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Povos Tradicionais do Norte de Minas (Parte 1)

outubro, 2023

Os Povos Tradicionais são internacionalmente reconhecidos como guardiões da biodiversidade do planeta. No Brasil, estes povos estão gravemente ameaçados pelos ataques impiedosos e violentos do neoliberalismo e das elites entreguistas e colonizadas. No norte de Minas Gerais não é diferente e a resistência segue firme e forte, produzindo alimentos e cultura, nos garantindo futuro e ensinando outros caminhos e modos de ser sociedade, de ser humanidade.

Nesta publicação, estão alguns registros e histórias da documentação fotográfica que venho realizando na região desde 2015. Este caminho vem sendo feito a partir de uma fotografia compartilhada, fundamentada em uma relação de respeito e afeto com as pessoas, que se fizeram minhas professoras e me ajudaram a re-ver o mundo.

Que encontre em você bons ouvidos e bons olhos. Que fale a você também coisas preciosas.

 

Matias Cardoso, Minas Gerais, 2015.

Mulheres e homens quilombolas abençoam a Terra na celebração de retomada de um território: “Pedimos que seja fértil e próspera, amém”. Nesse dia houve muita alegria pois ao término das orações e ao som dos tambores, choveu. Há muito não chovia, mas, naquele exato momento de fé e luta, choveu lindamente por cinco minutos. E parou.

 

Matias Cardoso, Minas Gerais, 2015.

No dia da retomada de um território, um banquete foi servido e Vilma serve seu prato. A comida é abundante e deliciosa! Em meio a muita alegria, comida, reza e samba de roda, partilhamos em cada prato e garfada o grande motivo de toda a luta: segurança alimentar, o direito a terra, o direito a viver com dignidade sua própria cultura.

 

Verdelândia, Minas Gerais, 2015.

Maria e Sula na sala de sua casa. Ambos foram integrantes do grupo conhecido como Posseiros de Cachoeirinhas, que lutaram contra os autoritarismos e violência da ditadura militar. Em abril de 1967, o latifúndio e os militares avançaram sobre a terra de Cachoeirinhas (localizada no atual município de Verdelândia), terra habitada e trabalhada por camponeses pobres. Ação autoritária e truculenta, o episódio ficou conhecido como o Massacre dos Posseiros de Cachoeirinhas. Os militares invadiram suas terras, queimaram suas casas, destruíram plantações, ameaçaram, perseguiram, torturaram e assassinaram dezenas de pessoas – algumas estão desaparecidas até hoje. Os que sobreviveram, ficaram sem teto, sem terra e se esconderam nas matas, onde enfrentaram a fome e o surto de sarampo, que matou mais de 60 crianças.

Os camponeses não se renderam. Nasceu daí a resistência dos “Posseiros de Cachoeirinhas” que, na pessoa de Sula, de sua família e tantos outros amigos e vizinhos, lutaram contra militares e latifundiários pelo direito à terra, à liberdade, a viver com dignidade. Pouco a pouco, foram retomando os territórios que lhes foram roubados pelo latifúndio e hoje são desfrutados por seus filhos, netos e outros camponeses.

Essa retomada de terra nunca acabou. Até hoje, descendentes dos Posseiros de Cachoeirinhas seguem na luta pelo que lhes é de direito: a memória de seus familiares torturados, assassinados e desaparecidos e as terras de onde nunca deveriam ter sido expulsos.

 

Quilombo de Praia, Matias Cardoso, Minas Gerais, 2015.

Pablo nada igual peixe e aparentemente enxerga embaixo d’água também. Em uma visita, entrei no rio com as crianças. Mergulhei no São Francisco para não querer mais sair. Entusiasmada me esqueci que usava meus óculos de grau. Entre um mergulho e outro, emergi enxergando quase nada. Como seguir na função fotográfica sem ver bem? Compartilhei com as crianças e fomos todos tateando o fundo do rio, mergulhando, procurando. Confesso que, de minha parte, era mais por diversão do que por esperança de encontrá-los. Pablo estava empenhado, descia na água veloz, até que voltou com os óculos em mãos. Fiquei impressionada: a água estava turva, a corrente forte e a luz do sol bem baixa. Diante da minha surpresa, Pablo contou que sabia nadar assim, como um peixe, por ter comido 500 – repetiu: 500! – tainhas vivas quando mais novo. Todas as crianças concordaram.

 

Matias Cardoso, Minas Gerais, 2015.

Lindemberg, vazanteiro do Rio São Francisco, lendo uma Bíblia antiga, presente de sua falecida mãe. Infelizmente, Lindemberg faleceu em 2019, aos 89 anos, cuidando do roçado. A cultura e a comunidade sertaneja sanfranciscana perderam muito. Compartilho as palavras da Zilah de Mattos, que dedica sua vida à justiça no campo atuando pela Comissão Pastoral da Terra:

“Ele deixou para os camponeses um grande legado, quem teve a graça e o privilégio de sua companhia compreende a sua grandeza. Na terrinha em que viveu por décadas, foi um grande amante e guardião da mãe terra e a irmã natureza, como ele as chamava. Na roça, cultivava para ele e os animais silvestres. Vivendo no anonimato, um grande sábio, poeta, repentista e profeta. Senhor Lindemberg escrevia e recitava, com o coração e alma, a paixão, o amor, o respeito, o cuidado em defesa da vida da irmã natureza. Ao vê-lo buscar água no Velho Chico, muitas vezes o vi chorar, lamentar e clamar a Deus por justiça, pedindo que livrasse nosso pai Chicão da ganância dos homens… Com carinho, olhar brilhante e profundo de felicidades, sempre vinha nos receber na estrada de sua casa. Guardo na memória esse último semblante da minha visita e das boas prosas e ensinamentos.”

 

Quilombo de Praia, Matias Cardoso, Minas Gerais, 2015.

Naquela manhã, a maioria de sua família e comunidade pegou um ônibus para um encontro político em outra cidade bem longe. Gabriel queria ir junto, mas não pôde. Muito chateado, teve de voltar conosco para o quilombo. Ao cair da tarde, algumas crianças mais novas entraram no rio. Gabriel foi junto e rapidamente foi mudando de figura. Estava radiante de novo, brincando em frente à câmera. A cada olhar que trocávamos, um pulo, uma pose, um mergulho diferentes.

 

Comunidade Vereda, Quilombo de Praia, Matias Cardoso, Minas Gerais, 2015.

“Mãe de Pregação” é como Crispiana Barbosa Lima é chamada. Trouxe ao mundo quase todas as pessoas presentes nessa fotografia. Os que não chegaram por suas mãos representam as centenas de outros que sim. Parteira, Mãe Piana atualmente tem 97 anos e já realizou 2017 partos. Descendente direta de pessoas escravizadas, é parteira de referência na região e no estado, sendo chamada para partos complicados e assistida por médicos de formação convencional. Em 2016, recebeu a Medalha Maria da Cruz, homenagem entregue pelo governador de Minas Gerais a personalidades femininas reconhecidas por sua valorosa contribuição cultural, social e econômica. Na ocasião, Piana disse: “Em 1952 fiz meu primeiro parto. Aprendi sozinha e já fiz mais de 2 mil partos desde os meus 23 anos. Nunca imaginei ver o governador aqui e me premiar por essa lembrança de vida que tenho”.

 

Quilombo de Vargem do Inhaí, Diamantina, Minas Gerais, 2021.

Imir junto ao pilão e mão-pilão que estão em sua família há mais de cem anos. Tudo na vida da família é moído com ele.

 

Comunidade Vacariana Tamboril, Fruta de Leite, Minas Gerais, 2021.

Sementes de Capim Braquiária ou Braquiarão na mão de um morador da comunidade Vacarina de Tamboril. Os Vacarianos são um dos povos tradicionais do Brasil e seu reconhecimento enquanto tal é recente. Seu nome se dá por viverem às margens de uma parcela do Rio Vacarias, afluente do Rio Jequitinhonha, e por manterem uma forte relação com ele. Estão no bioma do cerrado e algumas de suas comunidades estão em bioma de transição entre o cerrado e a caatinga. São agricultores familiares que cultivam uma agricultura diversificada e vivem também do extrativismo. São um povo conhecido por serem resistentes e alegres. Antigamente, também eram conhecidos por serem bons de briga e briga de facão. Preferem os burros aos cavalos, por serem mais resistentes e atenderem a todas as suas necessidades enquanto moradores de um território farto em pedras e que convive com a seca. Praticam a solta do gado na chapada, de uso coletivo, e criam os porcos soltos.

 

Quilombo de Praia, Matias Cardoso, Minas Gerais, 2021.

Não tem placa, nem quadros, nem sinal de recreio, ninguém usa uniforme ou crachá, mas isso aqui é uma escola. Irmãs, sobrinhas, netas e bisnetas. Todas estudantes dos conhecimentos que Mãe Piana partilha cotidianamente no atender das demandas. Transmissão ancestral, cultivando nas mais novas os saberes tradicionais. Aqui, Piana juntou a equipe e vários ingredientes, tirados quase todos do seu quintal dos fundos, para a feitura de um remédio para meus ovários. Devido a idade e uma certa fragilidade física, ela já não consegue executar todos procedimentos necessários para fazer os remédios. Meses depois fiz um exame e já não tinha mais nada.

 

 

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As fotografias desta publicação estão disponíveis para venda, com metade do valor sendo encaminhado aos fotografados e/ou suas comunidades. Para mais informações, entrar em contato com saragehren@gmail.com

Para saber mais e colaborar com a luta dos Povos Tradicionais, acompanhe pelo instagram:

@codecex – Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas

@caa.nm – Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas

@cooperativagrandesertao – Cooperativa Grande Sertão de Economia Solidária

@institutopequidocerrado – Instituto Pequi do Cerrado

@oleirasdocandeal – Oleiras do Candeal – Cultura quilombola

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