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Αεικουω

julho, 2023

Do presépio onde tudo se perfazia estático – simultâneo repetir-se de matérias belas, repetidas em arte de pequena eternidade – os Três Reis introduziam o tempo.

 

Narra o velho prudente, em livro de mântica linguística, que o nomear é uma ação. No Gênesis 2:19-20, por exemplo, o Nome-Deus-Poietés depois de fabricar todos os animais selváticos, os expôs perante o homem-húmus para que esse os pudesse ver e nomear. Adão nomeou todos os animais, então, segundo a visualização das propriedades de cada um deles.

Nesse tal livro antigo, divinoso, expõe-se a complexidade da ação adâmica. Os seres, sejam esses animais ou humanos, jamais aparecem sempre do mesmo jeito. Essa constante mutabilidade seria a evidência indelével de que há qualquer coisa (em todo e cada ser) própria a cada um deles. Por um artifício engenhoso, tanto o sábio ancião quanto o Demiurgo-Inefável aproximaram a existência da insistência. Existir é aparição insistente. Algo existe enquanto permanece aparecendo. Essa perseverança no aparecer, tipo singular de repetição do existir, é como um ritmo onde a vida-insistente, desde si e por si mesma, se diferencia.

Como uma ação, o nomear existe. Se existe, insistentemente varia, outra-se. Por isso, a tarefa de um nome é transmitir, de modo gráfico e sonoro, aquilo que, a despeito de toda e qualquer mudança, permanece. Há dias em que acordamos com olheiras, outros, despenteados… Ainda que nossas características variem, i.e., que nossos predicados sejam alterados, o nome permanece. Subsiste como a indicação de algo invariante. Um nome, aquilo que dá a ver a característica essencial dos seres. Um nome, não o que dá, mas o que recebe.

O interessante é notar que praticamente todos os nomes do mundo fracassem nesta tentativa. Sombra de verdade, malogro parcial. Pois não é exato que eles falhem, talvez mesmo, acertem. Se tudo que é e há existe em constante mudança, então já o nome das consoantes é evidência do mistério. Tomemos, como exemplo, a primeira consoante de nosso alfabeto, a letra “b”. Como sinal gráfico ou grafema, a letra “b” pode ser representada em si e por si. Mas o nome da letra “b”, não é a “letra b”. O nome da letra “b” é “bê”. Como sinal sonoro ou fonema, as consoantes revelam o enigma dos nomes. O nome é e não é, simultaneamente, a coisa que nomeia. O nome “bê” recebe da letra “b” aquilo que dela é próprio, aquilo que permanece constante nela, o que? O sinal gráfico “b”.  Mas junto a esse sinal gráfico, devido à impossibilidade sonora de pronunciar uma consoante que não tenha vogal, a letra “b” pede como complemento a vogal “e”. Assim, o nome da letra “b”, i.e., “bê”, manifesta tanto aquilo que é essencial da consoante, ou seja, a forma do “b”, quanto àquilo que é acidental nela, seu movimento, sua variação, a vogal “e”.

Aparece, então, desde a mínima unidade, desde a sílaba, a necessidade de ser-com. Se os seres variam, então um nome próprio precisa mostrar o duplo de cada ser, aquilo que dele permanece e aquilo que nele se altera. O nome “bê”, por exemplo, recebe a forma “b” como elemento essencial. Mas ao receber essa forma, doa à ela a vogal “e”, e é justamente esta doação que possibilita sua pronúncia. Por isso, toda pronúncia é a anunciação da própria coisa, sua aparição. Lembremos, a este respeito, do imbróglio a respeito do Teônimo tetragramático YHWH.

O suposto nome de Deus é impronunciável não por uma falha em sua concepção. Se Deus é o criador e nós somos as criaturas, então não há nada que o homem possa acrescentar a ele. O nome de Deus seria, deste modo, a totalidade de todos os predicados, a soma das possíveis e das impossíveis variações. O nome de Deus deveria, deste modo, dar a ver a totalidade que Deus é. Totalidade que inclui em si toda mudança. Deste ponto de vista, acrescentar vogais ao nome de Deus para que pudéssemos pronunciá-lo seria uma blasfêmia. Por outro lado, é a pronúncia que dá a ver e, portanto, torna existente. Um Deus eternamente inominado seria nenhum-Deus, e se converteria, por isso, em sua própria negação. Áspera decisão entre o contranome blasfemo e a nulificação.

A mitológica grega, contudo, parece ter sido mais feliz em sua escuta que a teológica hebraica. Tomemos de exemplo, agora, um tipo muito especial de nomes, o nome das vogais. Se todas as consoantes necessitam de uma vogal para que possam ser pronunciadas, denunciando assim a articulação entre eternidade (o elemento essencial ou próprio) e efemeridade (o elemento acidental), o caso das vogais é outro. Em Língua Portuguesa, nenhuma vogal necessita de acréscimo. A vogal “a”, por exemplo, primeira letra de nosso alfabeto, tem por sinal gráfico ou grafema o “a”, e igualmente tem por sinal sonoro ou fonema o “a”. No Grego, não é assim. Mas há uma palavra em grego onde algo quase mágico acontece, o advérbio αει.

Em Língua Grega, o advérbio αει diz “sempre”. O que é sempre é sempre conforme o que é. E não, não há aqui um simples jogo linguístico. A eternidade, por exemplo, como aquilo que é sempre, precisa sempre ser conforme a si mesma. Não há nem aquém nem além, nem antes nem depois, nem acima nem abaixo. Tudo que é e há, sempre já é e há desde ela mesma, donde nada lhe pode escapar ou saltar. Aqui, uma flor se abre à escuta.

Sabemos que as letras ou vogais que compõe aei seguem o caso das consoantes em Português. A vogal “α”, por exemplo, não se chama “α”, mas alfa. Por isso, o nome alfa conserva e dá a ver o elemento essencial (ou próprio) da letra, o grafema “α”, mas também os elementos acessórios que a tornam pronunciável e, nisso, existente. Entretanto… Como nomear o que é sempre? Sempre sendo, esse ser seria inapreensível em sua ilimitada alteração. Ilimitada não porque não possamos imaginar seus limites, mas antes porque a própria ação de limitar já seria proveniente deste sempre-ser. O nome total ou o sempre-nome, deste modo, só poderia se mostrar como a articulação total dos grafemas e fonemas linguísticos. Mas se tudo que existe ora se mostra de um modo, ora de outro, então este nome total, como soma de todos os aspectos, seria vazio de significado, pois não poderia ligar-se propriamente a ser algum. Este nome puro seria, deste modo, o Silêncio.

A Lei da Terra.

“Lei, também a vontade de seguir uma só coisa”. (νόμος καί βουλή πείθεσθαι ένός)

HERÁCLITO. Fragmento 33. IN.: Pensadores Originários.

O que geralmente se traduz neste fragmento por vontade, peítesthai (πείθεσθαι), é uma palavra derivada do antigo grego, peithó (πειθώ). Peithó diz, em grego, “persuadir”, “convencer”. Para nós, vontade é algo humano, que podemos ou não ter. Mas Heráclito nos deixou outro caminho possível.

Por um instante, perguntemos: Qual é a vontade da Terra? Pelo fragmento, podemos responder: uma lei, uma só coisa. Se nos lembramos que vontade é, aqui, persuasão, a pergunta se transforma em: Por que ou quem a Terra é persuadida? Por uma lei.

Mas a Terra não acorda, em um belo solstício de verão, e resolve que vai passear, que vai fazer um exercício de rotação enquanto se translada. Tampouco resolve ficar embaixo das cobertas, indisposta, em pleno equinócio de outono. Na sua espontânea gratuidade, a Terra é.

A vontade da Terra, portanto, não é nada que ela, em si e por si, tenha escolhido. Sua vontade são seus movimentos (rotação e translação) que, por participar no Cosmos, ela realiza. Por esse prisma, tampouco lei é algo que se possa postular. A Lei da Terra é aquela que ela e todos os outros corpos receberam no instante originário, no átimo poli-morfo-genético, no Bere’shith.

Pela Terra se mostra que o que temos entendido como vontade é menos da ordem de uma intenção do sujeito, e mais do espontâneo da voluntariedade. Voluntário e gratuito, como nosso planeta… Imenso em sua concessão vital.

Por participar no Cosmos, a Terra é persuadida pela gravidade. Na posse desta persuasão, ela segue, ela obedece a uma lei única, seu nómos. A Lei que ela mesma é: desde si mesma, em si mesma, para si mesma. Na atualização da potência ela se nos mostra como a sempiterna potencialidade do ato.

Persuadida pela Lei (por seus movimentos próprios), a Terra se mantém. Mantendo-se, podemos viver. De modo idêntico Nietzsche compreendeu a palavra “wille”, que nós também traduzimos por “vontade”. Vontade para o poder (Wille zur Macht) diz: persuasão pela Lei.

O “zur”, entretanto, que frequentemente traduzimos por “para a, em direção a”, também não deveria ser lido de modo antropomórfico. Este “para a” é como o livre-arbítrio, é um nada, um aberto pelo qual tudo pode ser arrebatado, persuadido.

Em sua suprema liberdade, no puro movimento de seu arbítrio, a Terra arbitra nosso viver.  Neste duplo, ela obedece (a sua lei mais íntima, seus movimentos, seu nómos) e manda (sua voluntária vontade).

Pela Terra se mostra que a liberdade, como escolha, é o patamar mais baixo de liberdade, tão baixo que é, mesmo, falso. Por isso Ricardo Reis nos escreveu que:

 

“[…] Nossa vontade e o nosso pensamento

São as mãos pelas quais outros nos guiam

Para onde eles querem

E nós não desejamos”.

 

Toda grande libertação é um modo de obediência que nasce da profunda harmonia entre vontade e lei. Por isso, em 2 Timóteo 1:12, Paulo pôde dizer que se sentia confiante por saber que aquele em quem ele cria, o guardaria.

A confiança de que falou Paulo é πειθώ, uma persuasão. Confiar é, aqui, morar no mesmo lugar. Nisso que exortasse Timóteo para que se apegasse aquele modelo de “palavras salutares” e que o guardasse “por intermédio do Espírito Santo que mora em nós”.

Assim também Platão, no Fedro, fez com que Sócrates disesse que a retórica é a “arte de conduzir as almas pela palavra” e sua finalidade seria, justamente, a persuasão. Per-suasão que, em sua forma latina, diz: através; no meio de; entre (per-) & aconselhar (-suasão).

“O senhor, se ouviu sabe, se sabe, me entende”. Outro nome para essa harmonia é: consciência. E por isso consciência não designa, apenas, os processos cognitivos de um indivíduo. Antes, consciência é o nome do movimento próprio do Todo.

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