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Plano, potência e gesto

outubro, 2014

Algumas notas sobre A Religiosa Portuguesa (2009), de Eugène Green e sua breve passagem pelo Brasil em ocasião do Festival do Rio 2014

– São só dois atores. O som eu já gravei. Sozinha. Aqui gravaremos somente as imagens.
– O outro ator não tem o que falar?
– Não. E mesmo eu não sou vista a falar.
– O que é então o som que gravou?
– Um texto francês do século XVII que apenas se ouvira
– Eu nunca vejo filmes franceses. São para intelectuais.
– Os nossos filmes são muito apreciados em Portugal
– Só em Lisboa onde há muitos intelectuais, Cada cidade tem os seus inconvenientes.

(trecho do filme A religiosa Portuguesa)

O que está diante de nós quando assistimos um filme como A religiosa Portuguesa? Durante breve e intensa passagem pelo Brasil, pude acompanhar as doces palavras do realizador americano radicado na França, Eugène Green. Uma no Instituto de Artes e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense e outra na sala 3 do Estação Botafogo, após a exibição de seu último filme, La Sapienza (2014). A radicalidade e a afirmação encantam a uma primeira vista. Dotado de um discurso extremamente lúcido, pronunciado em ambas ocasiões em um macarrônico português de Portugal, Green faz questão da afirmar que seus filmes lidam com uma relação sagrada, algo de religioso. Com seu livro embaixo do braço, “A poesia do cinematógrafo”, suas palavras tentavam de certa forma nos apresentar o discurso presente no livro. Discorrendo sobre a especificidade do cinema, desde a invenção do cinematógrafo, e chamando a atenção do encontro do espectador com o sagrado. Utilizando o termo “presença real” para explicitar o contato com o sagrado, possibilitado pelo cinema, mas que está ocultado nas coisas em nosso cotidiano. É a natureza do cinema possibilitar este encontro. Tal gesto singular me fez lembrar de alguns outros filmes com gestos claros e assinaturas estilísticas. Me fez achar que por um breve instante estava diante de um contemporâneo do cinema moderno, talvez não. Green parece ser mais um atemporal no cinema contemporâneo do que um saudosista do moderno. Tal simplicidade estilística nos indica um cinema da economia, um cinema de gestos e espiritualidades radicais. Não há espaço para exageros. As sonoridades apresentada aqui, assinada pelo português Vasco Pimentel, dizem muito sobre o encontro espiritual que se dá no ato mesmo da criação cinematográfica.

Não dificilmente podemos evocar filmes de Miguel Gomes ao escutar as sonoridades d’A religiosa Portuguesa. Porque não um filme de Wim Wenders, O céu de Lisboa (este também com som de Pimentel) quando a paisagem histórica da velha Lisboa se funde com o som do Fado em momentos diegéticos.

Logo pode-se perceber aqui o que Green nos conta sobre seus filmes, que a relação estabelecida ali no âmbito da mise-en-scène é da ordem do religioso. A não psicologização dos personagens e os registros vomitados são caraterísticas marcantes de um cinema gestual. O que num primeiro momento parece ser apenas um devaneio de uma atriz francesa que roda um filme em Lisboa, se afirma como uma busca de redenção, entremeada por encontros com uma criança órfã, um aristocrata a beira de um suicídio frustrado e por fim uma religiosa portuguesa, que atende aqui pelo nome de Irmã Joana.

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Ultra marcantes são as maneiras como Green insiste (assim como acontece em La Sapienza) em filmar planos e contra-planos num esquisitíssimo close-up. A expressão por vezes assustada de Julie ocupa todo o quadro em quase todos os momentos que aparece. São como um choque de atuação, que pelo que Green fez questão de enfatizar, justamente uma não-atuação. Em ambas apresentações, tanto em Niterói quando no Rio, estávamos apenas esperando para que Green declarasse sua admiração por seu contemporâneo espiritual, Robert Bresson. Seria clara e óbvia a comparação com o realizador francês pela registro da atuação ou pelas sonoridades apresentadas. Mas não é o suficiente. Em certo momento do filme, praticamente em seu desfecho, a irmã Joana diz que sua inspiração enquanto religiosa é a figura de Joana Dark. Talvez uma declaração explícita ao estilo bressoniano?

Temos em A Religiosa Portuguesa a realização de um filme, no qual a atriz francesa Julie é a protagonista. Porém não se trata de um filme dentro do filme, ou o que em artigo recente1 André Brasil diz sobre estratégias narrativas que “partem do mundo vivido, ficcionalizando experiências ‘reais’, fazendo confundir a vida dos atores e vida de seus personagens”. Em nenhum momento confundimos a vida que Julie tem no filme que ela mesma grava ao filme que assistimos. O que vemos é o desenvolver de uma narrativa que por ora tem-se comentários sobre o fazer fílmico. Não se pretende uma problematização do real e sua inserção na estória. Estamos em um outro registro. O gesto de Green parece colocar a realização de filmes como questão cara à sua constituição de mise-en-scène e assim ao seu próprio ofício: ele é um dos personagens do filme, mas com o nome-fachada de Denis Verde. Porém, por vezes os atores olham diretamente para a objetiva quando se trata de um plano-contra-plano. Em outras ocasiões os atores o fazem mesmo quando tal recurso narrativo não é posto. Para onde os atores olham? Para o antecampo talvez? Muito provavelmente não, é a ordem do sagrado que fala mais alto. Se trata do nosso encontro, enquanto espectadores, com a presença real.

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Deve-se atentar à forma como Green, agora com o auxílio de Vasco Pimentel (creditado como diretor de som), se debruça sobre a representação do som em seu filme. Entendendo assim o som como um campo de múltiplas significações e contratos de realismos. Basta um ouvido atento à representação do som em certos filmes contemporâneos para perceber que o ambiente sonoro que se situa no entorno das locações, aparece com força. Por vezes ouvimos pombas voando ou aterrissando ao mesmo tempo que atores falam seus diálogos. Um rangido de porta por demais reverberado compõem a mise-en-scène de forma natural e esteticamente justificado. Ou seja, para Vasco Pimentel, um profissional de som que passa boa parte do seu dia literalmente em silêncio2, também é da ordem do sagrado o ambiente sonoro que se configura quando num set de filmagem. Ele mesmo diz “exigir no mínimo o máximo”3. A potencialização desse entorno traz marcas gritantes no filme aportuguesado de Eugène Green. Como se não bastasse a parceria com Vasco Pimentel (conhecido parceiro de Miguel Gomes), Green faz questão da própria presença de Gomes em uma das últimas sequências do filme em que um grupo de amigos assiste a uma performance da mais típica música portuguesa, o Fado.

Para Eugène Green: “música não diegética? Só no início e no fim do filme!”. Diante de tanto entusiasmo com o cinema, que continuemos a redescobrir uma obra tão singular. Avanti!

 

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