Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais alto que pode obrar alguém da humanidade.
Fernando Pessoa
Com frequência, quando se pensa em mito e em mitologia, nos vem à mente a definição de uma narrativa ficcional ou fantástica, onde o elemento da fantasia imprimiria aos mitos um caráter de relato não-verdadeira, definido sempre por oposição às narrativas histórico-científicas. Assim, quando se estuda, por exemplo, os diálogos Timeu e o Crítias de Platão, obras onde o filósofo forjara a história arcaica de Atenas, referimo-nos a ela como uma história mítica. A história de Atenas, segundo Platão, diz de sua ascendência da mítica cidade de Atlântida. Mítica porque não há quaisquer evidências arqueológicas ou historiográficas (fora Platão) de que a tal cidade tenha, de fato, existido.
Mas não nos interessa, no âmbito deste texto, discutir se Atlântida realmente existiu. Tampouco importa, de modo exclusivo, a relação de Platão com os mitos. Antes, visamos à relação entre mito e literatura, ou mais especificamente, entre mito e poesia. Qual o lugar dos mitos nas sociedades contemporâneas? Há lugar? Supondo que podemos responder às questões de modo afirmativo, que relação haveria entre os mitos e o gênero poético? Como se pode observar, nenhuma destas perguntas oferece resposta fácil e simplista. O modo de resposta exigido pelas grandes perguntas humanas é o da circunave gação, um périplo em torno ao questionado.
Antes de chegarmos à função dos mitos na vida atual, precisamos pensar em qual é a função dos mitos e das mitologias de modo geral. A possibilidade da análise estrutural dos mitos é tributária do russo Vladmir Propp. Em 1928, Propp publicava a Morfologia do Conto Maravilhoso, obra onde expôs que a despeito da diversidade de relatos e de personagens, há certas estruturas invariantes nas fábulas, nos contos, nas lendas e nos mitos, estruturas essas que denominou de funções. Ao todo, Propp foi capaz de identificar 31 funções. Se nem todas as funções estão presentes em todos os mitos, todos os mitos contém um número elementar de funções. Seu trabalho foi de suma importância para estudos subsequentes tais como os de Tzvetan Todorov, Claude Lévi-Strauss, Roman Jakobson, Roland Barthes, Ferdinand de Saussure, Haroldo de Campos, e tantos outros.¹
Um desses outros, Joseph Campbell, renomado professor e mitologista estadunidense, afirma que “a primeira função de uma mitologia viva é conciliar a consciência com as precondições de sua própria existência – quer dizer, com a natureza da vida”. Qual é, pois, a natureza da vida? Por mais distintas que sejam as sociedades humanas, por mais afastadas que estejam no espaço e no tempo, todas, rigorosamente todas partilham desta única e mesma precondição da existência, a saber, de que não há vida sem morte. Que a vida vive da morte, e a morte só mata na e pela vida, é uma condição inalienável da existência. Toda e qualquer experiência humana em um determinado espaço e tempo conheceu e conhece esta lei. Por isso, a primeira função de uma mitologia é reconciliar a consciência do homem com o fato de que, um dia, ele irá morrer.
Entretanto, ao contrário de nós hoje, os mitos e lendas arcaicos jamais encararam a morte sob o ponto de vista negativo. Reconciliar a consciência com a natureza da vida dizia de aceitar a vida tal como ela é, alimentada pela morte. Podemos observar este aspecto, por exemplo, na longa e riquíssima coleção do início do século XX, a Mitologia de Todas as Raças. Organizada em 13 volumes, encontram-se nela as mitologias de gregos e romanos; de teutônicos, celtas e eslavos; de húngaros e sibérios; de semitas, indianos e iranianos; de armênios e africanos; de chineses e japoneses; de americanos do norte e do sul; e de oceânicos e egípcios. Não há indícios no pensamento arcaico de que a morte tenha sido vista sob o aspecto negativo. E tanto não há que muitas sociedades primitivas organizavam festivais de canibalismo, onde o sacrifício ritualístico e a ingestão do sacrificado simbolizavam a aquisição de certas forças e poderes, um benefício, i.e., algo extremamente positivo não só para a vida individual, mas também para a vida em comum.
Assim, a função primordial dos mitos não exprime uma reconciliação com a morte sob o intuito de negá-la, tal como nós fazemos hoje. Se, para nós, é fato que em um futuro próximo morreremos, também parece ser um fato que nos dias atuais tentamos nos afastar ao máximo da morte pelo prolongamento desmedido da vida. Dito de modo mais enfático, tentamos extirpar a morte da vida. Já as primeiras ordens mitológicas, diz Campbell, “são afirmativas, acolhem a vida como ela é”. Somente por volta do século VIII a.C. ocorreu algo como uma inversão desta perspectiva. E é partir daí que surgiram o que se poderia chamar de ordens mitológicas de retiro, de recusa e de renúncia, ou seja, de negação da vida tal como ela é.
São exemplos deste novo modo de viver o Jainismo e o Zoroastrismo. O Jainismo e sua filosofia de não-violência exprimem o caráter negativo da vida pela via da recusa e da renúncia, pois o jainista recusa-se a fazer mal a qualquer forma de vida, seja por pensamentos, por palavras, ou pela ação de não comer outros seres vivos. Pela recusa à violência, renuncia-se a comer qualquer coisa que esteja viva, seja um animal, um fruto, ou um derivado, tal como o leite, por exemplo. O Zoroastrismo, por seu turno, afirma Ahura Mazda, o Senhor Sábio ou Senhor da Luz e da Verdade, como o criador do mundo, o elemento positivo da realidade; e Angra Mainyu seria o Senhor do Engano e da Destruição, o elemento negativo. Ao escolher o caminho do Bem e da Luz, renegando o engano e a destruição, o homem pode atuar na realidade, i.e., pode provocar uma mudança pela sua atividade. Lembremos, pois, do Zaratustra de Nietzsche, onde Zaratustra, aos 30 anos de vida, resolve retirar-se às montanhas.
O que nos interessa aqui é reconhecer e interligar dois aspectos: o primeiro é que tanto no Jainismo quanto no Zoroastrismo, a afirmação da vida, o dizer sim à vida é sustentado por uma negação. O segundo, decorrente do primeiro, diz da inversão que outrora falávamos. A partir de fins do século VIII a.C., a reconciliação da existência com a vida tal como ela é, o que inclui a morte, passou a ser feita pela via da negação, ou seja, afirma-se a vida mas pelo reconhecimento de que ela não é como poderia ou como deveria ser. Por isso a exigência da recusa, da renúncia ou da retirada, caminhos pelos quais a vida viria a ser mais vívida.
Mas a reconciliação não é a única função destes conjuntos de imagens que chamamos de mitologia. Campbell aponta pelo menos outras três funções, intrínsecas à primeira. Essas seriam: 1) a função cosmológica, responsável por “apresentar uma imagem do cosmos, uma imagem do universo que nos cerca, que conserve e induza uma sensação de assombro” ; 2) a função sociológica, que teria por finalidade “validar e preservar um conjunto comum daquilo que se considera certo e errado, propriedades e impropriedades, no qual esteja apoiada nossa unidade particular”; e por último, mas não menos importante, dado que todas estas funções colaboram entre si, viria a 3) função psicológica, responsável por “fazer o indivíduo atravessar as etapas da vida, do nascimento à maturidade, depois à senilidade e à morte”.
Como observamos todas estas três funções ligam-se à primeira, i.e., à reconciliação da consciência individual-social com a morte. Segundo Campbell:
a mitologia deve fazer o indivíduo atravessar as etapas de vida (função psicológica) em comum acordo com a ordem social do grupo desse indivíduo (função sociológica), em comum acordo com o cosmos (função cosmológica) – conforme o grupo o defina – e em comum acordo com o mistério estupendo (função existencial-natural).
Por intermédio de suas imagens e, por conseguinte, pela criação de um significado para a existência, os mitos e as mitologias promovem algo como a ontogênese do homem, i.e., elas incitam o nascimento de indivíduos e povos para a natureza da vida outorgando-lhes a possibilidade da criação de um sentido para o viver. A filosofia, sob este aspecto, não parece ser muito diferente de outra mitologia qualquer. Comentando este ponto, o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro respondeu, em uma entrevista, que considerava como “mitologia filosófica, a mitologia que deu origem à filosofia: os mito-filosofemas do contínuo e do discreto, dos intervalos e do movimento, do número e do ritmo, do um e do múltiplo, da medida e do logos, do ser e do nada”.
Temas integralmente presentes, por exemplo, nos diálogos de Platão. Ao criticar a obra de seu antigo professor, Aristóteles escreveu na Metafísica que “quem experimenta uma sensação de aporia e de admiração reconhece que não sabe; e é por isso que também aquele que ama o mito (philómythos) é, de certo modo, filósofo (philósophós): o mito, com efeito, é constituído por um conjunto de coisas admiráveis”. Em conversa com Teeteto a respeito de uma afirmação de Protágoras, no diálogo homônimo Teeteto, Sócrates disse ao amigo que Teodoro parece ter adivinhado corretamente a natureza do filósofo. Lemos:
Teeteto: – Pelos deuses, Sócrates, como me espanto muitíssimo com o facto de ser assim e, por vezes, quando verdadeiramente olho para isso, fico tonto.
Sócrates: – Efectivamente, meu amigo, Teodoro parece não ter adivinhado mal a tua natureza. Pois o que estás a passar, o maravilhar-te, é mais de um filósofo. De facto, não há outro princípio da filosofia que não este, e parece que aquele que disse que Íris é filha de Taumanto não fez mal a genealogia.
Sócrates, Platão e Aristóteles, a trindade genealógica da filosofia, igualmente reconheceram o thauma, a sensação de espanto e maravilhamento, tanto como o elemento essencial do filósofo, quanto como o fundamento da filosofia. Não obstante, se propuséssemos uma leitura conjunta entre os diálogos platônicos da República, das Leis e do Timeu, por exemplo, poderíamos observar todas às quatro funções de uma mitologia viva.
Na República, a função psicológica e a sociológica com os ensinamentos socráticos sobre como harmonizar a alma de cada cidadão de acordo com sua posição na ordem da polis, e como essa harmonização corresponderia aos tipos de Estados possíveis. Questão que translada para o diálogo Leis onde, para cada Estado, deveria haver uma constituição própria. Já no Timeu, obra destinada a tratar da origem do mundo até a natureza do homem, diálogo que retoma, não por acaso, a República e a discussão relativa ao Estado – estabelecendo um contínuo entre todas as funções -, observamos a função existencial-natural e a cosmológica. Platão nos apresenta um mundo como “imagem de algo”, como “imagem móvel da eternidade”, pois vem a ser por intermédio de um Demiurgo que “põe os olhos no que é imutável e que o utiliza como arquétipo”.
Se, de modo muito geral, podemos dizer junto a Campbell, que “uma ordem mitológica é um conjunto de imagens que dá à consciência um significado na existência”, então não há distância, a princípio, entre a filosofia e uma mitologia qualquer. Mas, por outro lado, há diferença, e tanto há que as nomeamos de modos distintos. De um lado a filosofia, do outro, a mitologia. Em que consiste esta distinção? E mais uma vez os diálogos platônicos podem nos servir de exemplo. A diferença reside no tratamento, i.e., no modo como estas funções são apresentadas aos indivíduos e os povos, ou às sociedades.
Talvez pudéssemos dizer que os diálogos platônicos tratam de tudo, ou seja, de temas relativos à educação da alma, à moral, à constituição da polis, à possibilidade do conhecimento, à constituição do cosmos, etc. Entretanto, como fazem isso? Se os diálogos abordam um impressionante espectro de temas relativos à vida, estes temas são centrados e concentrados neste ou naquele diálogo. Temos, deste modo, o diálogo Laques e o tema relativo à coragem; o diálogo Cármides e a temperança; o Lísis e a amizade; o Mênon e a virtude; o Hípias Maior e o belo; o Eutífron e a piedade; o Fedro e o amor; a Apologia de Sócrates, o Críton, e o Fédon, e a morte; o Hípias Menor e o Sofista e a falsidade; o Górgias e o Protágoras e a retórica; o Crátilo e os nomes; o Teeteto e o conhecimento; o Parmênides e o Ser e Não-Ser; o Filebo e a dor e o prazer; etc.
Que ocorre no espaço de transição, na passagem do pensamento mítico ao pensamento filosófico-lógico, i.e., empírico? Ocorre o distanciamento e, consequentemente, a gradativa separação das funções. Se nos poemas homéricos e hesiódicos, datados entre o século VIII a.C. e o séc. VI a.C., o caráter dos homens, dos heróis e dos deuses (função psicológica) são capazes de informar uma figura de sociedade (função sociológica) na qual se pode entrever uma imagem cósmica da realidade (função cosmológica), imagem essa que produz e sustenta a existência humana assombrada e maravilhada ante a vida (função existencial-natural), o mesmo não acontece com o pensamento filosófico.
No livro IV das Memoráveis, Xenofonte nos conta a respeito da vida de Sócrates. Diz:
De facto, Sócrates era tão útil em todas as ocasiões e em todas as circunstâncias, que para qualquer observador de sensibilidade razoável era evidente que não havia nada de mais proveitoso que juntar-se a Sócrates e passar com ele o tempo, em qualquer parte e em qualquer ocasião. Até mesmo a sua lembrança, quando ele não estava presente, não era de pouca utilidade para os que costumavam acompanhá-lo e aprender com ele; e não eram menores os benefícios que trazia aos que conviviam com ele quando gracejava do que quando discorria de modo sério.
Em que consistia a referida utilidade de Sócrates e de sua lembrança? O filólogo Bruno Snell nos diz que “o pensamento do útil só pode adquirir um certo sentido moral e mesmo filosófico quando se considera o útil em relação a um tempo oportuno”. Sócrates era útil porque ensinava a cada um, de modo individual, a harmonizar-se com a realidade vigente, e por isso congregava em si três “impulsos motores da ação: a consecução do útil, a busca da felicidade, e o desenvolvimento da capacidade e do valor individual”. Como se dava essa harmonização ou psicoterapêutica? Platão nos responde por intermédio de seus diálogos: dava-se pela pergunta o que é…? (tí estín). Ao interrogar seus interlocutores a respeito do “que” das coisas, Sócrates expunha que eles ignoravam aquilo que, a princípio, afirmavam saber. O estado aporético, por seu turno, instalava a necessidade do contínuo desenvolvimento da capacidade individual, desenvolvimento esse que seria responsável por garantir a vida feliz não só do indivíduo, porém da cidade inteira.
Mas este método de condução do indivíduo à harmonia entre ele e seu grupo social, tinha outro aspecto que, para nós, é bastante significativo. Xenofonte continua seu relato a respeito de Sócrates e nos conta uma história supostamente ocorrida entre ele e Hípias. Relata que:
Tendo regressado a Atenas, depois de uma longa ausência, Hípias encontrou-se com Sócrates quando este dizia a alguns como era espantoso que se alguém quisesse ensinar outro a ser sapateiro, carpinteiro, ferreiro ou cavaleiro, não teria qualquer dificuldade em saber para onde o mandar a fim de atingir tal propósito – alguns dizem até que se alguém quisesse tornar justo um cavalo ou um boi teria muito quem os ensinasse. Agora, se alguém quisesse aprender, ele próprio, a ser justo ou ensiná-lo a um filho ou a um criado, não saberia onde ir para conseguir.
Hípias, ouvindo estas palavras, disse enquanto ria:
– Não me digas, Sócrates, que continuas a dizer as mesas coisas que eu já te ouvi dizer há muito tempo atrás?
– Claro, Hípias, e o que ainda é mais espantoso é que não só digo as mesmas coisas de sempre, como também continuo a falar dos mesmos assuntos. Tu, provavelmente, como és sábio em tanta coisa, nunca dizes as mesmas coisas sobre os mesmos assuntos”.
Como sabido, o pensamento filosófico, a partir de Sócrates, Platão, e Aristóteles, fundou-se em contraposição às retóricas e as sofísticas. Em vista disso, nasce junto à investigação socrática a necessidade de que o pensamento investigue não só um assunto por vez, como volte a esse assunto recorrentemente. Por que? Porque embora a investigação conduzida pela pergunta “o que é” necessariamente levasse o interlocutor a uma aporia, i.e., à uma situação aparentemente sem saída onde o não-saber seria manifesto, essa manifestação só era possível porque Sócrates identificava uma coisa somente com ela mesma. Assim, a resposta à pergunta “o que é um sapato?”, jamais seria obtida pelo modo como o sapato é confeccionado, tampouco com que tipo de material é feito, etc. Sócrates deseja saber o que algo é independentemente de suas relações, i.e., o que algo é essencialmente, em si e por si. Para nós, no âmbito deste texto, importa notar que, quando isso acontece, algo no mundo já aconteceu.
Se interpretamos Sócrates não como um indivíduo, mas como uma figura, i.e., como um símbolo indicativo de seu tempo, então podemos dizer que, com o aparecimento de Sócrates, uma guinada acontece no pensamento da humanidade. Esta guinada diz de uma primeira fratura explícita entre as quatro funções que outrora expusemos. Por se definir em contra posição aos retóricos e aos sofistas, polímatas, Sócrates instala uma necessidade para o pensamento filosófico de, a cada vez, centrar-se apenas em um único assunto, de um único e mesmo modo. Modo esse que poderia abarcar todas as coisas, pois afinal pode-se perguntar “o que é” para todo e qualquer ente. Mas a pergunta permanece, fixa e fixada.
Fixada, ela nos diz implicitamente, na negação das retóricas e das sofísticas, que só há um único modo de chegar a conhecer a essência das coisas, um único e mesmo modo capaz de revelar da essência de uma gota d’água ao mistério supremo da constituição do mundo. Modo esse que, para chegar ao seu fim, termina por disjuntar o tecido da realidade. Afinal, “o que é o sapato?” não se responde pelo “o que é a camurça do sapato?”, responde-se exclusivamente pela essência do sapato. A essência da camurça é, como diríamos, outra história. A vereda aberta pelo pensamento socrático preparou a história humana para uma profunda separação entre as funções. Separa para unir, onde a re-união seria, justamente, a tarefa do homem que pode atuar, que pode intervir na realidade vigente (herança insuspeitada do Zoroastrismo).
Platão já nos dava indícios desta separação. No diálogo Timeu, por exemplo, não é o personagem de Sócrates quem discorre a respeito da formação do cosmos e do homem, é Timeu, aquele que, segundo o próprio Sócrates, “alcançou o ponto mais alto de toda a filosofia”. Para Sócrates, no âmbito do diálogo, coube a lembrança dos assuntos discutidos no dia anterior, temas relativos à moral dos homens e ao Estado. Assim, a própria constituição dos diálogos platônicos pode nos informar a respeito desta nova disposição do pensamento em relação à realidade. Cada personagem trata de um tema específico, de modo específico, de acordo com o interlocutor. Por isso, embora o espectro dos assuntos, na totalidade dos diálogos, seja vastíssimo, cada assunto é trabalhado sempre segundo esta regra, que posteriormente seria convertida, com Aristóteles, em regra retórica: quem fala, o que é falado, e o para quem é falado, precisam estar em consonância.
Por este motivo outrora dissemos que para observar a presença ativa das quatro funções, não bastava apenas uma única obra de Platão, mas pelo menos duas ou três, e não quaisquer umas delas, escolhidas de modo aleatório. Antes, duas ou três que façam convergir e circular entre si as funções. Com Aristóteles, o fosso da separação é ampliado. Basta que pensemos na configuração de sua obra, onde cada parte da realidade encontra um lugar de discussão específico, num escrito específico. Assim temos: a Física, a Ética, a Política, a Parte dos Animais, o Sobre o Céu, a Retórica, a Poética, a Metafísica, o Da Alma, etc.
A lógica e seus princípios, sob este prisma, não surgem de alguma abstração, ao contrário, surgem da realidade vital e vigente e de como percebemos esta realidade. Os princípios lógicos de identidade, de não contradição e de terceiro excluso, têm suas raízes enterradas neste movimento espiritual do homem. Do diálogo Parmênides de Platão, à Metafísica de Aristóteles, o que está em jogo é a fórmula da identidade: A = A. Ou seja: A é exclusivamente igual a A, donde todo A é somente A. E sua consequência negativa: A não é não-A. Assim, cada ente do e no mundo encontra seu espaço exclusivo e excludente de toda a realidade adjacente. E aqui podemos notar algo bastante curioso. O princípio da identidade não trata, propriamente, de identificação, mas antes de relacionamento. A coisa A, o ente A, não pode ser identificado com nada diferente dele, A somente pode ser identificado com A. Com B, C, D e E, a coisa A pode, apenas, ser relacionada.
A metafísica instala no pensamento humano uma espécie de clausura inexistente no pensamento arcaico. No vigésimo canto da Ilíada, nos versos 159 a 166, traduzidos por Haroldo de Campos, lemos:
No miolo dos heróis, os mais bravos, Eneias
e Aquiles, ansiando ambos por bater-se, encontram-se.
Eneias é quem primeiro avança, meneando o elmo
sólido, ameaçador; diante do peito soergue
o escudo resistente, e brande a lança brônzea.
Contra ele se levanta Aquiles feito leão
predador, a quem todos desejam ver morto,
toda uma grei.
Quando Homero nos fala que Aquiles, feito um leão, se atira contra Eneias, não há aqui um relacionamento figurativo, há uma identificação. Homero identifica o impulso que age em um leão como o mesmo que levou Aquiles a atirar-se contra Eneias. É deste modo que Snell nos diz que:
De fato, é o mesmo impulso que age, tanto no leão quanto no guerreiro: ménos. O leão é, nos tempos de Homero, o animal do potente ménos (o impulso de avançar). Os animais dos símiles homéricos não são apenas símbolos, são os portadores específicos das diversas forças vitais e, como tais, por toda a parte com eles deparamos nas artes plásticas do século VII.
Aquiles e um leão podem ser identificados realmente, não apenas comparados e relacionados de modo figurativo ou simbólico, e podem porque essas forças vitais ou elementares ainda não tinham assumido, como toda a realidade, um espaço único e exclusivo de atuação. Dois exemplos encontrados em Platão podem nos ajudar a compreender este ponto. O primeiro advém do diálogo Parmênides, onde Zenão diz a Sócrates: “[…] Por certo, à maneira dos cães da Lacônia, bem persegues e traqueias o que foi dito”. O segundo é encontrado no diálogo Mênon, onde Mênon diz:
Sócrates, mesmo antes de estabelecer relações contigo, já ouvia <dizer> que nada fazes senão caíres em aporia, e levares também outros a cair em aporia. E agora, está-me parecendo, me enfeitiças e drogas, e me tens simplesmente sob completo encanto, de tal modo que me encontro repleto de aporia. E, se também é permitida uma pequena troça, tu me pareces, inteiramente, ser semelhante, a mais não poder, tanto pelo aspecto como pelo mais, à raia elétrica, aquele peixe marinho achatado. Pois tanto ela entorpece quem dela se aproxima e a toca, quanto tu pareces ter-me feito agora algo desse tipo. Pois verdadeiramente eu, de minha parte, estou entorpecido, na alma e na boca, e não sei o que te responder.
Em ambos os casos, as expressões “à maneira de” e “ser semelhante a”, dão o tom de uma relação, não de uma identificação. Ao fazer com que os interlocutores de Sócrates o comparem tanto a um cão, quanto a raia elétrica, Platão não intenta dizer que Sócrates é um cão, ou é uma raia de modo literal, i.e., real. Em ambos os diálogos o que se busca é fazer aparecer a diferença específica de Sócrates. Ele é tal como um cão, ou ele é tal como uma raia, diz de determinadas qualidades de Sócrates que podem ser observadas neste ou naquele contexto. Sócrates é única e exclusivamente Sócrates, mas segundo este ou aquele diálogo, esta ou aquela qualidade emerge. Para Homero, a essência de Aquiles poderia, por via da ação, ser identificada como sendo a mesma do leão. Para Platão, não é a essência de Sócrates que pode ser identificada com um cão ou com uma raia, pois a essência de Sócrates é única e exclusiva de Sócrates. O que pode ser relacionado são qualidades, são aspectos, i.e., são predicados.
Do mesmo modo, o princípio lógico da identidade não identifica o ente A ao ente B, ou ao ente C. O ente A não se identifica, i.e., não compartilha da mesma essência do ente B. Com o ente B, o ente A estabelece uma relação, o que há é um relacionamento entre as propriedades de ambos, entre os predicados, i.e., entre o que se pode dizer de um e de outro. O que importa reter, desta longa e complexa discussão, é que o Cristianismo, a doutrina que termina por cristalizar a distância entre as funções, se funda sobre estes mesmos princípios lógicos.
Em João 10:30, Jesus diz: “Eu e o Pai somos um (εγω και ο πατηρ εν εσμεν)”. Após esta afirmação de Jesus, João narra que os Judeus pegaram pedras para atirar nele. Quando interrogados por Jesus sobre os motivos que os levaram a tal ato, relataram, em João 10:34: “Nós te apedrejamos, não por uma obra excelente, mas por blasfêmia, sim, porque tu, embora sejas um homem, te fazes um deus”. Como se observa, a condenação de Jesus por blasfêmia é sustentada pelo princípio lógico da identidade. Deste modo, a essência de Jesus jamais poderia ser identificada com a essência do Pai, pois Jesus é somente Jesus, um homem, e Deus é somente Deus, divino. O que poderia haver entre ambos é um modo de relacionamento, modo esse que foi amplamente discutido no Concílio de Nicéia, em 325 d.C., onde as questões cristológicas versavam, justamente, sobre a lógica da natureza de Jesus.
Se com Platão e Aristóteles, o hiato forjado entre as funções ocorrera mais em relação ao espaço específico de discussão, i.e., cada texto travava, de modo geral, sobre um assunto específico (ainda que esse tema envolvesse e trouxesse para próximo de si muitos outros), com o advento do cristianismo a separação ocorre por ramo do conhecimento, algo que nós hoje chamamos de disciplina. Após a conversão de Constantino e o Édito de Tessalônica, decretado por Teodósio I, ambos no século IV d.C., o cristianismo passou a ser a religião oficial do império romano. Como religião oficial, passou a ser, também, política e universal. É este o sentido das palavras do apóstolo Paulo aos habitantes de Filipos, em Filipênses 2:11: “e toda língua reconheça abertamente que Jesus Cristo é Senhor, para a glória de Deus, o Pai”. Se a religião judaica ou maometana são religiões para o povo judeu e para o povo mulçumano, a pretensão do cristianismo é a de ser uma religião universal. E não apenas uma religião universal dentre muitas, mas a única religião, porque a única verdadeira.
Como podemos observar, a dinâmica do rito cristão seguiu quase que inteiramente o movimento do pensamento filosófico implantado por Sócrates, Platão e Aristóteles. Se a essência é una e única, o deus cristão seria afirmado, igualmente, como uno e único. Questão que, como vimos, foi de importância tal que terminou com a condenação e morte de Jesus. A partir deste momento na história, o cristianismo assumiu, por assim dizer, o controle das funções cosmológica e sociológica. No passado arcaico da Grécia tínhamos a Teogonia de Hesíodo, por exemplo, como imagem da configuração dos deuses e do mundo, imagem essa que foi sucedida pelo Timeu de Platão. O relato do Timeu, por sua vez, foi sucedido pelo do Gênesis, o livro da criação.
Esse movimento não quer dizer, de forma alguma, que esses textos vão perdendo sua validade ao longo da história, porém deseja expor como ocorreu, de modo gradual, o afastamento entre cada função. A apresentação da imagem do cosmos passou dos mitos e poemas para o pensamento filosófico-racional e, finalmente, para o âmbito teológico. Se o Deus único criou o mundo e os homens, então também há apenas um único modo de viver. Em um único e mesmo lance, na aliança entre cristianismo e império, subsumiu-se as funções cosmológica e sociológica. Mas a teologia cristã não herdou da filosofia apenas o seu modo de ser. Com o modo de ser herda-se, também, o modelo dos ritos.
Do mesmo modo que o acesso à verdade seria garantido pela filosofia, o acesso a Deus, igualmente nomeado de Verdade em João 14:6, seria assegurado pela igreja católica. Se nenhum homem, ente ou qualquer coisa se identifica com a Ideia, mas somente pode se relacionar com ela segundo o caminho aberto por Sócrates e Platão, então também nenhum fiel, nem mesmo o Filho, pode ser identificado a Deus. Por isso, assim como a filosofia tornou-se o caminho pelo qual cada ser humano poderia contemplar a verdade da Ideia, a igreja cristã torna-se o caminho pelo qual o fiel pode manter um relacionamento verdadeiro com Deus. Em ambos os casos não há possibilidade de acesso direto, imediato. O que há, por assim dizer, são instituições que nos apresentam determinadas imagens, e explicações a respeito dessas imagens, i.e., explicações institucionais servem para mediar a função cosmológica e a sociológica, que são úteis para nos manter devotados, i.e., obedientes aos preceitos cósmicos, filosóficos, teológicos, e sociais vigentes.
O movimento que as páginas deste texto tentaram elucidar, até aqui, produziu uma nova figura de si ao longo dos séculos XVII, XVIII, e XIX, com a chamada secularização.
Notas
¹Cabe rememorar, entretanto, que talvez Aristóteles já tivesse feito algo semelhante na Arte Poética e na Retórica. Na Poética, texto “seminal de nossa compreensão da literatura e da arte”, não se pode descartar, segundo os tradutores Antônio Mattoso e Antônio Queirós, que ela também seja “um manual de bem compor o mythos trágico”. Já a Retórica, um manual a respeito dos gêneros prosaicos, a saber, o judicial ou forense; o deliberativo ou político; e o demonstrativo ou epidíctico. Cf.: BRANDÃO, Jacyntho Lins. A Poética de Aristóteles é uma teoria da literatura? & MATTOSO, Antônio; QUEIROZ, Antônio. Introdução à Arte Poética. In.: Sobre a Arte Poética.
Citações Filosóficas
ARISTÓTELES. Metafísica. §982b.
PLATÃO. Teeteto. §155d.
____. Timeu. §27a.
____. Mênon. §80a-b.
____. Parmênides. §128c.
XENOFONTE. Memoráveis. Livro IV. 1. 1.
Referências Bibliográficas
PESSOA, Fernando. Gênese e Justificação da Heteronímia. In.: Obras Completas em Prosa, volume único.
CAMPBELL, Joseph. A Necessidade de Ritos. In.: Mito e Transformação.
BELAUNDE, Luisa Elvira; CASTRO, Eduardo Viveiros de; LAGROU, Elsje. Do mito grego ao mito ameríndio: uma entrevista sobre Lévi-Strauss com Eduardo Viveiros de Castro. In.: Sociologia & Antropologia, v. 01.02, 2011. pp. 09-33. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/sant/v1n2/2238-3875-sant-01-02-0009.pdf>.
SNELL, Bruno. Máximas de Virtude: Um breve capítulo da ética grega. In.: A Cultura Grega e as Origens do Pensamento Europeu. p. 169.
______Símile, Comparação, Metáfora, Analogia. In. Op. Cit. p. 206.