O começo, ou aquilo que ritualizei como começo, do processo de criação que vou partilhar com vocês é feito de fios decopulantes, tecido com mãos artesãs, olhos alfaiates e pés andarilhantes. Considerando que as coisas estão em processo de continuidade e a vida parece ser um fluxo em ação vital, começar algo é se propor a vivenciar um rito de passagem. Nesse convite que me faço de falar dos rituais de começo, toco num sonho que tive em 2013. Até hoje revivo com bastante lucidez as sensações que meu corpo vibrou. Um pássaro brotando do seio de um chão de terra enquanto raízes nasciam no largo azul do céu. Essa é a imagem-semente do Livro Performance Decopulagem, lançado nacional e internacionalmente em 2019.
O nome, um neologismo, nasceu numa miragem de frente pro mar verzul de Maragogi, em Alagoas. Havia um barco de pescador pro meio daquele mar, e me pus nele para entregar à Iemanjá meus cabelos que acabara de raspar. 6 anos depois deste outro começo, mãos-olhos-pés tocavam e dançavam com o livro-performance e o solo Decopulagem materialmente e cenicamente no mundo. Outro começo se soma ao momento de lançamento e estréia: meus cabelos-raízes dreadados, ritual feito em 2017. Cultivo uma relação cíclica com os cabelos, pois sinto-os como antenas para a captação das vozes que querem me dizer alguma orientação pro caminho a ser trilhado.
Nos começos dessas linhas escritas já revelei o meu gosto de ritualizar ciclos: trajetos de partida e percursos de chegada – vida-morte-vida nas suas contínuas transitoriedades. Quero compartilhar com vocês algumas inquietações. Para uma pessoa que se dedica ao estudo do corpo em movimento, que se interessa pelas qualidades desses movimentos desenhando a presença na relação com a vida, para quem escolheu a dança como eixo do fazer-ser, fica um sussurro passeando pelo corpo e me instaurando perguntas: onde o movimento é pensamento? Como o pensamento se torna movimento? Como se movem essas fronteiras? Intuo certa porosidade no ponto de contato entre pensamento-movimento enquanto as coisas transitam em fluxos contínuos por entre os ductos do corpo-espaço.
Desde pequena me descobri uma perguntadora apaixonada: esse gosto por criar perguntas, mas do que encontrar respostas, abriu e segue abrindo um vasto campo imaginativo no corpo. Quando faço uma pergunta que abarca múltiplos caminhos, meu corpo sente-se vivo, aquele frisson de estar no meio de um constante labirinto, no entanto com um vigor da relação pulsante dos pés no chão em seus passos assertivos e os braços se sentindo livres para brincar com os ventos. O corpo se dobrando infinitamente nas espacialidades e temporalidades. As dobras, as tensões, as torções, os alongamentos, os deslocamentos dessa dimensão de conectividade interna com o espaço externo é o que produz um pensamento sensível do corpo.
Algumas perguntas me fizeram ritualizar outros começos: será que podemos encontrar dobras inaugurais de conectividades para o gesto da escrita? Qual a implicação do corpo no ato de escrever? Que outras escritas podem surgir quando o corpo sensível ganha eco e alcança espaços na sua potência de comunicar? O que é fluxo e como escrever com essa qualidade vital? Quais são os caminhos de escuta para as vozes que me habitam? O que reconheço como movimento? E como pensamento? Assim sigo coletando perguntas que vão tecendo dinâmicas do procedimento artístico pedagógico que venho criando e nutrindo, nos últimos 6 anos, chamado de Lab Corpo Palavra. Um ambiente de experimentação para acionar as intensidades do afeto enquanto o corpo move e escreve simultaneamente, enquanto dança e fala conjuntamente, enquanto mobiliza e lê concomitantemente. Movo as perguntas com o desejo de habitar um espaço de acontecimento que produz afetos de um saber sensível, favorecendo a construção de uma escrita em ressonância com o campo intensivo das modulações de pensamento.
Ao começar-continuar as vivências dessas dinâmicas laboratoriais coletivamente, vou me interessando cada vez mais em tecer corpos e palavras numa prática de ler-escrever-falar como dobras integradas em uma trama relacional e vibrátil do pensar-mover-sentir. Faço um convite à vocês: experimentem ler algum texto enquanto caminham em alguma rua de sua cidade ou numa trilha de alguma floresta; escreva alguma anotação ou texto enquanto degusta algo que te agrade de comer mantendo os olhos fechados; ou ainda experimente mover o corpo em fluxo contínuo nos diferentes níveis (entre baixo-chão e alto-vertical) enquanto fala, também em fluxo sem pausa, sobre algo que esteja sentindo. E partilho também o nosso selo editorial Cadernos Sensórios Corpo Palavra, que vem se desenhando como um coletânea de ebooks disponíveis para leitura gratuita, trazendo as escritas cartográficas emergidas no laboratório. A publicação decifra sensações, produz e desloca sentidos enquanto pratica corpo-escrita e corpo-fala nas transitoriedades da atenção. Convido vocês a uma experiência de leitura vibrátil.
Outros começos: sobre quedas. Ponto de convergência, estado de encantamento com o chão, poesia das oscilações, brincadeira com o imprevisível. Sedução ao peso ou ainda paixão pela gravidade, construção de limite poroso, eco das formas circulares, espiral vertiginosa. O desconhecido que chega até o centro da Terra, as distâncias pequenas entre as articulações, exercício para voar. O contato improvisação é uma prática que me ensina a cair e vou criando vínculo com esse aprendizado. É um começo constante nas minhas práticas de escritas corporais. Uma dança de eixos: entre meu corpo e o cosmo, ou ainda entre células que atravessam meu corpo dobrando-se na relação com outros corpos, sejam esses visíveis ou invisíveis. Ver e continuar a ver, enxergar e ver são instâncias diferentes do sensível.
O próprio gesto de caminhar nessa constante andarilhagem que a humanidade faz enquanto espécie é uma ação de queda e recuperação em cada passo dado. Por que então a queda está associada ao fracasso ou à falta de potência? Essa pergunta me provoca um desejo de convivência com a queda numa atenção aos apoios que sinto ao deslocar o corpo no espaço: ar, chão, objetos, árvores, outros corpos, numa dança infinita enquanto a vida pulsa. Como nos convoca Ailton Krenak: “a vida é fruição. a vida é uma dança. só que ela é uma dança cósmica e a gente quer reduzi-la a uma coreografia ridícula e utilitária (…) Nós temos de ter coragem de ser radicalmente vivos. E não negociar sobrevivência”. Cair portanto é uma convocação de potência.
Dobrando para o começo da escrita desse texto, re-conecto com o Decopulagem como um ventre para uma escrita em queda de um corpo em estado gestativo. Copular afetos – decupar bússolas – decolar danças. Reverbero a presença de uma frase que escutei: a frequência é a nuance do pensamento. A dramaturgia desse corpo feminino em suas muitas dobras cênicas ofertadas – livro em tiragem artesanal com capa e contracapa de argila e folhas soltas, solo de dança, show musical e sarau – é um diálogo com a imprevisibilidade. Três títeres guiam essa poética: Artesã, Alfaiate, Andarilha. Convido a quem despertou curiosidade em interagir com o Decopulagem a visitar minhas redes sociais para tocar nas nuances desse processo de criação que é uma ode à artesania. Podem deixar seus comentários e perguntas: gosto de conversar.
Ritualizo com vocês esse deságue. Encosto minhas costas no ponto de apoio que a cadeira oferece, espreguiço meus braços e dreads na direção do teto, massageio a mandíbula com movimentos de abrir e fechar a boca. Respiro profundamente e entrego à vocês essas letras costuradas com ternura.