plenitude de seu agir e com-por-se por si mesmo num mundo, sem a vigência da criação das obras. Mas, se, por um lado, é a pintura que acolhe no mundo do homem a paisagem, como paisagem, por outro, é a tensão das diferenças entre paisagem e quadro que permite à pintura surgir em todo o esplendor de sua identidade de criação. Nesta recíproca constituição entre obra e realidade, se exerce a circularidade de toda criação. É a surpresa da realidade acontecendo no circuito de ser, não ser e vir a ser. A obra se torna, então, o encontro das forças e o núcleo das circulações deste circuito. Ser artista consiste, assim, em suportar a ascese de morar no centro das tensões entre arte e realidade na criação deste real originário que é uma obra.

Mas, se ambas se identificam por integrarem o mesmo círculo, arte e realidade se diferenciam uma da outra no próprio interior desta circularidade. As obras da realidade trazem em si mesmas o princípio de suas realizações, enquanto as obras da arte encontram o princípio de sua vida na criação. Trata-se de uma diferença instauradora de história. Pois transfigura os modos de ser e promove sua revolução permanente na dinâmica de conduzir-se e no movimento de realizar-se dos homens. Surgem, então, e se instalam novas possibilidades a partir do nada. Neste sentido, valem da criação as palavras do Fragmento 45 de Heráclito de Éfeso:

“Por mais que sigas os vestígios dos caminhos, nunca chegarás aos confins da vida, tão profundo mora nela o Logos, este poder de criação nas realizações”.

Foi, de certo, pensando na profundidade deste Logos que Aristóteles condensou numa fórmula pregnante as tensões de identidade e diferença entre arte e realidade nas criações: “a arte leva à plenitude, consuma, portanto, o que a realidade é incapaz de pôr em obra…”.

Mas como é que se cumpre este consumar da criação nas obras? Como é que a criação nos faz ver que a cor não está na pintura? É a pintura que mora na cor. O som não está na música. É a música que está no som. O espaço não está na dança. É a dança que está no espaço. A forma não está na escultura. É a escultura que vive nas formas. A cena não está no teatro. É o teatro que está na cena. E assim por diante. Como é que, na criação, acontece tal inversão de reciprocidade?

A criação cumpre este milagre de edução e condução, identificando obras com mecanismos! O perigo aqui está no risco de atermo-nos tanto aos mecanismos que nos perdemos da arte e sua criação nas obras. Para obviar tal perigo, temos de tomar os mecanismos da criação a partir da criação dos mecanismos.

Mecanismos são processos, meios, técnicas, procedimentos e instrumentos em que se cria uma obra. A vigência dos mecanismos remete para a proveniência da obra na criação e pela criação. Segundo uma convicção reinante entre nós, a obra provém da ação de mecanismos. E donde provém e retiram sua força os mecanismos? – Não será da obra? Pois é a obra que impõe determinados mecanismos e, impondo, expõe a força dos mecanismos. Temos assim uma conjuntura circular cheia de questões: dos mecanismos provém a obra e da obra provém os mecanismos. Nenhum dos dois, nem mecanismo, nem obra, origina sozinho o outro. Ao contrário, tanto os mecanismos, como as obras são, cada qual à sua maneira e na reciprocidade diferente de sua proveniência por um terceiro, pela criação e sua originariedade. De acordo com uma imagem de Wittgenstein, erigir uma obra é criar e todo criar sobe sempre a escada de um fazer. Ser criada é uma necessidade de qualquer obra. Ora, na medida em que todo criar inclui um fazer e todo fazer necessita de meios e processos, de material e instrumentos, pertencem a toda obra mecanismos e material de criação. E justamente por isso torna-se decisiva e premente a pergunta: que significa criar uma obra de arte em contraste com fazer um aparelho, produzir uma máquina, fabricar um instrumento? Instrumento, aparelho e máquina são equipamentos determinados pela idade de uma eficiência. Subordinam a seu serviço o material e os meios de que constam e são feitos. Assim na confecção de um calçado se usa e abusa do couro. O couro se consome e desaparece para dar lugar à instrumentação e à serventia do sapato. O bom sapato não aperta os pés. O material é tanto melhor quanto mais desaparecer nos serviços de sua instrumentação.

A criação na obra de arte, ao contrário, não faz desaparecer, faz aparecer, realça e eleva o material em si mesmo, na tensão entre cultura e natureza. É na escultura que a lenha vira madeira em talhão, é na pintura que a tinta se faz cor, é na sinfonia que o som se torna música, é na poesia que a língua vem à linguagem, é no balé que o movimento se faz dança. Tudo se cria na criação de uma obra. Toda obra é original por ser originária. Nos vórtices da originalidade de uma criação, os mecanismos são como as escadas, na imagem de Wittgenstein. Só se chega à obra pela escada dos mecanismos, mas nunca se alcançará uma obra se desde o primeiro degrau não se for jogando fora a escada. Uma escada só é escada se não for somente escada, mas se for deixando se ser escada na medida que tenha sido colhida pela originariedade da obra. Os mecanismos só se tornam veículos da criação de uma obra, quando a criação libertar a obra dos veículos.

Talvez, na movimentação destas poucas reflexões, possamos fazer alguma experiência das relações de identidade e diferença que compõem uma criação na originalidade de sua múltipla proveniência. Em inglês to think e to thank, em alemão danken e denken são a mesma palavra, no sentido de provirem de um mesmo étimo. Em português não, agradecer e pensar não são a mesma palavra, mas se não são a mesma palavra, dizem a mesma coisa, qual seja: reconhecer e aceitar o presente do Espírito, como espírito do presente em toda criação! É na direção deste reconhecimento que digo: muito obrigado!

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