Morten Kyndrup
Like a Film, Like a Child – Ser e Conhecimento em Asas do Desejo
P.O.V nº 8 | Dezembro 1999
No filme Asas do Desejo (1987), de Wim Wenders, o acesso ao mundo dos humanos (a Berlim daquele tempo) se dá através de personagens que não têm uma compreensão comum, humana das coisas. Esses personagens, também anjos, movem-se no espaço sem qualquer barreira física ou mental. Silenciosos, são homens e mulheres cinzentos sem idade determinada, vestindo roupas anônimas. Embora invisíveis para todos os adultos, as crianças são capazes de vê-los. Esses anjos não têm nenhuma substância física e possuem a habilidade de se comunicar diretamente com o mundo interior dos seres humanos. Eles conseguem escutar os pensamentos das pessoas, o que é representado no filme por vozes individuais num eterno monólogo: o fluxo de consciência sempre presente em cada um de nós. Os anjos podem estar por toda parte, mas nunca em mais de um lugar ao mesmo tempo. Tampouco conseguem escutar a interioridade de todos os humanos juntos – até poderiam, mas para separar uma voz do coro geral se faz necessário sintonizar uma consciência específica.
Os anjos se movimentam dentro e fora da cidade, por espaços barulhentos. Observam o que acontece e escutam a voz da consciência de cada indivíduo. Eles podem consolar um ser humano com a sua presença ou com uma virada na direção do monólogo interior de uma pessoa, mas são incapazes de mudar o que acontece no mundo físico. Não podem impedir um suicídio, um acidente de carro, ou alguma crueldade.
Os anjos escrevem e trocam entre si as estórias pessoais testemunhadas por eles. No entanto, os próprios anjos não possuem individualmente qualquer história.
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O filme Asas do Desejo trata da narrativa sobre os anjos Damiel e Cassiel e sua relação com as histórias vividas em Berlim. Mas Damiel e Cassiel não são capazes de transformar o que lhes diz respeito em uma narrativa. Também para nós essas histórias de vida aparecem como infinitas, uma montagem composta de momentos paralelos. Narrar e compreender as narrativas não é a mesma coisa.
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A suposta competência epistemológica (conhecimento do que acontece no espaço ficcional) de Damiel e Cassiel por um lado é incrivelmente alta: no que concerne os fatos, eles são oniscientes. Por outro, mesmo em relação aos espaços que eles conhecem tão bem, sua competência existencial é infinitamente pequena. Eles sabem de tudo mas não sabem nada. Dessa forma, o filme apresenta Berlim através da experiência desses anjos da maneira mais “realista” possível, incluindo tudo o que as pessoas vivenciam ao representá-las numa escala de um pra um; mas tal apresentação não se trata realmente de uma narrativa.
Esta condição se torna insuportável para o anjo Damiel. Ele sente inveja dos seres humanos, de suas histórias, do tempo presente e de seu confinamento. Então ele resolve virar um humano: Damiel decide cair do céu. Da infinidade para a finalidade, de estar em qualquer lugar para estar somente onde se está, do ser imortal e eterno para ter somente uma vida. Em outras palavras, a prisão da completa liberdade para a prisão de estar inscrito na história, de ser mortal.
A atitude de Damiel, portanto, corresponde exatamente ao movimento que qualquer filme está sujeito. Fazer um filme significa transformar diversas temporalidades possíveis em um tempo específico – a saber, o do filme – não só do ponto de vista da narrativa, mas também no sentido concreto do termo.
O cinema, enquanto arte, parece ter adquirido tal conhecimento no decorrer de sua história. Da composição isolada de espaços montados lado a lado, o cinema aos poucos se tornou consciente de seu caráter temporal. Um filme junta diversos locais e temporalidades em um único tempo, na maior parte das vezes na forma de narrativa. A referência autorreflexiva tanto no filme em questão quanto na sétima arte aparece de maneira explícita e consciente em Asas do Desejo. Não só o filme muda do preto-e-branco para o colorido – do mesmo jeito que a história do cinema – quando Damiel abandona a perspectiva do anjo, mas também é declarado nos créditos “Dedicado a todos aqueles que já foram anjos, em especial Yasujiro, François e Andrei”. Há razão para acreditar que isto se refira aos grandes diretores com os sobrenomes respectivos de Ozu, Truffaut e Tarkovski; um grande diretor, pelo que parece, é um anjo caído. Fazer um filme é escolher uma história, instituir um tempo. Escolher uma história é dizer não para as outras inúmeras narrativas possíveis. Jacta alea est.
Asas do Desejo, ao que tudo indica, é uma clara alegoria da problemática fundamental na criação cinematográfica, sobretudo no desenvolvimento do filme em questão. Não se trata apenas de um personagem que escolhe ter – e portanto fazer – a sua própria história, mas o filme também faz o que diz. Ele mesmo se torna essa história. Da justaposição de destinos paralelos vistos de cima em preto-e-branco, ele aterrisa no meio de uma narrativa particular, colorida, vista de dentro. A incoerente similaridade de situações específicas, organizadas de acordo com princípios espaciais, é substituída por uma narração “vision-avec” [ponto de vista do personagem] baseada no tempo, de acordo com a direção dos eventos. Marion e Damiel se encontram.
Em todos os níveis do filme esta transformação é abertamente encenada. Tal clareza implica que a transformação dentro do enunciado do filme não seja apenas reflexiva. O exagero calculado duplifica seu caráter reflexivo. A distância entre a clara reflexividade da expressão e a posição implícita responsável pela expressão, cria uma objetividade, ou dobra mais uma vez a reflexividade, que fica evidente na ambivalência do filme.
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A ambivalência também é óbvia no cruzamento demasiado explícito presente na relação entre Damiel e Marion. Ele se torna uma criança, de fato e por fim uma criança, com todas as implicações, como por exemplo a necessidade constante de cuidado. Ela, ao contrário, torna-se uma adulta, finalmente – “por fim só” – como ela mesma diz. Ela se sente atraída por Damiel enquanto anjo: sua quietude, atemporalidade, sua essência eterna em oposição à adesão da própria Marion aos anais da história.
Mas o filme também levanta uma outra questão. Seu enunciado possui uma certa construção estrutural dentro da qual Damiel escreve a sua história (narrando em simultâneo, ou às vezes em off). Cada sequência começa com “Als das Kind Kind war” (“quando a criança era criança”), uma subversão paradoxal da temporalidade e da forma. No caso a criança era uma criança, só que não é mais. Mas podemos estar lidando com uma criança (Damiel) que já se tornou uma criança e também deseja ter sido uma criança, algo que não foi. Em outras palavras, deseja conquistar sua história de vida, uma infância. Muitos detalhes vêm confirmar que essa estrutura foi pensada meticulosamente e que a narrativa do filme foi feita como ilustração do que Damiel escreve; isto é, após os acontecimentos, uma “vision-par derrière” [visão por trás, narrador onisciente]. Uma das sequências é narrada na voz de Marion, apontando para uma perspectiva comum depois dos acontecimentos. Se isso for verdade, significa dizer que não só Damiel ficou preso numa narrativa de si, no decorrer dos acontecimentos; mas que toda a construção narrativa já o prendeu antes mesmo dela começar. Sendo assim, a história inteira é contada do ponto de vista pessoal, (intra) diegético, ou seja, de “baixo” – pela criança. A questão fundamental da fidelidade do narrador é posta em xeque. Novamente a ambivalência é enfatizada.
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O dilema continua em aberto. Conhecimento absoluto e ser humano são excludentes. Não se pode ter os dois. Mas o movimento descendente, a imposição da competência epistemológica para pessoas dentro de narrativas particulares, isto sim pode ser feito.
Em seu sentido geral, talvez seja disso que trate Asas do Desejo. O filme – tanto esse quanto qualquer outro – precisa capturar o espaço no tempo e se tornar uma criança. Isso traz certas consequências. Contudo, é possível construir este movimento de modo que o processo da captura se torne parte da apresentação. A perda de conhecimento, portanto, pode vir à tona como algo explícito, na forma de uma criança em formação. E o próprio tornar-explícito pode criar bifurcações no tempo criado. Tais bifurcações por sua vez, podem representar inúmeras coisas, como por exemplo diferentes espacialidades. Mas essa abertura também tem suas consequências.
Ou colocando de outra forma: todo filme é sempre metalinguístico. Quem deixou isso bem claro foram os supracitados “anjos caídos” da história do cinema. Sendo assim, o cinema pode aceitar de uma vez por todas o seu destino e passar a inscrever em ambos os níveis da expressão cinematográfica tais consequências ao incorporá-las em seu corpus estético.
Essa mensagem de Asas do Desejo possivelmente já é conhecida por nós. A questão aqui reside no fato de tal conhecimento permear todos os níveis do filme. Asas do Desejo não só tem consciência de sua forma, mas ele é a própria forma. Está de acordo consigo mesmo sem ser uma cópia de si. Ele leva à cabo o ato contínuo de ser uma criança em formação, o que o torna uma obra-prima enquanto filme, cinema e experiência de mundo.
Sabatina com Wim Wenders | Agosto 2008 – SP | In: Imagens que Obedecem, Caixa Cultura. Direitos: Folha de S.Paulo
Wim Wenders: Eu falei rapidamente pro Walter Salles sobre conseguir rodar um filme em ordem cronológica. Os road movies são também a única forma de filmar sem um roteiro fixo. A grande parte dos meus filmes foram feitos ou sem o roteiro ou com o roteiro bastante solto, bastante leve. Aqueles filmes de que eu mais gosto são aqueles que não eram muito cerebrais, nem pré-planejado, simplesmente aconteceram espontaneamente. Asas do Desejo foi feito sem um roteiro, seguindo aquelas decisões do dia a dia, trabalhando com improvisação, conseguindo inspiração do local e dos atores também, é claro. E eu prefiro isso. Eu prefiro que a realidade entre nos filmes o máximo possível. Sempre sinto que essas coisas que acontecem sem o planejamento são tão mais preciosas que qualquer outra coisa que você possa inventar. Portanto, o presente que você recebe dos atores, do clima do lugar que você filma é tão mais impressionante que qualquer outra coisa que eu poderia conceber. Existe uma outra escola de diretores que pensa o oposto. Eles acham que tem que controlar tudo. Eu acho que é melhor quando não controlo. Por isso eu gosto de rodar os documentários. Eu venho fazendo há muitos anos, acho que é uma cura pra alma e pra mente. Você está sozinho, sem planos, você está numa rua, você está com o cameraman, você está com a pessoa do som, sem caminhões. Não é uma operação militar, como tantos filmes, é uma operação pacífica. Você está na rua conhecendo as pessoas e você tem que descobrir a história delas. Então sempre espero nos meus filmes de ficção que esta realidade, meio que entre, e ela entra. É uma ideia errada você separar documentários de um lado e ficção do outro, sempre é uma mistura. Quando eu achava que eu estava rodando um documentário de verdade, quando eu fui a Havana e fizemos Buena Vista Social Club, sem saber, aí continuamos, semanas depois, a rodar em Amsterdam, e aí depois, sem saber, fomos pra Nova Iorque, rodando. E à medida que estávamos rodando nas ruas de Nova Iorque, com aqueles cantores, como se fossem crianças, pois era como se fosse a primeira vez que estavam lá, com 80 anos naqueles lugares, eu percebi que não estava rodando um documentário, o que estávamos fazendo até então era seguindo um conto de fadas. O mais impressionante é que isso de fato aconteceu. Não era um documentário. As pessoas gostaram tanto porque eles se tornaram testemunhas de uma história impressionante, maravilhosa. E nós estávamos lá naquele momento, naquele momento certo. O limiar entre ficção e documentário é tão transparente, é tão fascinante e interessante. Eu quero que venha o máximo de realidade nos meus filmes, o máximo possível. E você, Walter?
Walter Salles: Eu estava lembrando que o Godard – que tem uma boa frase pra tudo, como você sabe –, dizia que todo bom filme de ficção deriva da direção de um filme documentário e todo bom documentário bifurca na direção da ficção. Eu estou completamente de acordo com isso. E eu me lembrei também que em Alice nas Cidades, que é o primeiro filme seu que eu vi, que me encantou completamente, é um filme que se eu não me engano você escrevia à noite as sequências que você ia filmar no dia seguinte. Eu me pergunto se isso ainda é possível hoje, dentro de toda complicação de financiamento de filmes que mudou muito desde os anos 70 pra hoje. A gente tem ainda a liberdade de fazer isso? Você acha que um certo engessamento do cinema não permite mais esse ato tão sem limites?
Wim Wenders: Todo jovem diretor quer rodar um filme sem um roteiro. Talvez ele possa rodar isso sozinho, em DVD, mas ele nunca vai conseguir dinheiro pra isso. E até para um diretor como eu, que já provou que consigo filmar sem roteiro, não é mais possível. Eu escrevo roteiros falsos para conseguir o dinheiro. Quando fiz Paris, Texas, eu escrevi todo o roteiro, sabíamos que bem no meio, estava comprido, mas não queríamos continuar com isso. Mas escrevemos um segundo final ridículo e hilário, e nada foi rodado. Mas fizemos isso para ter um roteiro, como tal, completo. Eu tive que entregar um roteiro para poder rodar o filme, mas aí você esquece ele. Daí toda noite você reescreve as cenas. Você ainda pode fazer isso. Você vai ter que roubar um pouquinho, dessa maneira. Esse é o jeito.