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O Mercador das Almas

agosto, 2020

Moro em um país pobre e, contudo,
não sou eu o pobre deste país.
Habito a periferia do vasto mundo,
mas não estou na periferia da periferia.
Estou à deriva por alguma margem perdida,
mas não sou eu o marginal do rumo.

Há multidões mais flageladas desta terra.
Filhos incautos da desesperança,
inocentes culpados de sua inocência.
Constituem reserva infernal do exército
dos patrões: joviais, pobres permanentes,
em estado de eterno aguardo por sua vez
ao sol: não passam óleo suave nas costas
e dão testemunho da imobilidade social.

Receio que meu sindicato esteja indo
à galope pelo caminho da derrota.
Se sei dos meus direitos, vejo-os indo
ao longe, distante, em olvido tamponado
da lembrança que eclode em memória
dos anos de luta e alguma glória.
Não são muitas, é verdade, às vezes
lero-lero, mas tampouco dela caçoam
se com muita labuta a verve fala:

é a guerra e os cerrados punhos,
são as tragédias inomináveis, citadinas,
as emulsões do desespero dessa fome
e o compasso da esperança
em reza forte ao santo despedido:
vem, agora, ao seio do Pai
e reconforta este filho teu:
tens a luta, a coragem e a bravura.

Entardeces pelo voar dos anos,
e, encardido, sóis o embotamento oco
deste grande comércio, esta praça
de rara alegria, se crépito mercado
onde as vis trocas metálicas
já encarceram corpos em mercadorias.

Somos escravos, não há dúvida.
E, no entanto, não sou eu o escravizado.
Quanta candura, quanto regozijo
na consciência real da luta de classes.
Luta fratricida do senhor e do escravo
e eu em meu sanguíneo solo latino.
Morte, guerra, fome -- e trabalho, muito trabalho.
São palavras que não rimam
no decair da longa tempestade.
É o caminho retilíneo da nau atravessada,
momento quando corta o atlântico, o oceano,
o périplo marinho do mercador das almas.

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