Congo (1972) é o primeiro filme de Arthur Omar (1948), cineasta, fotógrafo e importante artista brasileiro, de Poços de Caldas/MG. Com esse curta-metragem, Omar inaugura sua trajetória em torno da ideia de um “um filme em branco”, proposta desenvolvida em seu ensaio O anti-documentário, provisoriamente.
Formado em sociologia, Arthur Omar trabalha com diferentes linguagens, como cinema, vídeo, fotografia, instalações, música, poesia, desenho e ainda escreve ensaios e reflexões teóricas sobre arte. Seu primeiro longa-metragem foi Triste Trópico (1974), um documentário experimental que segue a trilha disruptiva inaugurada em Congo. Também realizou vídeos sobre a produção de diversos artistas, como O Nervo de Prata, em 1987, sobre Tunga (1952), e Derrapagem no Éden, em 1997, sobre Cildo Meireles (1948). Publicou os livros de fotografia Antropologia da Face Gloriosa (1998), O Esplendor dos Contrários (2002), Viagem ao Afeganistão (2010), entre outros.
Congo é quase todo construído com letreiros que ocupam o lugar das imagens, descrevendo o que o documentário clássico supostamente deveria narrar, nesse caso, o processo histórico de surgimento das congadas, manifestação cultural e religiosa afro-brasileira. Embaladas por uma trilha sonora instigante, as palavras percorrem o filme construindo um posicionamento crítico diante do olhar colonizador que reduz as práticas populares a simples descrições científicas.
“Todo documentário, por ser, antes de mais nada, um objeto cultural, tem, como questão fundamental de existência, não a cultura que serve de conteúdo para seu exercício, mas a existência como objeto dentro de uma cultura que lhe dá origem. Aí está a formulação do problema que levou CONGO a ser trabalhado.”
Essa postura ousada se desdobra no ensaio, que esclarece desde o título seu caráter provisório. A partir do filme, Omar questiona em sua escrita a posição do cinema diante da realidade, especialmente do gênero que tem a suposta função de documentar uma expressão cultural, sem perceber que também participa dessa cultura.
“A questão de como documentar a realidade brasileira já é uma questão cultural. Ou seja, a questão de como deve ser a nossa cultura. O filme, cada filme concreto, surge como um elemento dessa cultura, uma proposta de solução para os impasses no desenvolvimento dessa cultura.”
Além desse posicionamento crítico e da linguagem disruptiva, Congo representa, acima de tudo, um conceito para buscar a origem das coisas, nas palavras do próprio autor em breve depoimento sobre o filme (abaixo na íntegra), onde ressalta também esse trabalho como um experimento inicial em busca de uma expressão genuína.
“Podemos resumir numa fórmula: a questão do real dentro do cinema é a questão do cinema dentro do real.”
Citações retiradas do ensaio “O anti-documentário, provisoriamente”
A palavra “Congo”, para mim, é um conceito, não um país. Um conceito secreto, só meu, que eu uso para facilitar o processo de pensamento. O local mais confuso da África de hoje me dispara, com seu nome, um cadeia de associações mentais poderosas e, às vezes, até minha postura corporal muda. O Congo das coisas.
Pelo menos uma vez por dia, isto é, quase com a mesma frequência com que rezo a Ave Maria, esta uma outra obsessão minha, eu me lembro da palavra “Congo”, e alguma coisa é qualificada com ela.
Descobrir o Congo de um determinado tema que estou estudando, chegar ao Congo. Congo é para mim, a imagem da origem, ou melhor, de um tempo anterior à origem, quando não se pode mais remontar atrás e as explicações mudam de tom. Tudo tem seu Congo, quando a sua identidade ainda não estava formada, e as forças componentes se entrechocavam, sem ter o que seria o seu futuro pela frente.
Congo é estar na nascente, com as fontes dispersas, antes de se fundirem para formar um rio. Congo é a vida dos elementos, o lugar onde os arquétipos estão separados e podem ter o sentido alterado, os átomos ainda não formaram moléculas. Congo é a reunião das possibilidades, a partir de motores inesperados. Brutal, grave, terrestre, cores primárias, águas profundas, personagens de pedra, os choques.
Quando, por exemplo, escuto um escritor contando como saiu da província, chegou no Rio de Janeiro para tentar a vida, e daí surgiu sua obra, seus encontros, suas idéias, uma biografia, tudo bem explicado, cheio de causas e encadeamentos, ou quando leio sobre o Bispo do Rosário que teria tido uma noite mítica em que recebeu ordens de Deus para realizar uma tarefa, e tudo teria começado ali, não dou o menor crédito a essas histórias. Estão omitindo o Congo dessas trajetórias, está faltando Congo aí.
Talvez jamais se chegue ao Congo. Uso o conceito para entender esse jogo de origens e aludir a algo que não posso conhecer.
Curiosamente, meu primeiro filme, de 1972, se chamou “Congo”. Eu pesquisava sobre Congos e Moçambiques, me apaixonei pelo Congo, o país, terra da mítica rainha Ginga, e fiz um filme experimental todo com letreiros, sem mostrar quase nenhuma imagem. Fico me perguntando por que fiz esse filme. Discussão antropológica, desconstrução da linguagem, desejo de radicalidade absoluta?
Abandonei totalmente essa vertente aberta pelo filme “Congo” e, de alguma forma, ele se tornou o meu próprio Congo.