Do lado de fora da cerimônia de encerramento devido à lotação, eu já dava minhas opiniões: Branco Sai Preto Fica de Adirley Queirós como melhor longa-metragem e E, de Alexandre Wahrhaftig, Helena Ungaretti e Miguel Antunes Ramos como melhor curta. O Júri da Crítica concordou comigo quanto ao curta-metragem, mas como melhor longa premiou A Vizinhança do Tigre de Affonso Uchoa, concedendo uma menção honrosa a Branco Sai Preto Fica.
Não tive a oportunidade de ver A Vizinhança do Tigre, um documentário sobre jovens da periferia de Contagem, município de Minas Gerais, mas a inovação ressaltada pelo júri é a forma como o filme foge do estilo convencional de documentário, colocando os personagens reais para encenar situações de seu cotidiano. O filme é resultado de um grande trabalho de imersão do diretor, o que traz para a tela uma forma completamente nova de tratar o tema. Infelizmente, por não ter visto A Vizinhança do Tigre, não posso analisar essas inovação e nem relacioná-la com o filme que mais me agradou, pois fica claro para mim que algo do mesmo gênero está sendo feito por Adirley Queirós em seus dois últimos longas. A questão aqui é a da fluidez entre a principal divisão de gênero no cinema, esses novos filmes, assim como outros na história do cinema, parecem querer quebrar com a classificação de ficção e documentário ao misturarem as duas noções e mostrar que aquilo que estão fazendo se trata de cinema acima de tudo.
Adirley Queirós
Adirley Queirós é um cineasta do Distrito Federal, ou melhor, de Ceilândia, região territorialmente próxima a Brasília, mas culturalmente muito distante, como mostram seus filmes. O nome Ceilândia vem da sigla CEI, que significa Campanha de Erradicação das Invasões, um programa do governo que, na época da construção de Brasília, procurava acabar com as favelas na região. Os moradores dessas favelas, muitos deles operários na construção da capital, foram transportados para as chamadas cidades satélites e uma delas ficou conhecida como Ceilândia, a terra da CEI. Adirley Queirós faz parte da primeira geração nascida neste local e vive lá até hoje, seus filmes são fruto direto da relação com esse território e suas experiências, especialmente do inevitável embate com Brasília.
Em A Cidade É Uma Só? (filme vencedor na 15ª Mostra de Tiradentes) Adirley começou a trabalhar com as questões históricas da formação da Ceilândia, mas essa acabou por se tornar apenas uma parte do filme, as outras duas são contemporâneas, uma que acompanha um comerciante de lotes irregulares e outra um candidato a deputado. Nesse filme a ficção e o documentário aparecem mais divididos, apesar de ainda conseguirem nos confundir. A parte histórica acompanha Nancy Araújo, uma mulher que participou da campanha da construção de Brasília quando, na época, o governo reuniu crianças de escolas públicas para cantar em um comercial uma música que tinha como frase principal o título do filme – sem a interrogação, é claro. Adirley coloca a interrogação no título nos mostrando que para a construção da capital diversas moradias foram desapropriadas e seus moradores afastados da região, causando justamente o inverso do que propõe a sentença. A parte contemporânea do longa tem em Dildu sua maior força, um cidadão que decidiu se candidatar a Deputado Distrital e para isso batalha em sua campanha mesmo sem recursos. Dildu é um personagem ficcional assim como sua candidatura e essa história é o que poderíamos classificar como a parte de ficção do filme, enquanto a história de Nancy é um documentário. Mas essa divisão pouco importa no filme, não interessa saber o que é “verdade” ou não para aquilo que ele nos passa, a ficção criada por Adirley e seus atores complementa tão bem a parte histórica que tal divisão pode passar despercebida durante a exibição. A candidatura de Dildu nos proporciona no final uma cena impactante que demonstra muito da realidade econômica e política do nosso país. Essa imagem, extremamente forte e reveladora, é o ápice do cinema de Adirley e de sua mistura de gêneros, pois o momento em que Dildu, a pé pela falta de gasolina, bate de frente com uma passeata gigantesca da presidente Dilma, também em campanha, é o mesmo momento em que a ficção encontra a realidade – propositalmente, diga-se de passagem, o que aumenta ainda mais a hibridez dessas relações.
Branco Sai Preto Fica aumenta essa mistura e reafirma a realização de um cinema para além de uma classificação. A Mostra de Tiradentes o colocou em seu catálogo como documentário, para o alívio de Adirley, que ao comentar sobre essa questão trouxe à tona mais uma vertente dessas classificações: os editais de incentivo que exigem não só essa definição como muitas outras. No caso, Adirley ganhou um edital para documentário e, muito bem humorado, fez questão de que disséssemos que o filme é um documentário, para evitar problemas. Contra a sua vontade, eu diria que o filme parte de uma premissa documental para construir um filme de ficção, mas mesmo essa tentativa de análise não é exata. Saber o que é ficção e documentário, a posteriori, é um exercício da nossa curiosidade e interesse pelo filme, mas a priori, como forma de classificação, não se faz necessário, e pode chegar até a limitar um cinema tão abrangente e sugestivo. João Carlos Sampaio, crítico convidado para o debate em Tiradentes, falando dessa confusão arriscou que Adirley estava criando um novo gênero: o sci-fi doc. Enfim, Branco Sai Preto Fica é um grande filme que mistura principalmente o documentário e a ficção científica, e mesmo a definição desse segundo gênero pode sugerir estereótipos que não estão presentes no longa.
Adirley trata de novo sobre a divisão entre Brasília e Ceilândia e dessa vez parte de dois personagens que sofreram no corpo a discriminação característica dessa divisão. O filme nos apresenta, através da memória, o Quarentão, um clube de blackmusic famoso nos anos 80 e muito frequentado pelos moradores da Ceilândia. Marquim e Shokito acabaram amputados após uma invasão policial ao Quarentão, onde a frase gritada pelos policiais da título ao filme. Os dois são símbolos, portanto, de toda uma geração amputada, pois o Quarentão foi fechado após a invasão, e o filme trata justamente de uma “vingança” dessa geração. Mais uma vez, ao misturar o documentário e a ficção, Adirley consegue construir uma ótima narrativa e passar sua mensagem, tratando dos assuntos que lhe incomodam, haja vista, por exemplo, a necessidade no filme de um passaporte para os moradores da Ceilândia entrarem em Brasília. Uma característica essencial nos filmes de Adirley é a utilização de não-atores, mas que também são amigos do cineasta, e se tornam personagens do filme. Dilmar Durães que interpreta Dildu no filme anterior, agora traz a carga de ficção cientifica para esse novo filme, interpretando um homem que veio do futuro colher provas contra o Estado. Muito do êxito na mistura de ficção e documentário vem do trabalho com esses atores não profissionais, e no caso atingindo resultados ainda melhores por se tratarem de amigos do diretor, pessoas que convivem com ele e compartilham da experiência e do sentimento que ele quer contar. Assim, não é com surpresa que ouvimos Adirley dizer que não trabalha com um roteiro e sim com ideias compartilhadas com esses atores, e então, a partir delas as falas surgem. Dilmar Durães nos proporciona improvisos engraçadíssimos e Marquim falas emocionantes, nada escrito antes.
Em uma entrevista para a revista multiplot!, conversando sobre A Cidade É Uma Só?, Adirley fala bastante sobre o processo de realização com esses atores, ressaltando que eles não são inventados, mas sim “personagens de intervenção”, e essa intervenção se dá através de proposições e situações, onde eles internalizam esses personagens e reagem ao contexto. Um trecho em especial, abaixo, é muito interessante por ressaltar uma diferença entre o personagem real e o ficcional no filme, a entrevista na íntegra pode ser conferida aqui.
“É engraçado, porque no filme nós temos três personagens principais: dois personagens de intervenção, que são enfim atores, e uma personagem que é real. Mas esta personagem “real”, eu sinto que ela, obviamente pelas negociações feitas para o filme, porque ela sabe o que tá acontecendo no filme, mas quando ela chega para atuar a história real dela, ela acaba fazendo tudo no nível da interpretação mesmo, classicamente falando. (…). E os caras que a gente propõe para representar, talvez pela nossa amizade, porque todo mundo estava muito dentro do filme, eles estão expostos ao filme, e o sentido de interpretação vai embora. Eles acreditam que aquilo é uma história real. E isso entra numa esfera política muito rapidamente.”
É, portanto, da união de uma realidade próxima, amigos, ideias e uma técnica apurada (destaque para a pequena equipe e o belo trabalho de arte, fotografia e som), impulsionados por uma indignação, mesmo que bem humorada, que Adirley Queirós constrói seu ótimo cinema político, para além do documentário ou da ficção, se afirmando, após a exibição de seu novo filme, como um dos mais importantes cineastas brasileiros contemporâneos.
Trilogia do Cárcere – Aly Muritiba
Após trabalhar durante sete anos em um presídio em Curitiba e estudar cinema, Aly Muritiba decidiu fazer filmes sobre o sistema penitenciário, considerando que após sua experiência poderia apresentar uma visão diferente do que é comumente mostrado pelo cinema nacional, já que teve a oportunidade de conhecer de dentro como funciona o sistema. Desta forma, Aly Muritiba realizou a Trilogia do Cárcere, composta por dois curtas-metragens e um longa, este último exibido na mostra transições em Tiradentes.
A Fábrica (2011) e Pátio (2013) são os dois curtas da trilogia. Enquanto o primeiro narra uma história num dia de visita, envolvendo a família do presidiário, o segundo se concentra apenas nos presos, enquanto estes estão no pátio, espaço mais perto da liberdade dentro da prisão. A história em A Fábrica é narrada principalmente através das imagens, haja vista os poucos diálogos no filme, e é através delas que, apesar das ações calmas, Aly consegue criar um clima tenso durante todo o filme. Em Pátio a narrativa se da através do som, numa conversa que conduz o curta em três momentos, tendo como assunto principal a liberdade. Junto com os diálogos, vemos através das grades as diversas atividades realizadas no pátio. O curta é composto por esse único plano estático, com exceção de uma rápida cena final, onde as grades também estão presentes na frente da câmera. Assim o espectador é colocado atrás das grades para observar os presos, mas é o trabalho de som o essencial no filme, tratando dos anseios daquelas pessoas. Ambos os filmes trazem uma abordagem humanista dos presidiários e A Fábrica é fatal nisso, com um final no mínimo surpreendente que explica o título do filme.
A Gente (2013) é o longa e terceiro filme da trilogia. Após tratar da família e dos presos, agora Aly Muritiba se concentra na figura dos agentes penitenciários, trazendo no título um trocadilho com a palavra. O longa acompanha Jeferson Walkiu, um agente que assume o comando de uma das equipes da prisão. Walkiu é mostrado também fora do trabalho, em sua vida religiosa, onde atua como pastor. O filme apresenta, portanto, a visão dos agentes e a dinâmica do trabalho, incluindo problemas que em sua maioria não dizem respeito aos presidiários e sim à uma instância burocrática. É justamente essa burocracia e os consequentes problemas de administração que o filme mais evidencia, e é ela que se torna um entrave à filosofia que Walkiu tenta aplicar. Assim, o vemos na primeira cena do filme com um discurso esperançoso e empenhado e na última certamente decepcionado, deixando para outro realizar o trabalho que ele não vê perspectivas de conduzir.
A condição de ex-agente naquele presídio é essencial para a abordagem de Aly Muritiba, não só pelo conhecimento de tudo aquilo que ele quer mostrar, mas por facilitar a aproximação e a fluidez nas filmagens. O filme tem uma estética bastante crua, acompanhando os agentes em suas atividades e utilizando apenas os sons ambientes. Essa estética se contrapõe em uma única cena, quando em um close de Walkiu há junto uma trilha sonora que ressalta a expressão do personagem. No geral, a câmera é como mais um daqueles agentes e está ali quieta observando eles, justamente como o cineasta atrás dela.
Aly Muritiba conseguiu em sua Trilogia do Cárcere reunir uma experiência particular e um conhecimento privilegiado com um ótimo trabalho técnico, construindo três excelentes filmes que fazem um panorama do sistema carcerário, se aprofundando nas pessoas vítimas desse contexto.
*O curta-metragem A Fábrica pode ser assistido aqui.
Luiz Rosemberg Filho e Andrea Tonacci
A 17ª Mostra de Cinema de Tiradentes proporcionou um encontro histórico ao reunir Luiz Rosemberg Filho e Andrea Tonacci para um seminário, que a partir do tema principal da Mostra – os processos criativos – deu a oportunidade desses dois cineastas discorrerem não só sobre seus processos criativos, mas sobre suas ideias de cinema e de vida, algo que certamente ficará marcado na vida cinematográfica de todos presentes. Até eu, que tive a oportunidade de ouvir os dois falarem antes mesmo de conhecer suas obras, fiz questão de aplaudir de pé junto com todos ao final do encontro, tamanha a aula que tinha acabado de presenciar.
A questão principal para os dois é que o cinema não é só uma forma de arte, ou de expressão, mas sim uma forma de vida. Mas no sentido mais profundo dessa expressão que pode estar banalizada, pois é através do cinema que os dois se entendem como seres humanos, é uma relação mútua, num processo muito menos técnico do que pessoal.
Andrea Tonacci falou com a voz calma, bastante reflexiva, fazendo pausas e às vezes achando que não estava falando exatamente o que deveria. A primeira ideia que ele apresentou e que resume bem sua forma de lidar com o cinema, foi ao dizer: “não sei o que é o filme, o filme que diz quem eu sou, é o que eu faço que revela o que eu sinto”, mais tarde enfatizou: “não é o que eu quero, mas o que o filme quer de mim”. Andrea discorreu sobre essa relação direta entre o cinema e a vida e apresentou um pouco dos seus métodos que a certa altura resumiu: “o método é o afeto”. Para ele, o que interessa não é um tema interessante para contar uma história, mas sim algo onde se possa aprofundar o sentimento. Da mesma forma, o momento da filmagem é onde deve-se esquecer de vez a categoria de cineasta, ali deve estar presente o ser humano, em um estado de relaxamento e aceitação, sensível, pois o importante é como a situação se apresenta para ser filmada e não uma definição anterior de como será filmada a situação. Isso culmina no desejo de encontrar um modo de filmar que seja revelador do sentimento e não simplesmente da intenção de representar. Tonacci contou uma história de como descobriu a forma de filmar uma cena em Serras da Desordem (2006), um exemplo magnífico do que ele vinha falando. Abaixo segue o áudio dessa fala de Tonacci.
Os dois chamaram atenção em mais de um momento para a atividade além do cineasta. Como Andrea disse, se no momento da filmagem você assume esse papel, estará apenas aplicando fórmulas, é preciso estar sensível como ser humano, e não atuando como um profissional. Luiz Rosemberg Filho chamou atenção para isso ao falar em respeito com o ser humano, independente do cineasta, quando mostrou sua indignação para o fato de muitos terem milhões para fazerem “merdas” e outras pessoas terem que trabalhar no sacrifício, sem dinheiro para pagar bem sua equipe. Rosemberg falava mais rápido, transitando por várias ideias e seu engajamento político ficava claro em suas palavras. Ele ressaltou os três pilares deixados pela Ditadura Militar, que hoje são um entrave ao cinema brasileiro: a defesa dos interesses econômicos das mídias, a burocracia e a televisão. Questionando sobre a garantia de exibição de alguns filmes, confessou que não há forças para lutar contra organizações que lutam para que não haja um cinema de linguagem, experimental, de poesia, de afeto, e querem ao invés disso o espetáculo. Depois lembrou do passado, dizendo que essas relações de hoje deveriam mudar um pouco e ter o que se tinha nos anos 70: “a gente chegava pro Roberto Farias e dizia que ele era um bom filho da puta”. Falando mais especificamente sobre o processo criativo, Rosemberg explicou: “o processo de descoberta de um filme é uma viagem de ácido, você vai, vai, vai e quando você vê, você encontra e quando você encontra é o gozo”.
Os filmes exibidos em Tiradentes foram Linguagem, de Rosemberg, e Já Visto Jamais Visto, de Tonacci. Os dois filmes, assim como toda a ideia de cinema que os dois nos apresentaram, são muito pessoais. O de Rosemberg foi um curta-metragem feito em casa, através de um painel em que ele colava fotos e gravuras durante anos. A partir disso, uma forte carga política é inserida no curta. Como Rosemberg chamou atenção, o filme é uma experiência, uma provocação, e não cabe a ele falar sobre o filme. O espectador tem que descobrir e tem o direito de não gostar, mas apesar disso, o filme pode trazer reflexões. O filme de Tonacci é um média-metragem que trabalha com imagens pessoais gravadas há 50 anos, as mais novas há 20. Ele utiliza imagens tanto dele quando criança, quanto de seu filho, e trabalha também com filmes seus inacabados, construindo assim uma obra através da montagem.
Como disse Rosemberg no seminário, “fazer cinema é um acúmulo de conhecimento, uma experiência de vida”. Os dois filmes, portanto, são muito pessoais e mostram a força desses dois homens que acabam de chegar na casa dos 70 anos.