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A Voz Solitária

dezembro, 2014

Primeira parte da tradução do ensaio introdutório ao livro “The Lonely Voice, a study of the short story”, do escritor e teórico literário irlandês, Frank O’Connor, publicado originalmente em 1963. O ensaio é considerado de grande importância para a teoria literária moderna, sendo um dos primeiros estudos de maior porte sobre o conto, no qual o autor percorre as suas teses acerca da diferença entre este e o romance, além do que fundamentalmente caracteriza o gênero da narrativa curta (que, na verdade, muitas vezes nada tem de curta). Das ideias abordadas no texto, a de maior contribuição para a teoria literária é a tese sobre os “grupos submersos”, no qual O’Connor argumenta que as personagens do gênero conto, diferente do romance, são comumente pertencentes a grupos marginalizados pela sociedade, como prostitutas, idealistas incompreendidos, rebeldes, etc. – o que se pode enxergar ao ler “O Capote” de Gogol, considerado por ele, e por muitos, como a narrativa fundadora do gênero, os contos de Joyce em Dublinenses ou os da neo-zelandesa Katherine Mansfield. A tradução é inédita ao publico brasileiro.

A Voz Solitária de Frank O’Connor

“Pelos diabos, certa vez teve um homem por aqui chamado Ned Sullivan, e uma coisa esquisita aconteceu com ele tarde da noite, quando vinha de Durlas pela Valley Road.”

É assim que, mesmo no período da minha existência, contos começam. Nas suas fases iniciais, o conto, como a poesia e o teatro, era uma arte pública, embora não tivesse a mesma importância destas por causa da sua falta de formalismos técnicos. Porém, o conto, assim como o romance, é uma forma de arte moderna; quero dizer, ela representa, melhor que a poesia e o teatro, nossa própria perspectiva sobre a vida.

Nenhum romance começa com “Pelos diabos.” A técnica que o romance e o conto adquiriram é o produto de uma era científica, crítica, e nós reconhecemos o mérito do conto tanto quanto reconhecemos o mérito do romance – em termos de convicção. Por convicção eu não quero dizer apenas verossimilhança – isso já pode ser obtido em um artigo de jornal – mas uma ação ideal trabalhada em torno da verossimilhança. Como nós veremos, existem diversas maneiras de expressar verossimilhança – tantas quanto existem grandes escritores – mas não há nenhum modo de explicar a sua ausência, não há nenhuma forma de dizer: ” A partir de agora, o comportamento de nosso personagem se torna inexplicável.” Desde o seu surgimento, o conto, como o romance, abandonou os mecanismos da arte pública onde o narrador assumiu o representação de uma platéia para suas improvisações mais selvagens – “…e uma coisa esquisita aconteceu com ele tarde da noite…”. O conto nasceu, e continua a funcionar dessa forma: como uma arte individual com a intenção de satisfazer os padrões do leitor como indivíduo, solitário e crítico.

Mesmo assim, desde o início, o conto funcionou de uma maneira bem diferente do romance, e, por mais que seja difícil descrever a diferença, a descrever é a principal tarefa do crítico.

“Todos nós viemos d’”O Capote” de Gógol.” é um ditado de Turguêniev, e, por mais que se aplique primordialmente à ficção russa mais do que à européia, ele carrega uma verdade.

Lendo-o agora, fora de contexto, “O Capote” não é tão impressionante. Todas as coisas que Gógol usou no conto foram usadas frequêntemente depois dele, e por vezes ainda melhor. Mas, se nós o lermos mais uma vez, dentro de seu contexto histórico, fechando nossos olhos o máximo possível para todos os contos que submergiram dele, conseguimos entender que Turguêniev não estava exagerando.

“O Capote” é a estória de um conselheiro titular, um zé-ninguém constantemente zombado por seus colegas de trabalho. Seu capote velho está tão desfiado que até seu alfaiate bêbado se recusa a costurá-lo, dizendo que não há mais nenhum lugar para se colocar os remendos. Akáki Akákievitch, o conselheiro titular, fica aterrorizado ante a perspectiva de ter que gastar um dinheiro que ele não tem em um capote novo. Mas, depois de alguns acontecimentos favoráveis, Akáki se encontra ante a possibilidade de comprar um novo capote, e, por um período de um ou dois dias, este faz dele um novo homem, porque, na vida real, ele não é muito mais do que um capote.

Porém, Akáki é roubado, e vai até o chefe de polícia corrupto que não oferece nenhuma ajuda, fazendo pouco caso dele, e depois para um figurão, que só abusa e ameaça Akáki. Os insultos somados ao dano da perda do casaco são demais para ele, que vai para casa e acaba morrendo. O conto termina com uma descrição caprichosa do seu fantasma procurando por justiça, o que, mais uma vez, para um triste conselheiro titular, não significa muito mais que um capote novo.

Aqui o conto termina, e quando se esquece tudo que veio depois dele, como “A morte do funcionário” de Tchékhov, se percebe que anteriormente não tinha nada na história da literatura parecido com isso. O conto se utiliza da velha retórica do herói-paródia, mas a usa para criar uma nova forma que não é nem heróica, nem satírica, mas algo entre – alguma coisa que talvez finalmente transcenda os dois. Até onde eu saiba, é a primeira aparição em ficção do chamado Homem Pequeno [N.T. ‘Little Man’, no original], o que pode definir o que eu quis dizer sobre o conto melhor do que qualquer explicação que eu utilize daqui em diante. Tudo sobre Akáki Akákievitch, desde o seu nome ridículo até seu emprego absurdo, é medíocre, e, mesmo assim, esse absurdo é transfigurado por Gógol.

“Só mesmo quando a brincadeira ia além do insuportável, quando alguém lhe empurrava o braço perturbando-lhe o trabalho, é que ele falava: “Deixem-me em paz. Por que me ofendem?”. E algo estranho fazia-se ouvir em suas palavras, em sua voz. E ouvia-se algo que predispunha tanto para a compaixão que um jovem, novato no serviço, que a exemplo dos colegas ia-se permitir zombar dele, deteve-se de repente como que comovido e desde então tudo lhe pareceu mudar, assumir um novo aspecto. Algo como uma força sobrenatural o afastava dos colegas que há pouco conhecera e tomara por pessoas decentes e civilizadas. Depois, vinha-lhe à imaginação nos momentos mais alegres a imagem daquele funcionário baixinho, de fronte calva, com suas palavras penetrantes: “Deixem-me em paz. Por que me ofendem?”. Nestas palavras penetrantes outras palavras ecoavam: “Eu sou teu irmão”. O pobre rapaz levava as mãos ao rosto. E mais tarde, muitas vezes em sua vida ele estremeceria ao perceber o quanto há de desumano no ser humano, quanta grosseria feroz existe às escondidas num ambiente culto, requintado e, meu Deus!, até naquelas pessoas que a sociedade reconhece como nobres e honradas.”

Se tem que ler essa passagem cuidadosamente para perceber que se não fosse por ela muitas das estórias de Turguêniev, Maupassant, Tchékhov, Sherwood Anderson e James Joyce nunca poderiam ter sido escritas. Se alguém quisesse uma descrição alternativa deste conto, seria muito difícil encontrar uma melhor do que apenas essa meia frase: “e desde então tudo lhe pareceu mudar, assumir um novo aspecto.” E se alguém quisesse um titulo alternativo a esse conto, este seria “Eu sou teu irmão”. O que Gógol tão ousada e brilhantemente fez foi pegar seu patético conselheiro titular herói-paródia, e impor sua imagem sobre a de Cristo crucificado, para que mesmo enquanto rimos do seu absurdo, nós também estamos horrorizados por conta da semelhança entre os dois.

Agora, isso é algo que o romance não consegue fazer. Por algum motivo que eu só posso imaginar, o romance está fadado a ser um processo de identificação entre o leitor e a personagem. Não se daria para fazer um romance a partir de um conselheiro titular com o nome de Akáki Akákievitch, que apenas necessita de um capote novo, assim como não se daria para fazer um romance sobre um garoto chamado Tommy Tompkins cuja moeda desceu pelo ralo. Pelo menos uma personagem em qualquer romance tem que representar o leitor sobre algum aspecto que ele considera sobre si mesmo – como o Garoto Selvagem, o Rebelde, o Sonhador, o Idealista Incompreendido – e esse processo de identificação invariavelmente conduz para algum conceito de normalidade e para um relacionamento – hostil ou amigável – com a sociedade como um todo. Pessoas são anormais na medida em que elas frustram os esforços de tal personagem existir no que ele considera um universo normal, e normais na medida em que elas dão respaldo a ele. Não existe apenas o herói, existe também o semi-herói e o demi-semi-herói. Eu posso quase dizer que sem o conceito de sociedade normal o romance seria impossível de existir. Eu sei que existem exemplos de romances que parecem contradizer isso, mas, no geral, eu devo dizer que isso é verdade. O Presidente dos Imortais só é chamado quando a sociedade fez uma profunda bagunça.

Porém, em “O Capote” isso não é verdade, nem na maioria das estórias que eu devo levar em consideração. Não existe nenhuma personagem em “O Capote” com quem o leitor se identifica, a não ser que esta seja aquela figura horrorosa sem nome que representa o autor. Não há nenhuma forma de sociedade em que a personagem no conto pudesse se apegar e ser considerada normal. Nas discussões sobre o romance moderno nós chegamos a falar do romance com ausência de herói. Na verdade, o conto nunca teve um herói.

O que ele tem, na verdade, é uma população de grupos submersos – uma expressão ruim, mas seu uso se torna necessário por falta de uma melhor. Essa população submersa muda sua personagem dependendo do escritor e da geração. Podem ser os oficiais de Gógol, os servos de Turguêniev, as prostitutas de Maupassant, os médicos e professores de Tchékhov, os provincianos de Sherwood Anderson, sempre sonhando com a fuga.

“Ainda que eu morra, hei de conseguir afastar de ti a desgraça, seja como for”, exclamava, e tão intensa era sua vontade, que todo o seu corpo estremecia. Seus olhos brilhava e ela cerrava os punhos. “Se eu morrer e meu filho tornar-se um farrapo insignificante como eu, hei de voltar ao mundo”, dizia. “Peço a Deus que me conceda essa mercê. Eu a imploro. Pagarei por ela. Deus que me castigue com sua própria mão. Eu suportarei qualquer golpe, desde que o menino possa ser alguma coisa para nós dois.” Detendo-se indecisa, a mulher percorria com os olhos o quarto do filho. “E tomara que ele não precise tornar-se esperto para vencer na vida”, acrescentava vagamente.”

Isso é uma passagem de Sherwood Anderson, escrevendo mal para o seu nível, mas poderia ser de quase qualquer contista. Do que a heroína tentou escapar? Do que ela quer que seu filho escape? “Derrota” – o que isso significa? Aqui não significa apenas miséria material, apesar disso ser uma característica recorrente de grupos submersos. Fundamentalmente parece significar uma derrota infligida por uma sociedade sem sinalização, que não oferece objetivos nem respostas. A população submersa não é inteiramente submersa por motivos materiais; também pode ser submersa por ausência de motivos espirituais, como com os padres e padres mimados das estórias americanas de J.F Powers.

Sempre existe no conto esse sentido de figuras marginais que vivem na margem da sociedade, ás vezes impostas em figuras simbólicas a quem elas são caricaturas, ou ecos – Cristo, Sócrates, Moisés. Não é sem motivo que existem contos famosos chamados “Lady MacBeth do distrito de Mtsenk” e “Um rei Lear da estepe” e – o oposto – um chamado “An Akoulina of the Irish Midlands”. Como resultado, a maior característica do conto, que nem sempre é encontrada no romance, é a sensação de percepção da solidão humana. De fato, parece realista dizermos que enquanto é comum lermos um romance para encontrarmos companheirismo, nós procuramos o conto de um modo muito diferente. Mais semelhante a algo como o ditado de Pascal: Le silence éternel de ces espaces infinis m’effraie | O silêncio eterno dos espaços infinitos me assustam.

Devo admitir que eu não pretendo entender inteiramente a ideia: ela é muito vasta para um escritor sem conhecimento crítico ou histórico explorar empiricamente, mas existem muitos indicadores que a tornam válida para eu ignorar a ideia como um todo. Na primeira vez que eu me deparei com ela, eu tinha apenas percebido uma peculiaridade geográfica na distribuição do conto e do romance. Por alguma razão, na Rússia Czarista e na America moderna se parece possível produzir tanto bons romances como bons contos, enquanto na Inglaterra, a qual podemos chamar sem nenhuma exagero de terra natal do romance, quando se concerne de contos não aparece tão bem. Por outro lado, meu país – a Irlanda – que falhou ao tentar produzir romancistas, produziu quatro ou cinco contistas que são de primeira.

Eu procurei muito cautelosamente explicar essas diferenças, e as encontrei – no todo, acho eu agora, corretamente – na diferença da mentalidade nacional em relação à sociedade. Tanto na America moderna quanto na Rússia Czarista, se poderia descrever a postura intelectual perante a sociedade como “Ela, a sociedade, pode funcionar”; na Inglaterra como “Ela tem que funcionar”; e na Irlanda como “Ela não [pode] funcionar”. Um jovem americano ou um jovem russo da época de Turguêniev olha com um certo cinismo para um possível futuro de sucesso e prestígio; nada, a não ser má sorte, pode atrapalhar um jovem inglês de obter esse futuro, até mesmo hoje em dia; enquanto um jovem irlandês não deve esperar nada do futuro, a não ser incompreensão, o ridículo e a injustiça. O que foi exatamente o que o autor de Dublinenses obteve.

O leitor deve ter percebido que eu deixei de fora a França, a qual eu sei pouco, e a Alemanha, que não parece ter se destacado na ficção. Mas, desde aqueles dias, eu vejo se acumulando evidencias que dão respaldo as minhas observações. Eu vi os Irlandeses perdendo espaço para escritores indianos, e estes, após terem se tornado respeitados, perderam o espaço para escritores do oeste da Índia, como Samuel Selvon.

Fica claro, que o romance e o conto, apesar de derivarem das mesmas fontes, derivam de modos bem diferentes, e são formas de literatura distintas; e a diferença não é tão formal (apesar de, como veremos, existirem várias diferenças formais), quanto ideológica. Eu não estou sugerindo de maneira alguma de que no futuro o conto só poderá ser escrito por Esquimós e Indígenas americanos: sem nos distanciarmos muito, temos muitos grupos submersos próximos a nós. Estou fortemente sugerindo que nós podemos enxergar nisso uma mentalidade que é atraída por grupos submersos, qualquer um de qualquer época – vagabundas, artistas, idealistas solitários, sonhadores e padres mimados. O romance pode ainda aderir ao conceito clássico de sociedade civilizada, do homem como animal que vive em uma comunidade, como obviamente acontece em Jane Austen e Tropelle; mas o conto, por conta da sua própria natureza, permanece remoto da comunidade – romântico, individualista e intransigente.

Porém, o conto difere formalmente do romance. Se pode expressar a diferença da maneira mais rude possível dizendo simplesmente que um é menor do que o outro. Isso não é necessariamente verdade, mas é o suficiente como generalização. Se o romancista pega uma personagem qualquer e a coloca em oposição a sociedade, e então, como conseqüência do conflito entre os dois, permite que sua personagem tanto controle a sociedade, quanto seja contida por ela, a personagem fez tudo que pode ser esperado dela. Nesse aspecto, o elemento Tempo é o maior recurso do escritor; o desenvolvimento cronológico da personagem ou do incidente é o modelo ideal do que nós vemos na vida real, e o romancista despreza isso por seu próprio risco.

Para o contista não existe tal coisa como a forma essencial. Porque sua borda de referência nunca pode ser a totalidade da vida humana, ele deve estar sempre escolhendo alguma questão – algum período – para abordar, e qualquer escolha que ele fizer contém a possibilidade de uma nova forma, tanto quanto a possibilidade de um grande fiasco. Eu ilustrei esse elemento da escolha usando um poema de Browning. Quase todas das suas grandes obras poéticas podem ser consideradas romances por si só, mas capturados em um único momento de significância peculiar – Lippo Lippi preso quando retorna sorrateiramente ao monastério pela manhã, Andréa Del Sarto quando ele renuncia a si mesmo a companhia de uma amante, o Bispo morrendo em St. Praxed’s. Mas já que uma vida inteira deve ser posta em alguns minutos, esses minutos devem ser cuidadosamente escolhidos e iluminados por uma luz sobrenatural, que permita que se enxergue o presente, passado e futuro como se eles fossem todos contemporâneos. Ao invés de um romance de quinhentas páginas sobre o Duque de Ferrara, suas duas primeiras esposas, e a estranha morte da primeira, se tem cinqüenta versos nos quais o Duque, negociando um segundo casamento, descreve o primeiro, e a primeira linha do poema faz nosso sangue correr frio.

That’s my last Duchess painted on the wall,
Looking as if she were alive.

Essa é a minha última Duquesa pintada na parede,
Parecendo viva.

Isso não é a forma essencial que a vida nos dá; é uma forma orgânica, alguma coisa que nasce de um detalhe e abrange o passado, presente e futuro. Em um livro sobre Parnell tem uma história horrível sobre a morte de seu filho com sua amante, Kitty O’Shea; enquanto Parnell vagueava freneticamente pela casa como um fantasma, o amável marido de Kitty, Willie O’Shea recebia os pêsames dos visitantes pela morte de um filho que nem era dele. Quando lemos isso, se torna desnecessário ler toda a história sórdida do romance de Parnell com seu final trágico. A tragédia está ali, se apenas tivéssemos Browning ou Turguêniev para escrevê-la… Na composição padrão que a vida individual apresenta, o contista deve estar sempre procurando por novas composições que o permitem sugerir a totalidade da composição antiga.

Portanto, o contista difere do romancista por isso: ele deve ser muito mais escritor, muito mais artista – talvez eu deva mencionar também, considerando os exemplos que eu dei, muito mais dramaturgo. Porque ser dramaturgo, eu suspeito também, tem alguma coisa a ver com ser mais artista. Em um conto selvagem de J.D. Salinger chamado “Lindos lábios e verdes meus olhos,” ecoa essa cena da vida de Parnell de uma forma surpreendente. Um homem, cuja mulher está fora tarde da noite, liga para seu melhor amigo sem suspeitar que sua esposa está na cama com ele. O amigo o consola de um jeito simples, mas eficaz. Mais tarde o marido enganado, um homem decente que se vergonha da sua própria raiva, liga de volta para seu amigo para lhe dizer que sua mulher chegou em casa, apesar dela ainda estar na cama com seu amante.

Agora, um homem pode ser um excelente romancista, como eu acredito que Trollope foi, e mesmo assim ser um escritor medíocre. Eu acredito que o romancista é um dramaturgo inferior; não tenho certeza se um romance poderia sustentar o impacto de uma cena como a qual eu citei da vida de Parnell, ou a da estória de Salinger. Mas eu não consigo pensar em um bom contista que também fosse um escritor medíocre – a não ser, talvez, Sherwood Anderson – nem em nenhum que não tivesse senso de teatro.

Isso não é nada a não ser a recomendação que possa parecer ser, porque é muito fácil um contista se tornar um pouco artista demais. Hemingway, por exemplo, estudou tanto a arte de se abordar o momento significante, que ás vezes nós acabamos com muito significado e pouca informação. Eu tentarei ilustrar isso com seu conto “Colinas Parecendo Elefantes Brancos.” Se alguém o enxerga como um romance, essa pessoa a vê como a estória de um homem e uma mulher cuja relação começa a se desestabilizar quando o homem, com medo da responsabilidade, convence a mulher a concordar em abortar, o que ela acredita ser errado. O desenvolvimento é suficientemente simples para se trabalhar como um romance. Ele é um americano, ela provavelmente uma inglesa. Ele possivelmente já tem responsabilidades – uma mulher e criança em algum lugar, por exemplo. Ela pode ter sido criada em um ambiente moralista, e talvez contemplando o nascimento da criança ela espera que sua família e seus amigos vão apoiá-la na sua decisão.
Hemingway, como Browning em “Minha última Duquesa”, escolhe um breve episódio de uma estória longa e envolvente, e nos mostra os amantes em uma estação de trem, esperando o seu trem chegar, como se eles estivessem simbolicamente divorciados de seus amigos e contexto diário. Nesse cenário eles tomam uma decisão que já afetou o passados deles e certamente irá afetar o futuro. Nós sabemos que o homem é americano, mas isso é tudo que sabemos a respeito dele. Nós podemos apenas adivinhar que a mulher não é americana, e é tudo que sabemos dela. O foco está totalmente direcionado em apenas uma coisa: a decisão sobre o aborto. É o aborto, tudo sobre o aborto, e nada a não ser o aborto. Nós, também, nos sentimos compelidos a julgar a questão por nós mesmos, mas apenas em um nível abstrato. Certamente se nós soubéssemos que o homem tem algum tipo de responsabilidade em outro lugar, poderíamos nos sentir um pouco mais solidários a ele. Se, por outro lado, nós soubéssemos que ele não tem nenhuma outra responsabilidade, nós poderíamos nos simpatizar bem menos com a sua situação. Por outro lado, nós poderíamos entender mais o lado da mulher se nós soubéssemos se ela recusa o aborto por achar que é errado, ou porque ela pensa que isso pode fazer ela perder o controle sobre o homem. A luz é admiravelmente focada, mas também é cegante; não é possível enxergar nas sombras como conseguimos em “Minha última Duquesa”.

She had
A heart – how shall I say? – too soon made glad,
Too easily impressed; she liked whate’er
She looked on, and her looks went everywhere

Ela tinha
Um coração – como posso dizer? – que antes do tempo fez-se feliz
Facilmente impressionável; ela gostava de qualquer coisa
Que olhava, e seu olhar se recaía em tudo

Então eu devo dizer que o conto de Hemingway é genial, mas sutil. Nosso julgamento moral foi estimulado, mas nossa imaginação moral não foi atiçada, como foi em “A Dama do Cachorrinho”, onde o autor nos deu toda a informação que nos permitiria decidir o que achar sobre o comportamento do casal da estória. A inocência comparativa do romance permite ocasionalmente ao autor estender-se sobre os seus sentimentos – cantar; e até romancistas menores cantam alto e em bom som de vez em quando por capítulos inteiros até, mas no conto, por todos os seus recursos líricos, as notas vocais estão quase sempre ausentes.

Isso é o significado da diferença entre o conte e a nouvelle que se vê até em Turguêniev, o primeiro dos grandes contistas que eu estudei. Essencialmente, a diferença depende de quanto de informação o escritor sente que deve dar ao leitor para permitir que sua imaginação moral funcione. Hemingway não dá o suficiente. Quando a sábia mãe de Maupassant reclamou que seu filho, Guy, começava suas estórias muito cedo sem preparação suficiente, ela estava fazendo o mesmo tipo de reclamação.

Mas o conte como Maupassant – e até mesmo como o jovem Tchékhov ás vezes escrevia – é muito rudimentar para que um escritor permaneça muito tempo nele; não é muito mais que uma anedota, uma nouvelle despojada da maior parte de seu pormenor. Por outro lado, a forma do conto ilustrado por “Minha última Duquesa” e “Colinas parecendo elefantes brancos” é excessivamente complicada, e dúzia de contistas se perderam nesse labirinto. Existem três elementos básicos em uma estória: exposição, desenvolvimento e drama. Podemos ilustrar a exposição como: “John Fortescue era um advogado na pequena cidade de X”; desenvolvimento como: “Um dia, sua esposa disse que estava prestes a deixá-lo por outro homem”; e drama como: “Você não vai fazer nada disso, ele disse”.

No conto dramatizado, o contista tem que combinar exposição e desenvolvimento, e, ás vezes, o drama mostra uma declarada tendência de desabar sobre o mero peso da exposição intrusiva – “Como um advogado eu posso te dizer que você não vai fazer nada disso, Fortescue disse”. A extraordinária genialidade de “Colinas parecendo elefantes brancos” vem da habilidade a qual Hemingway usou para excluir exposição desnecessária; sua fraqueza, como eu sugeri, vem do fato de que grande parte da exposição [N.T., como Hemingway equivocadamente pensou,] não é de modo algum necessária. Turguêniev provavelmente inventou o conte dramatizado, mas se ele o fez, logo perceberia o perigo porque, nos seus últimos contos, até mesmo curtos como “Old Portraits”, ele esbarrou na nouvelle.

O ideal, é claro, é dar ao leitor precisamente informação suficiente, e nisso, mais uma vez, o conto difere do romance, porque nenhuma convenção de extensão nunca parece afetar o poder dos romancistas de dizer ao leitor tudo que ele precisa saber. Nenhuma convenção de extensão parece se aplicar ao conto. Maupassant frequêntemente começava seus contos brevemente porque ele tinha que terminar com no máximo duas mil palavras, e O’Flaherty ás vezes nos deixa com a impressão de que seus contos ou se estendem demais, ou acabam muito cedo. Nem os contos de Babel, nem de Tchékhov nos deixam essa impressão. Babel por vezes termina um conto com menos de mil palavras. Tchékhov pode multiplicar por 80 essa quantidade.

Se pode colocar rudemente que a forma do romance se dá pela extensão; no conto a extensão é dada pela forma. Simplesmente não há critério para a extensão de um conto sem ser o que o que o conteúdo lhe dá, e quando há o esforço exagerado para trazê-lo à extensão convencional se pode estragá-lo. Eu tenho receio de que o conto moderno está sendo seriamente afetado por essas ideias editoriais que determinam qual extensão que ele deve ter. (Como a maioria dos contistas, editores também me foi disseram que “ninguém lê nada com mais de três mil palavras”). Tudo que posso dizer ao ler Turguêniev, Tchékhov, Katherine Anne Porter, e outros é que o termo “conto” [N.T. short story, ou estória curta em inglês] é um termo impróprio. Um conto não é necessariamente curto, e a concepção do conto como uma miniatura é inerentemente falsa. Basicamente, a diferença entre o conto e o romance não é a extensão. É a diferença entre narrativa pura e direcionadas, e se alguém ainda não conseguiu entender, eu não estou tentando rebaixar narrativas direcionadas. O conto puro é mais artístico, isso é tudo […]


Blaise Pascal, físico e filósofo francês do século XVII | Ivan Turguêniev, escritor russo do século XIX, autor dos citados Um Rei Lear das Estepes (1870); Old Portratis | Nikolai Gógol, escritor russo do século XIX, autor do citado O Capote (1842) | Nikolai Leskov, autor russo do século XIX, autor do citado Lady MacBeth do distrito de Mtsenk (1865) | Anton Tchékhov, escritor russo do século XIX, autor do citados Dama do Cachorrinho (1899); A morte do funcionário (1883) | Guy de Maupassant, escritor francês do século XIX | Sherwood Anderson, escritor americano do século XX, autor do citado Mãe (1919) | James Joyce, escritor irlandês do início do século XX, autor do citado Dublinenses (1914) | Samuel Selvon, escritor do século XX, natural de Trinidad e Tobago | J.F. Powers, escritor americano do século XX | Robert Browning, poeta inglês do século XIX, autor do citado Minha última Duquesa (1842) | Charles Parnell/ Kitty O`Shea/ Willie O`Shea, triângulo amoroso entre um parlamentar, sua amante, e um oficial do exército cuja ‘amante’ era sua esposa | Ernest Hemingway, escritor americano do século XX, autor do citado Colinas Parecendo Elefantes Brancos (1927) | J. D. Salinger, escritor americano do século XX, autor do citado Lindos lábios e verdes meus olhos (1950) | An Akoulina of the Irish Midlands, conto da escritora irlandesa Mary Lavin | Anthony Trollope, escritor britânico do século XIX | Jane Austen, escritora britânica do século XIX | Liam O’Flaherty, escritor irlandês do século XX | Isaac Babel, escritor ucraniano do século XX | Katherine Anne Porter, escritora americana do século XX

Aviso do Tradutor a tradução da passagem do conto de Gógol, “O Capote”, foi retirada da 1ª edição de “O Capote e outras histórias” da Coleção Leste da Ed.34. Os créditos vão ao ilustre Paulo Bezerra. | os títulos dos contos são de traduções oficiais brasileiras. | a tradução da passagem do conto de Sherwood Anderson, “Mãe”, foi retirada da edição da L&PM. Os créditos vão à James Amado e Moacyr Werneck de Castro.

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