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Encontro de Manoel de Barros com Søren Kierkegaard: angústia em questão

março, 2023

Foto: Vitor Faria

Lugar sem comportamento é o coração.

Nascido Manoel Wenceslau Leite de Barros em 1916, na cidade de Cuiabá – ou para nós simplesmente Manoel de Barros – a obra deste poeta carrega uma ambiguidade. Se, por um lado, seus poemas portam uma espécie de simplicidade, uma ausência de pretensão típica das crianças, por outro, é justamente esse caráter puro, carente de pompa e de sofisticação, que permitiram a Manoel de Barros uma profunda reformulação no estatuto da linguagem. Uma simplicidade à la Clarice Lispector, em A Hora da Estrela, conseguida por meio de muito trabalho.

Em um livro publicado em 1844, O Conceito de Angústia, o filósofo da existência Søren Kierkegaard nos diz que “o pecado surgiu na angústia, mas o pecado trouxe consigo, por sua vez, a angústia”. Se podemos atribuir a Kierkegaard a alcunha de filósofo da existência, então talvez possamos conceder a Barros o prosônimo de poeta da existência. Como poeta, na contramão do filósofo dinamarquês, Manoel de Barros nos ensina a “compreender o mundo sem conceitos”.

Se a angústia desta vida nasce e vive por obra do pecado, então Barros veio redimir a existência já desde o seu primeiro livro. Poemas concebidos sem pecado, publicado no ano de 1937, exprime um mundo expiado, livre da estreiteza na qual a angústia aloca a existência humana. O problema sensual ou sexual, questão que traz o pecado ao mundo e, em um duplo, converte o vasto mundo em pecaminoso e erótico para Kierkegaard, não precisa de “roupa alinhada” para Manoel de Barros.

Poemas concebidos sem pecado manifesta uma Sodoma que não está em pé de destruição por Deus algum. Ao contrário, é Sodoma porque transfigura aquilo que Barros chamou de Ilha Linguística. Mas essa mudança de figura que o permitiu atravessar a existência sem pecado e, logo, (des)angustiado, somente é possível porque desde seu primeiro livro Barros parece assumir o que chamou, posteriormente, de “estado de palavra”, um estado onde se pode enxergar “coisas sem feitio”. O interessante é que Kierkegaard parece insinuar que a angústia alude, propriamente, a essas tais coisas sem feitio, ou como ele mesmo as denomina, à possibilidade. Por isso:

[…] não se deve angustiar-se, certamente, pelos seres humanos, pelas coisas finitas, mas só o que atravessou a angústia da possibilidade, só este está plenamente formado para não se angustiar, não porque se esquive dos horrores da vida, mas porque esses sempre ficam fracos em comparação com os da possibilidade.

O mundo desprovido de angústia de Manoel de Barros é gracioso, mas não é gratuito. Se em sua primeira peça poética este “mundão” já nos chega remido, isso só é possível porque o bugre Barros atravessou o que Kierkegaard chamou de “angústia da possibilidade”. E aqui, talvez, resida uma alteridade, uma diferença entre palavra filosófica e palavra poética.

Manoel de Barros atravessa esta angústia aparentemente desfazendo diferença, abolindo toda e qualquer distância entre possibilidade e realidade. Poeta da existência não diz, portanto, que Barros, na condição de poeta, exprime este ou aquele aspecto que condiz com a existência. Poeta da existência almeja dizer que em sua poética a palavra se torna princípio de realidade e, se assim é, a existência deixa de ser tanto um isto quanto um aquilo, para poder vir a ser no milagre e no mistério. Por isso, tanto a poesia pertence à existência, quanto a existência depende da palavra poética para poder vir a ser de modo mais livre e, paradoxalmente, mais próprio.

E o mesmo não ocorre quando se denomina Kierkegaard, por exemplo, como filósofo da existência? Isso também não quererá dizer que a filosofia pertence à existência do mesmo modo que a existência à filosofia? Sim e não. Sim porque existência e filosofia cumprem e exercem este modo de relacionamento reciprocamente constitutivo. Não porque, no âmbito da filosofia, a existência se reduz a um conceito, como bem nos lembra o título da obra de Kierkegaard a respeito da angústia.

A tentativa do filósofo dinamarquês é a de investigar a história existencial-psíquica da angústia para, enfim, liberar o conceito de angústia como aquilo pelo que a liberdade da possibilidade mostra-se-para-si-mesma. Por isso, toda angústia é uma angústia da possibilidade, pois ela é relativa ao nada que a possibilidade é. Mas angústia, liberdade, história, possibilidade e conceito são palavras constituídas, palavras que possuem significados próprios, que possuem historicidades intrínsecas que variam com o espaço e com o tempo. A palavra poética abole a diferença entre possibilidade e realidade não por historicizar um conceito, mas antes porque ela inventa o espaço e o tempo do qual trata. E nesse sentido sequer podemos dizer: palavra. Tal como Barros prefere denominar, melhor seria falar em despalavra, onde elemento “des” nos permite entrever que a palavra palavra é, talvez, o que há de mais ambíguo na gramática. Embora possua significado próprio, dizendo de uma “unidade da língua escrita, situada entre dois espaços em branco”, a palavra palavra está presente em todas as outras palavras do mundo.

Em Uma didática da Invenção, um dos poemas que constitui o Livro das Ignorãças (2000), Barros nos diz que “desaprender oito horas por dia ensina os princípios”. A despalavra só pode vir a ser princípio de realidade porque desaprendeu todos os significados, ou seja, tudo aquilo que lhe é extrínseco. Como despalavra, deixou de ser angústia, conceito, ou história, para poder vir a ser de modo pleno e reluzente o oco, o nada que ela é. Nisso que perder o nada seja um empobrecimento, para Manoel de Barros.

Em sua poética, a palavra deixa de ser uma “unidade situada entre dois espaços em branco” para poder vir a ser o próprio branco do espaço. Como o branco da página capaz de receber todo e qualquer tipo de texto, a despalavra de Manoel de Barros é igualmente capaz de ligar-se não só a todas as formas gramaticais possíveis, mas, sobretudo, as impossíveis. E isso ocorre porque o menino do mato aprendeu que antes de virar significado, toda palavra é primeiro uma tomada de posição frente ao não ser. Por isso, a palavra palavra só adquire realmente um significado junto à palavra casa, por exemplo, ou à palavra menino, e etc. Em Canção de Ver, um dos poemas de Poemas Rupestres (2004), lemos:

Por viver muitos anos dentro do mato
moda ave
O menino pegou um olhar de pássaro –
Contraiu visão fontana.
Por forma que ele enxergava as coisas
por igual
como os pássaros enxergam.
As coisas todas inominadas.
Água não era ainda a palavra água.
Pedra não era ainda a palavra pedra.
E tal.
As palavras eram livres de gramáticas e
podiam ficar em qualquer posição.
Por forma que o menino podia inaugurar.
Podia dar às pedras costumes de flor.
Podia dar ao canto formato de sol.
E, se quisesse caber em uma abelha, era
só abrir a palavra abelha e entrar dentro
dela.

Como se fosse infância da língua.

Ser livre de gramática diz, em um primeiro momento, de liberdade sintática. Nisso que as palavras possam assumir quaisquer posições. A questão é que são essas chamadas posições as responsáveis por configurar as relações de ordem, de concordância e de subordinação nas frases. Na infância da língua, a palavra pré-palavra, ou a despalavra, pode se conectar em quaisquer tipos de combinações. O menino pode escutar a cor dos passarinhos porque “a criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som”. Todas as coisas do mundo, bem como todas as palavras da língua, assumem o estado de ainda não coisas e ainda não palavras na poética deslimitada de Manoel de Barros.

Poeta em estado de palavra, ensinado a não saber nada, capaz de inaugurar uma Oficina de Transfazer Natureza onde o delírio infantil da palavra poética inventa outra morfologia para a realidade, outra configuração na qual as palavras são vivas e não se prestam a conceitos, mas antes têm “carne aflição pentelhos – e a cor do êxtase”. Por isso, a liberdade não carece de mostrar-se-para-si-mesma no instante como angústia, como possibilidade ambígua e fugaz entre tempo e eternidade, conforme pensava Kierkegaard. Para o poeta capaz de ver coisas sem feitio, de escutar as cores, e de experimentar córregos com cheiro de estrelas, a angústia pode muito bem ser apenas um casaco rasgado e sujo que o homem anoitecido, ou lógico-filosófico, gostaria de jogar no lixo para poder amanhecer.

Mas tanto para Kierkegaard, como para Manoel de Barros, o índice elementar do tempo e da história, o instante, diz de um ver. “O que desabre o ser é ver e ver-se”, diria Barros. Entretanto, o que se vê através de seus poemas são passarinhos sentados nos ombros de arrebóis, são formigas de pedra, é todo um Dialeto-Rã capaz de configurar em imagens aquilo que a simples palavra sintática e morfologicamente ordenada jamais conseguiria exprimir. Um poeta capaz de compreender em língua-pássaro, com vocação para não saber línguas cultas e mais capaz de entender abelhas do que alemão, versado em língua portuguesa para poder errá-la, para poder fazer com que ela entre em comunicação direta com o silêncio das palavras.

Talvez possamos dizer que, para Kierkegaard, a filosofia é a ocupação da palavra pelo pensamento. Nisso resulta em que a ocupação do pensamento pelo Ser seja angústia.  Para Manoel de Barros, por outro lado, a ocupação da palavra não se faz pelo pensamento, mas pela imagem, porque “se os pensamentos tivessem voz despertariam com certeza os galos empoleirados nas cercas”, mas não tem. Para quem viveu no mato, a anatomia da realidade é manifestada por uma “agramaticalidade quase insana, que empoema o sentido das palavras” aflorando uma “linguagem de defloramentos”, um “inauguramento de falas” que permitem ao poeta transfigurar o sentido de angústia pela realização de possibilidades outrora impossíveis. Algo que Kierkegaard chega apenas a intuir quando se pergunta: “sou eu que sonho, ou é a eternidade que está sonhando comigo?”.

Se um eu ou a eternidade, o denominador comum da indagação kierkegaadiana parece ser um quem. Quem sonha? Para Manoel de Barros, este quem não é nem algum eu, nem tampouco uma eternidade que sobrepaira e inunda o mundo de possibilidade e angústia. Como expõe a inscrição de Compêndio Para Uso dos Pássaros (1961), retirada de Guimarães Rosa, o quem é relativo às próprias coisas. Mas se as coisas são eminentemente silenciosas, então é preciso “ser como as coisas que não tem boca”, e essas tais coisas são justamente aquelas para as quais a filosofia costumeiramente não têm olhos para ver, as coisas inúteis.

As coisas sem importância são, para Barros, “os bens de poesia”, pois através delas novas faces das palavras se mostram e novos lados do Ser se revelam. Em um mundo poético onde “as coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis”, mas antes desejam “ser olhadas de azul, que nem uma criança que você olha de ave”, “não é preciso ser versado em Kant pra se saber que os passarinhos da mesma plumagem voam juntos, nem é preciso ser versado em Darwin pra se saber que os carrapichos não pregam no vento”.

O mundo expiado de Barros, capaz de transver em um só relance toda a realidade, comunga com a criança a desnecessidade da palavra-função ou do conceito, i.e, da palavra que, para poder vir a ser palavra, já precisa ter encontrado previamente seu lugar no mundo. O sem lugar do homem e das coisas é justamente o que permite a circulação livre entre possibilidade e realização. Se nem homem nem coisas têm seu lugar definido na realidade, então como pensá-la? E aqui reside outra face da diferença entre filosofia e poesia. A poesia não pensa o mundo, ela o descobre inventando, ou “inventa descobrimentos”. Ela inventa o descobrimento de que um abridor, por exemplo, não serve apenas para abrir garrafas ou latas.  Destituída de sua função sintático-semântica, a despalavra atinge, para Manoel de Barros, o grau de brinquedo, onde o brincar é capaz de imaginar outro mundo possível.

Embora Kierkegaard tenha reconhecido que “uma brincadeira pode surtir o mesmo efeito da seriedade, e vice-versa”, decide-se pela seriedade pois essa seria, para ele, o elemento garantidor da certeza e da interioridade. Certeza interior, por seu turno, é aquilo que “antecipa a infinitude” e, deste modo, realiza a fé. Seriedade é, portanto, para Kierkegaard, aquilo que mantém a fé ativa, i.e., em uma constante e continuada atuação. Mas como nos lembra o poeta do pensamento, Emanuel Carneiro Leão, em um comentário sobre o filósofo dinamarquês, “toda fé é o paradoxo de uma vida sem alternativa”.

Para ser séria a “palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo”, pois somente neste grau ela é capaz de liberar a vida para a escolha. Como brinquedo, a despalavra apresenta a liberdade ao mundo não como possibilidade, mas como realização. Neste sentido, só a invenção é capaz de aumentar os limites do mundo, fazendo com que um simples abridor de garrafas possa se transformar, por exemplo, em um abridor de amanhecer. Mas engana-se quem pensa que invenção, aqui, alude à falsidade ou à mentira. A criança não brinca de brincar, i.e., para toda criança a brincadeira é o que há de real e sério, é na e pela brincadeira que todo o seu ser criança se mostra. A brincadeira é o modo de realização onde o Ser aparece como liberdade.

Embora a palavra poética seja um brinquedo e a poesia uma brincadeira, isso não equivale a dizer que ela é falsa ou mentirosa. Tampouco que ela seja um outro da seriedade, como pensava Kierkegaard. Se a palavra poética é capaz de transfazer a natureza desfazendo toda automação e funcionalidade, e se essa palavra é brinquedo, então o elemento existencial duplamente constitutivo de homem e de mundo não é nem jamais poderá ser a angústia. Este elemento é o brincar. Brincar com as palavras é o que ensina a desaprender a pensar com elas. A “Língua de brincar” é a “língua de Raiz” porque é ela que conduz o homem ao rés-do-chão de sua existência, ao nada constitutivo dele e da vida. “Se o Nada desaparecer a poesia acaba” porque junto ao nada, como nada, estão a vida, o homem, a palavra e a poesia.

Por isso o cultivo da inutilidade, da despalavra como lavra do oco, como sintonia fina com “os silêncios sem poro”, pois só assim se atinge o modo de ser não do homem, exclusivamente, mas da vida. Um abridor de amanhecer, por exemplo, não abre apenas uma nova manhã para os olhos, abre um novo horizonte para a existência. Horizonte esse onde se pode ver que a angústia existencial moderna é filha legítima não só do pecado originário, mas também da socrática aporia epistêmica, onde ambos conduzem os homens ao sem saída, a diferença intransponível entre realização e possibilidade.

Em um mundo feito de estilhaços, esgarçado sobremaneira pela atividade humana, atividade essa que re-volta a vida, i.e., que se volta contra o próprio homem que a pratica, a poesia de Manoel de Barros tem muito mais a nos dizer sobre angústia que o conceito de Kierkegaard. Ela nos ensina a tirar o casaco velho e rasgado para permanecermos nus diante da existência. Só a palavra desnuda, despida de todo o pecado herdado e de toda a ciência adquirida pode efetivamente espelhar o mundo e aumentar, pela invenção, os seus limites. Enquanto a palavra filosófica destina-se a explicar as formas, a palavra poética é aquela capaz de incorporar sabores, cheiros, tatos, sons… Onde a poesia promove a reticência dos sentidos, a filosofia requer a parada, o ponto final do e para o pensamento aporético ou angustiado. Por isso, pela filosofia pode-se pensar em muitas coisas e contemplar muitas regiões da realidade. Pode-se, por fim, aprender a pensar. Mas é pela poesia que se aprende a viver.

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