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Catimbó Zen

julho, 2024

Fabulações sobre a Consciência sem Sujeito: diabruras entre Exu, Rumi, Lévi-Strauss e Foucault

Em “Isso não é um cachimbo” – ensaio para lá de trabalhoso de ler, continuar lendo e apreender o que sejam as tais diabruras entre uma pintura e as escrituras que lhe acompanham – Michel Foucault propõe a existência de uma espécie de tempo-espaço suspenso entre a imagem e a linguagem, ao se debruçar sobre o assunto, a partir de um desenho do pintor belga René Magritte, de 1929, traçando contraposições entre Magritte, Paul Klee e Wassily Kandinsky. Magritte, vai dizer Foucault, diferente de Klee e sua icônica figura “Ângelus Novus”¹, de 1920, por exemplo, faz questão de separar a grafia da plasticidade, escrevendo abaixo do desenho de um cachimbo que aquilo não é um cachimbo. Já o desenho de Klee, que não traz nenhuma inscrição, ganha, posteriormente, um ensaio de Walter Benjamin, a partir do “olhar escancarado” e da “boca dilatada” do anjo. Benjamin diz que a maneira grotesca do anjo olhar aparenta avistar, de modo clarividente, os paradoxos do progresso, com suas famigeradas misérias intrínsecas. Diferente de Magritte, e extemporaneamente, Benjamin parece escrever, invisível e afirmativamente, no desenho de Klee: “Isso é a tempestade do progresso”. Entretanto, Magritte faz um segundo desenho com um cachimbo contido numa moldura e outro cachimbo [que, talvez, quem sabe, possa ser um cachimbo] fora da moldura, levitando no ar, como a perfeição das ideias ou, como diz Foucault, persistindo na sua plasticidade etérea de coisa levitante.

Para Foucault, a proposta de Magritte chega, num primeiro olhar, como qualquer esboço básico para algum manual de botânica do ensino fundamental. Mas, não é bem assim. Há uma flutuação na imagem como que a sugerir uma cena expandida. Quando nos colocamos Em Posição de Teoria, a tese do Exu² Calunga da Calunga Grande [contemplando, observando e agindo sem julgar o devir], percebemos que Magritte consegue, de modo brilhante, deixar, ali, naquele quadro aparentemente bronco, uma Movimentação do Movimento caligramático que vai, de maneira superposta, e oposta aos próprios fundamentos do caligrama³, sumindo e, ao mesmo tempo, ganhando força e materialidade. Porém, essa estranha movimentação [essa estranha Consciência sem Sujeito], além de suscitar certa comicidade subjacente que nos faz rir, começa a pegar o córtex de maneira mais funda, fremitando e conduzindo o corpo para um tipo de pensamento muitíssimo intrigante e complexo. Eu mesma passei meses debruçada sobre o desenho de Magritte, meditando: indo do dele aos meus e dos meus ao dele, indo da minha cabeça à cabeça de Foucault, num ioiô. Lendo e relendo o seu ensaio tão cheio desse amor deleuzeano pela produção de filosofia junto com a patuidade da arte.

E vi muitas coisas. Vi que, nos meus desenhos, os textos não são caligramas, portanto, nem tautologias. São nomadismos que aumentam as incertezas que expandem a cena, articulando [fora de um lugar-comum] outras distinções artísticas como o segundo etéreo cachimbo de Magritte. Aí, então, Magritte flutua em mim ainda mais porque desenhar sempre me evocou estar expandindo uma cena [a ponto de explodi-la], na qual, como diz Foucault,

Estranhas relações se tecem, intrusões se produzem, bruscas invasões destrutoras se fazem, quedas de imagens em meio às palavras acontecem, fulgores verbais atravessam os desenhos, fazendo-os voar em pedaços, discursos inaudíveis murmuram silêncios de pedra no qual a brincadeira entre três palavras frágeis e sem peso – rêve (sonho), trevê (trégua) e crève (morra ou se arrebente) – servem para organizar o caos de uma pedra. A palavra pode designar a mais fugidia das imagens e a mais fugidia das imagens pode reduzir, como nos sonhos, os homens ao silêncio e os homens, enfim, reduzidos ao silêncio, podem se conectar com enigmáticas insistências que vêm de outros lugares [Foucault, 2021, p. 47-49, grifo do autor].

A hierarquia que subordina o signo verbal à imagem [ou vice-versa] já está quebrada em Paul Klee e sublinhada por Benjamin. Eles misturam tudo sem dar soberania a nenhum dos dois e

Imagem e texto caem, cada um de seu lado, segundo gravitação que lhes é própria. Não há espaço comum. Não há lugar de interferência em que palavras recebam figuras e figuras entrem na ordem do léxico. É preciso ver as regiões incertas e brumosas. É preciso ver que em nenhum lugar há cachimbo. Tudo é uma algazarra flutuando visivelmente sobre uma cena que, a cada olhar, se torna mais nômade [Foucault, 2021, p. 33-36, grifos do autor].

Meus desenhos seguem as linhas de Klee como se propusessem [e ocupassem plenamente] o poético campo de Rumi: aquele que não tem nem bem nem mal. Nestes meus desenhos, deixo

O discurso cair segundo seu próprio peso e adquirir formas visíveis de letras. Letras que, na medida em que são desenhadas à mão, entram numa relação incerta, indefinida, emaranhada, com o próprio desenho – mas sem que nenhuma superfície possa lhes servir de lugar-comum [Foucault, 2021, p. 72].

Há uma velha discussão em Lévi-Strauss que coteja artista ocidental e artista indígena: o artista ocidental tenta se aproximar do artista xamã que o indígena já é. O xamã é a arte de tornar visível os invisíveis que pairam, que flutuam, tirando do corpo [e do olhar] as representações, as figurações, as imitações da imagem. Regeneração e cura, então, fazem parte da arte xamã. Exu movimenta devires e linhas de sonho para que modos de existência do corpo possam vir à tona, voar, cantar, escrever e ver o mundo com os olhos da canção, da poesia, do desenho e do que mais eles quiserem. Para que as artes da existência, da presença, da alma, do corpo, da voz e das mãos possam, de fato, regenerar e curar. É isso que os Exus Zambarado, Calunga da Calunga Grande e Zé Pelintra, e os encantados Sete Folhas, Bom Floral e Rã Azul, estão fazendo: agenciando a arte como espírito que tem agência de regeneração e cura. Eles parecem apostar numa espécie de batalha estética entre singularidades, na qual o xamã da arte e a arte do xamã vão livrando o corpo da ação predatória da representação e da imitação que movem o artista ocidental.

Tanto Zambarado quanto Calunga da Calunga Grande me disseram [de diferentes maneiras e em diferentes tempos sobrepostos] que eu era “uma indígena perdida na cidade grande”. Os agenciamentos entre Exu, seus modos de existência e nossas existências compartilhadas são da ordem da produção de uma espécie de estética xamã para um corpo no agora, um encante que vai diminuindo as peles ocidentais do corpo da artista-cientista [que, desde sempre, eles vislumbraram e acordaram como um devir], produzindo uma artista-cientista-xamã em DEVIR-COM. Essa artista-cientista-xamã em DEVIR-COM produz não a partir do sensível, mas COM o sensível, assim como Gilles Deleuze produz a sua filosofia COM a arte. Uma griot que conecta mundos.

Os desenhos a seguir propõem uma Oficina Híbrida Aberta: Metodologia das Sutilezas em cenas expandidas que livram a imagem da representação da linguagem: as formulações sobre a educação de Exu e Tim Ingold transitam pelas seivas das árvores, sob a luz prateada de uma Lua Cheia em Aquário; o Exu Calunga da Calunga Grande está no meio do Mar, com sua echarpe vermelha, chamando o Vento; o Exu Zambarado escorre em palavras na vertical que, para serem apreciadas, movimentam a imagem, expandindo ainda mais a cena; Donna Haraway faz parente com Ana Tsing e são, respectivamente, coruja e  águia empoleiradas nos galhos coloidais da Embaúba-Posta-Restante-da-Mata-Atlântica-Brasileira para avisar aos humanos que o tempo das catástrofes climáticas já está entre nós; Spinoza é um ciborgue deleuzeano vazado no crânio, soprando o que ainda podem as práticas de um corpo-pensamento no mundo.

Tudo isso é Conhecimento Mágico Antigo do reino do sensível.

Tudo isso é bruxaria.

Tudo isso é ciência divinatória.

Tudo isso é Catimbó Zen.

 

VEJA TODOS OS DESENHOS AQUI

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Notas:

[1] O desenho de Paul Klee, que é de suma importância para o pensamento filosófico de Walter Benjamin, pode ser visto aqui.

[2] Para além de um Orixá ou uma entidade que vence demandas nos terreiros do mundo, Exu é um nômade que se desterritorializa e se reterritorializa quando, onde e como quer. Exu é aquilo que produz existências compartilhadas freneticamente e está sempre insistindo para que algum corpo o incorpore como um movimento e um método de se estar radicalmente vivo na terra.

[3] “O caligrama é milenar e tem papel tríplice: compensar o alfabeto; repetir sem o recurso da retórica; prender as coisas na armadilha de uma dupla grafia. Ele aproxima, do modo mais próximo, o texto e a figura, e faz dizer ao texto aquilo que o desenho representa. O caligrama é, portanto, tautologia” [Foucault, 2021, p. 23-24, grifos do autor].

[4] Segundo Étienne Souriau: capacidade que só a arte possui de transtornar o corpo, tornando-o radicalmente vivo. Poderíamos dizer, então, à luz de Souriau, que Exu é uma arte cheia de patuidade.

[5] Atributo e repetição do sujeito, proposição que se arvora a ser sempre verdadeira [lógica]; redundância [gramática].

[6] Étienne Souriau diz que modo de existência é aquilo que insiste no corpo e que os artistas, os pensadores, os filósofos e os escritores são grandes criadores de preexistências [os terrenos, ambientes e arquiteturas necessárias à existência dos modos]. No meu corpo, insistem Bemtevi, instaurada junto com o Exu Zambarado; Papoula, instaurada junto com o Exu Zé Mulatinho; A velha, instaurada junto com o Exu Onã; A nordestina, instaurada junto com o Exu Zé Pelintra; Fia Déia, instaurada junto com a Preta Velha Mãe Luísa; Passupreto xamã, instaurado junto com João do Lino Mar; Monja Lib, instaurada junto com o Exu Calunga da Calunga Grande; Runuwã Borum Krenak, instaurada junto com o Caboclo Sete Folhas. Duas dessas existências ganharam mais realidade: Bemtevi e Monja Lib. Spinoza diz que os modos são existências de outras coisas em nós. Zambarado segue a cartilha do indiano Osho: modos de existência são processos de iniciação à liberdade, alando o corpo de asas que sempre foram suas. Entretanto, Souriau chama a atenção para o fato de que “a força de um modo de existência é sempre o problema, a questão, e que, se quisermos ver os mais belos reinos se abrirem em profundidade, é necessário correr riscos e correr esses riscos toda vez. Sempre. É necessário se tornar uma Morgana, a deusa com extraordinários poderes de mudar de forma. Os modos de existência se fabricam e são sempre luminosas soluções para um problema, uma questão, uma demanda. Eles são a soma de exigências espirituais para elevação de um ser a um estar [Souriau, 1939, p. 353, tradução minha, grifos do autor]. Os outros encantados que têm compartilhado suas existências comigo são o Mestre Bom Floral do Reino de Okê Ajucá e a Rã Azul, personagem conceitual criado por Calunga da Calunga Grande para me ensinar as Artes do Sonho Lúcido.

[7] Na filosofia africana, o velho guardião de saberes ancestrais que transita livremente entre mundos, conectando-os estética e eticamente.

[8] Conceito de Donna Haraway que propõe parentescos estranhos e combinações inesperadas para ampliar a capacidade de coabitação e coexistência dos humanos em Gaia, aumentando as chances de a humanidade continuar a existir sobre a face da terra, localizando para fora da esperança e do desespero (péssimos professores, segundo Haraway), a copresença densa dos mortais terráqueos, criando brechas de sensibilidade e consciência que consigam produzir mais vida.


Observações:

  1. As palavras em negrito e sublinhadas são conceitos autorais, produzidos entre os Exus Zambarado e Calunga da Calunga Grande, os modos de existência Bemtevi e Monja Lib, e a OLD [Ontologia Lisérgica em Devir] Déa Trancoso, desde 1990 – utilizados nas pesquisas de mestrado e doutorado, e aplicados como medicina no cotidiano da vida.
  2. Desenho como escrita e escrita como desenho são propostas de Tim Ingold para pesquisas acadêmicas. Meus desenhos foram produzidos com técnicas elaboradas pelos Exus Zambarado e Calunga da Calunga Grande: esboço com a mão esquerda e desenhos finais com a mão direita. Eu usei grafite, lápis de cor e tintas aquareláveis comuns, tintas aquareláveis orgânicas feitas a partir de terras do Vale do Jequitinhonha, tinturas de folhas, flores, vegetais e borra de café, materiais de maquiagem, pincéis diversos, processamentos via Adobe Photoshop Express.


Bibliografia:

Benjamin, Walter, O anjo da história, Belo Horizonte, Editora Autêntica, 2013, 264 p.

Calunga Da Calunga Grande, Exu, Cadernos de sábado: vida, sonho e filosofia, Belo Horizonte, Tum Tum Tum Edições, 2014-2023, Vol. 1-11, org. Déa Trancoso&Monja Lib, 430 p.

Deleuze, Gilles, Ato de criação, São Paulo, Folha de São Paulo, 1999, 15 p.

Foucault, Michel, Isto não é um cachimbo, Rio De Janeiro, Paz E Terra, 2021, 88 p.

Lapoujade, David, Arte e vitalidade, Aula virtual e presencial por ocasião do aniversário de 10 anos da N-1 Edições, 2022, Atelier Paulista, São Paulo, s/p.

Lapoujade, David, As existências mínimas, São Paulo, N-1 Edições, 2017, 128 p.

Lévi-Strauss, Claude, O pensamento selvagem, São Paulo, Companhia das Letras, 1996, 456 p.

Lévi-Strauss, Claude, Tristes trópicos, Campinas, Papirus Editora, 1990, 336 p.

Rumi, Jalaludin, A dança da alma, Kindle B00FM46HUG, 190 p.

Souriau, Étienne, Diferentes modos de existência, São Paulo, N-1 Edições, 2020, 192 p.

Souriau, Étienne, O cubo e a esfera, Lisboa, Editora Arcádia, s/d, p. 31-55.

Trancoso, Déa, Catimbó Zen: existências compartilhadas – uma Filha da Folha e os Exus Zambarado e Calunga da Calunga Grande em arte, clínica, educação, alegria e cura, Tese de Doutorado, Unicamp, 2024, 386 p.

Zambarado, Exu, Cadernos de trabalho de mato: filosofia como modo de vida, Belo Horizonte, Tum Tum Tum Edições, 1995-1999, Vol. 1-21, 881 p.

 

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