Deitado na cama, escrevendo este texto, vejo meus dedos passeando sobre o teclado do computador. Quando escrevo uma poesia, sinto a pressão do lápis, teso entre meus dedos e o papel; são os músculos do meu pulso que levam o grafite ao atrito, e a palavra materializada é consequência do movimento do meu corpo. Deste mesmo modo, uma pintura é um vestígio, é uma pegada, é o que sobrou de um movimento artístico, espontâneo ou não. Prédios, indústrias, reflorestamentos, doenças venéreas, escolas primárias, tudo é simultaneamente obra concluída e em execução: o pedreiro martela a parede, a professora rabisca a lousa, os corpos se entrelaçam sem proteção. Cada pessoa, contudo, parece estar individualmente atenta a um movimento particular: o atirador concentra todo o seu foco na milimétrica ação de corretamente posicionar sua arma de modo a gerar mortalidade; o jardineiro manipula as ervas daninhas com destreza e nenhuma misericórdia porque quer separar o bom do mau; a senhora idosa busca com todo o esforço não cair. O dançarino está convidado a atentar, entretanto, à totalidade dos movimentos.
Como todo artista, o dançarino carrega consigo a habilidade de criar recombinações daquilo que o penetra, de transformar as impressões que o invadem em expressões. Ele busca, por meio do estudo das técnicas, a liberdade absoluta e o poder de decisão por completo; ele deseja ardentemente conhecer todos os movimentos relevantes que existem de modo a poder escolher quais serão os seus e como eles acontecerão; ele estuda para se rebelar. A técnica é o que o mestre que chega ao fim de sua jornada conta ao aprendiz que está apenas começando. É um resumo abstrato de seu caminho de descoberta e faz pleno sentido apenas para ele mesmo. As técnicas se alimentam da individualidade daqueles que lhe servem, como se levassem as pessoas a localizar o ápice do auto-conhecimento do lado de fora, no conhecimento total do que outra pessoa fez ou é. As técnicas, enquanto corpos rígidos, surgem porque o artista acredita que descobriu enfim a verdade, sem necessariamente elaborar que aquela é a sua verdade particular e intransferível. Inicia então um movimento que tão belamente se assemelha ao imperativo religioso da pregação, que é o absurdo ensino do jeito certo de criar.
Diferente da pintura e da escrita, não há vestígio na dança – porque se o movimento do pintor ambiciona a cor, o do dançarino ambiciona apenas a si mesmo. Movimento por movimento, que se aproxima da racionalidade científica apenas quando está engaiolado pela técnica: o bom bailarino clássico é aquele que pratica o balé verdadeiro e correto, estabelecido pela tradição e estático. Este é um profissional industrial, deveras muito importante no mundo, mas o dançarino é um artista. A diferença entre os dois, mesmo quando ambas as personagens habitam uma única pessoa, é tão grande quanto o abismo que separa o igual do diferente.
O instante da performance, quadro caótico de fronteiras concordadas, é ele mesmo o vestígio do dançarino, por isso a necessidade de plateia. O público acessa as pinturas já finalizadas porque a obra concluída tende a estar separada da obra em processo no desenho. No caso da dança, a conclusão é a ausência do movimento, assim como o fim da poesia é o silêncio. Em seu momento criativo, o dançarino pode criar formas tão efêmeras que o movimento próprio já é arte. O espaço, que pode ser o palco, a rua ou a imaginação, contém todos os movimentos possíveis enquanto potência: o dançarino é o poder de ocupar esse espaço com escolhas que geram movimentos concretos. Uma folha de papel em branco é, plano, a soma de todas as infinitas retas possíveis que a compõem; se ao cabo do movimento haverá um desenho ou um texto, isso será consequência da decisão do artista. Talvez sejam o canto e a dança as artes mais antigas porque ambas acontecem com a espontaneidade do efêmero. O cuidado com as consequências é posterior à ação, de modo que as pinturas rupestres são mais registros de um movimento ritualístico do que uma obra ponderada.
O dançarino traz consigo sua pesquisa e seu estudo e está em diálogo com seus contemporâneos, gerando as técnicas – instruções de como construir formas de beleza concordada, que serão impingidas sobre a próxima juventude. Alguns profissionais aprenderam que dançar é realizar seu movimento de determinada forma, segundo uma técnica que tem que ser a sua também. Alguns outros se apercebem de ou já nascem com a consciência de que não devem se permitir capturar pelas descobertas alheias, pois os caminhos diferem ao longo do fragmentar que é a vida. Dançar, em um determinado momento, torna-se mais aprender consigo mesmo do que com os outros, e é neste momento em que, rebelde, o dançarino entende profundamente o seu mestre, destruindo-o. Ocorre então uma inversão: se a matéria-prima é egoísta e a ferramenta é alteridade no aprendiz, no mestre as dores do mundo todo se tornam o conteúdo, e a espontaneidade pessoal de sofrer é a forma. Eis o universal e o particular sempre em harmonia, o egoísmo e o altruísmo na arte.
O corpo infantil é completamente livre, por isso é tão dançante. Mas ele é livre em sua ingenuidade, ele desconhece os pudores e as posturas do mundo, então para este corpo indócil o dançar é simples. Difícil é rebentar as normas e pôr-se em movimento com toda a repressão que há. A escola de dança, em vez de garantir a continuidade da leveza infantil, transforma a criança em um profissional que navega entre os mares complexos da tradição e só tem autorização para ser livre, paradoxalmente, se for livre pelas boas razões e com boas justificativas. O movimento infantil no adulto, a dança espontânea, só é então permitido se for acompanhado de um segundo movimento que lhe sirva de fundamento: o movimento do pensar, do ensaiar, do construir cuidadosamente o instante do espetáculo, para que o corpo se esvazie de suas durezas e possa, naquele pequeno quadro, concretizar seu livre-arbítrio.