No Cachaça Cinema Clube, em sessão de retorno do tradicional cineclube carioca, foi exibido o filme Jardim Atlântico (2015) de Jura Capela, ao lado de outros três curtas-metragens excepcionais: Gafieira (1972), Agrippina é Roma Manhattan (1972) e Viola Chinesa (1975), de Gerson Tavares, Hélio Oiticica e Julio Bressane, respectivamente. Se os dois últimos curtas já são bem conhecidos do público, Gafieira é uma tentativa de resgate da obra de um cineasta perdido na cinematografia brasileira. Jardim Atlântico, por outro lado, aponta para novos nomes e direções de um cinema que dialoga e leva aos limites as suas referências.
Jardim Atlântico se destaca não só por ser o único filme contemporâneo dentre eles, mas também por colocar em questão a história do cinema brasileiro sem perder de vista questões modernas, muito atuais, no caso onde termina a realidade e onde começa a ficção. Na forma de documentário, ou mockumentário como veremos mais adiante, Jardim Atlântico parece ser um making-off das filmagens de “Jardim Atlântico”, um longa-metragem homônimo do mesmo diretor.
Acompanhamos a construção do longa, cenas por detrás das câmeras, entrevistas com personalidades conhecidas que ressaltam a importância do filme, depoimentos de atores desconhecidos que justificam seu anonimato por vir do teatro, e diversos outros índices que nos lembram da realidade do que vemos na tela. Quando tudo indica ser o caminho de um making-off, o diretor faz o movimento de introduzir o longa no próprio curta, que a partir de então pode ser visto como um trailer. A paisagem do Rio de Janeiro dá lugar a seres fantásticos, extremamente cinematográficos. Um minotauro no fundo do mar, uma mulher-peixe nadando contra o sol, bonecos gigantes do carnaval de Olinda, um luxuoso palácio de estilo normando no Brasil, enfim, uma série de elementos que evidenciam o caráter surrealista do filme.
Além da clara influência de artistas que trabalhavam acima da realidade, o filme dialoga especialmente com Terra em Transe, de Glauber Rocha. Jura Capela começa por questionar o lugar do gênio. Ele se propõe a fazer o mesmo que Terra em Transe na medida em que formula um discurso que visa abarcar todas as contradições do Brasil. Com isso, Juca se coloca no lugar de Glauber e de forma bem-sucedida faz em poucos minutos o que aquele fez em uma das mais importantes obras do cinema brasileiro. O filme deixa explícita esta ambição. Quem mais se atreveria a filmar no Parque Lage, cenário imortalizado tanto em Terra e Transe quanto no videoclipe de Snoop Doggy Dogg?
O mais impressionante é a capacidade de Jura Capela em atualizar para o Cinema o que Jorge Luis Borges afirmou na Literatura. “Desvario laborioso e empobrecedor o de compor extensos livros; o de espraiar em quinhentas páginas uma ideia cuja perfeita exposição oral cabe em poucos minutos. Melhor procedimento é simular que esses livros já existem e oferecer um resumo, um comentário”. É exatamente este o sucesso de Jardim Atlântico. Em vez de querer dar conta da realidade, o diretor se contenta com algumas imagens que representam o Brasil, algo que dificilmente seria feito caso Jura Capela tivesse de fato dirigido “Jardim Atlântico”, o longa-metragem.
Trata-se, portanto, de um verdadeiro labirinto: Um making-off que vira teaser em formato de falso documentário que no final é uma obra de ficção. Parece realidade, mas não é. Durante a sessão reinava a incerteza, muitos acreditavam que o longa-metragem, suposto referente do curta-metragem, de fato existia. É nesse limiar que reside o sucesso do filme. Mas pois bem, resta um esclarecimento sobre sua veracidade a partir do que interessa: os fatos.
Até onde consta ninguém viu o filme. O único lugar em que o longa “Jardim Atlântico” parece ter sido exibido foi na Semana dos Realizadores, o que naturalmente pode ser uma brincadeira do próprio festival. Com alto custo de produção, planos de helicóptero, imagens submarinas, longos travellings filmados com equipamentos de ponta, o filme não foi distribuído nem consta no site Omelete. Todos os atores são desconhecidos. Há figuras reais no filme, como Otto, Céu, e Tomás Improta, que apesar dos nomes, são meios de transmitir realidade ao mundo ficcional. Com depoimentos cheios de elogio tanto ao filme quanto ao diretor, a metatextualidade deve ser entendida como um mecanismo para ironizar a posição do cineasta enquanto produtor de uma obra absurdamente auto-referente.
Por fim, Jardim Oceânico tem a ousadia de levar ao extremo a tão importante discussão que envolve as imagens no cinema: o perigosíssimo limite entre ficção e realidade. Mas Jura Capela vai além ao acrescentar ainda mais um nível de complexidade a este labirinto, onde ficamos por um momento desnorteados entre a verdade e a representação. Ele acaba de lançar um livro chamado Como não fazer um filme, exatamente sobre a realização de “Jardim Atlântico”, agora em forma literária. Não há duvidas, perde-se a realidade mas ganha-se uma obra-prima no mundo da arte.