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Rio Gótico Tropical

setembro, 2019

A caminho da Mangueira, Hélio Oiticica costumava passar pela Favela do Esqueleto, onde se encontrava ocasionalmente com o bandido Cara de Cavalo, de quem viria a ser o corpo da bandeira “seja marginal, seja herói”. O Esqueleto foi uma favela que surgiu, em meados dos anos 50, a partir da ocupação do esqueleto de um edifício inacabado no bairro do Maracanã. A estrutura da ocupação influenciou toda a obra de Hélio Oiticica e muitos de seus trabalhos fazem referência direta à imagem do Esqueleto.

Podemos propor alguns exemplos. O projeto Éden, instalação que ocupa e ressignifica a estrutura arquitetônica do museu, espalhando terra e construindo barracos em seu interior. O Ready Constructible, escultura sobre a qual Hélio escreveu: “ESQUELETO (esqueleto-esqueleto, esqueleto-favela e FAVELA DO ESQUELETO são 3 coisas-estruturas distintas)”. E os Ninhos, edifícios artesanais dentro de edifícios arquitetônicos, multiplicação de quartos-cabana dentro de quartos-apartamento, num máximo aproveitamento do espaço. Ninhos que foram construídos tanto no MoMA quanto em lofts de Nova Iorque, abrigando amigos e moradores de rua. Ou o próprio delírio ambulatório enquanto “forma-trajeto”, onde “todos os pontos da cidade estão conectados no aqui e agora”.

Trata-se de uma arte da relação que ultrapassa a forma de expressão do belo, criando “beleza de situação e não de contemplação”, onde a situação vivenciada importa mais que o objeto final da obra. Com relação à “beleza de situação”, Guy Debord cita um mapa de metrô de Paris e a pintura de Claude Lorrain que representa portos e partidas em poentes, imagens que nos inserem numa trama de inter-conexões.

Mas se por um lado as práticas peripatéticas de Hélio Oiticica se aproximavam muito das propostas letristas, o projeto de HO nunca perdeu o cunho de “devolver a terra à terra”, de embrenhar a cidade em camadas mais profundas. Enquanto os letristas utilizavam metáforas linguísticas para tratar da cidade e da caminhada, as práticas artísticas de Macalé, Waly e HO, como de alguns artistas norte-americanos como Gordon Matta-Clark, Robert Smithson e Ana Mendieta, visavam criar buracos na linguagem. Fazeres artísticos que se tornam reflexos das próprias cidades americanas, delirantes porque surgidas de um tecido social esburacado que põe em cheque toda realidade ou língua oficial.

Na Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty fala de um espaço antropológico ou existencial em oposição ao espaço geométrico, idêntico a si mesmo. Lugar (localização) em oposição a espaço (deslugar). O espaço existencial não cabe dentro de si mesmo, emanando, ao contrário, das vivências concretas do atravessamento (mental, a pé, ou através de meios de transporte/comunicação). Para nós, e possuindo algo de mágico, o espaço do deslocamento é a transformação e abertura do lugar numa fenda para o indeterminável. Rompendo com a centralidade e com a fundação. Deslocando o monumento, o museu, a estação de metrô, a praça, o aeroporto, trata-se de uma ressignificação das usualidades que dobra a geometria da realidade oficial e da propaganda num impulso de organicidade entrópica ou de caoscidade que “devolve a terra à terra”. No meio do caminho operamos uma transformação em nosso próprio corpo e cérebro.

Gordon Matta-Clark – Splitting (1974)

A partir de Merleau-Ponty, Michel de Certeau lançou sobre a prática da caminhada certas formações linguísticas. “O ato de caminhar está para o sistema urbano assim como a enunciação (o speech act) está para a língua ou para os enunciados proferidos”. O caminhar (do espaço antropológico) estaria para o espaço urbano (espaço geométrico) assim como o discurso (falado ou escrito) estaria para a língua (e suas geometrias). Não existe, portanto, uma língua-em-si ou uma cidade-em-si, sem seus usos. Não há tampouco lugar geométrico sem espaço do atravessamento. De Certeau afirma que tomamos consciência das leis da língua e as alteramos quotidianamente através da fala e da escrita (“o pensamento se faz na boca”, como diz Tristan Tzara). A consciência dos signos da cidade e sua alteração surge com a caminhada enquanto ato de presentificação: abertura da narrativa para um presente vivo.

Em outras palavras, se cada cidade pudesse ser encarada como uma composição de objetos geométricos, ou ainda, como um gigante ready made, diríamos que suas vias e edifícios logo conduziriam a tipos específicos de atravessamento, de acordo com toda uma sintaxe projetada pelo urbanismo, encarado como construtor de novas leis para o uso da língua. Leis que são postas em prática através da fala, do atravessamento quotidiano dos pedestres, a não ser que caminhemos de outra forma, desobedecendo o que se espera de nós.

Mas para caminhar diferentemente é necessário recorrer a outras regras, o que chamaremos de “regras para ser livre”. Porque se caminharmos ao acaso, talvez repetiremos os mesmos trajetos, tanto inconscientemente quanto pelas imposições do urbanismo. Da mesma forma, se falarmos ao acaso, provavelmente cairemos em uma série de vícios de linguagem, recorrendo à mesma fraseologia. Então como criar regras para sermos livres?

O escritor francês Georges Perec costumava dizer que, num apartamento fechado, devemos mudar os móveis de lugar o tempo inteiro, gerando novos possíveis. A metáfora se referia ao uso variacional das possibilidades discursivas feitas pelo grupo da Oulipo (sigla para “ouvroir de littérature potentielle, algo aproximado de oficina de literatura potencial), que a partir de certas constrições e dispositivos pré-estabelecidos, criavam um curto-circuito nos vícios de linguagem. Os exemplos estão em seus próprios textos, que viram de cabeça para baixo a sintaxe e o dicionário, explorando a gramática como constrição final a ser rompida por dentro.

Da mesma forma, Jacques Roubaud, parceiro de Perec e de Raymond Queneau no grupo da Oulipo, realiza há anos caminhadas sistemáticas que seguem uma série de contraintes (constrições), como, por exemplo, caminhar de sua casa em Paris, que fica na rua Amsterdam, até os Boulevards des Maréchaux, próximos ao anel viário da cidade, e seguir em direção ao poente (ou ao nascente) por tantos passos. Depois voltar por uma rua determinada, não antes prevista, de volta à rua Amsterdam, cortando assim Paris como uma pizza. Roubaud provavelmente não realizaria esse trajeto ao acaso e, no entanto, surgem acasos nesse trajeto, como num jogo de azar que possui, no entanto, regras precisas. Durante o percurso ele compõe, de memória, poemas curtos. Há exemplos deste tipo de prática que encara a cidade como um texto de textos, um espaço fechado com uma quantidade delimitada de discursos possíveis, espaço dentro do qual podemos criar constrições, regras para romper com o que nos é guiado.

Mas talvez essa investida só funcione em um espaço bem delimitado, onde há um dentro e um fora, um centro e uma periferia, o que é o caso de Paris, cidade que ainda possui um lugar intramuros e um espaço extramuros, tendo os muros da cidade sido substituídos pelo anel viário, o Boulevard Périphérique. Acreditamos, portanto, que a analogia entre enunciação e atravessamento urbano proposta por De Certeau, analogia praticada pela Oulipo, assim como pelos letristas e situacionistas, entraria em crise ao tentar lidar com espaços urbanos extremamente amplos e cindidos.

Há cidades mais fechadas que outras. Há cidades que gastam enormes somas de dinheiro para reter a entropia (agitação de moléculas que tudo liquefaz) numa perpétua faxina intramuros, gerando uma geometria do lugar, do “em si”, onde tudo parece legível. São cidades autorreferentes, identitárias, que engendram-se históricas. Por outro lado há cidades feridas, que não se encerram em si mesmas, cidades esburacadas, repletas de Zonas de indeterminação e contrastes sociais. Cidades que tornam árdua ou impossibilitam completamente a analogia entre texto e caminhada.

Anterior à Oulipo, e voltado para um campo mais amplo das artes, do urbanismo e da política, o letrismo operava muitas vezes dentro da mesma analogia entre cidade e texto, mas parecia romper com seus limites ao realizar caminhadas e textos em espaços periféricos, industriais e pós-industriais. Espaços cortados por vias expressas, Zonas de marginalidade, trilhos de trem e canais poluídos, como é o caso de Aubervilliers, pequeno subúrbio ao norte de Paris. Apontavam para a superação da analogia entre cidade e texto, sem, no entanto, sair totalmente dela, e se debatiam dentro da questão.

No sétimo volume da revista da Internacional Situacionista, grupo que sucede o letrismo, Raoul Vaneigem, Attila Kotènyi e Guy Debord publicaram um manifesto sobre a Comuna de 1871. As barricadas seriam, para eles, a concretização de um anti-urbanismo por excelência, rompendo com a sintaxe do pedestre e interrompendo radicalmente o fluxo quotidiano.

A Comuna representa até hoje a única realização de um urbanismo revolucionário, atacando, sobre o terreno, os signos petrificados da organização dominante da vida, reconhecendo o espaço social em termos políticos, não acreditando que um monumento possa ser inocente. (…) Para aqueles que vivenciaram o acontecimento, a superação estava aí.

Segundo eles, o objetivo da Comuna era o de “queimar a solidariedade das banalidades daquele tempo”. A barricada se caracterizaria pelo corte e a fundação de um novo espaço-tempo, revertendo tanto as formas usuais de habitar a cidade quanto às formas usuais de tomar decisões. Queimando a língua por dentro, a Comuna teria criado novos enunciados. E o trabalho da Internacional Situacionista seria o de “tornar conscientes as tendências inconscientes da Comuna”.

Guia Psicogeográfico de Paris, por Guy Debord

Acontece que a barricada é quotidiana em cidades onde a desigualdade é uma característica estrutural da ocupação do espaço. Há Zonas de indeterminação em todas partes quando se trata de cidades cindidas e que permanecem plenas de cortes entre favelas e condomínios, entre vias expressas e bairros residenciais, assim como entre temporalidades as mais diversas, como é o caso do Rio de Janeiro.

Uma mitologia da região do Rio de Janeiro diz que as montanhas da cidade seriam na verdade cadáveres de gigantes, ou deuses adormecidos, e que os homens seriam vermes ou larvas que devoram e habitam os morros, vivendo e produzindo a fermentação dos corpos dos gigantes. Na taxinomia biológica, a larva é um estado ainda não formado de um inseto, enquanto o estado adulto é chamado “imago”. Em latim, larva significava “máscara” ou “fantasma”.

Ser vivo escondido e germinativo, como um fantasma que busca um hospedeiro, uma imagem detrás da qual se esconder, a larva tem como atributos a mutação e a possessão. Trata-se de um ser fantasmático que vive de produzir ressignificação e gambiarra, decompondo cadáveres para recompor vida. Nesse sentido há duas máscaras diferentes, a da persona e a da larva. A primeira é a máscara da criação de tipos fixos pela família, pela mídia, pela história oficial, pela geometria, pela gramática. É a máscara da identificação, do reconhecimento, da figuração. A segunda é o frisson da transformação, da serpente, da regeneração, da ocupação.

Haveria, portanto, cidades larvares assim como escritas larvares em oposição à arte da personificação. Ou como diz Waly Salomão: “ESTOU POSSUÍDO não é a voz da personalidade mas a voz do MÉDIUM. HO é um inventor, não é um fixador de tipos mas sim um produtor de protótipos”. Cidade larvar que não venceu a natureza, cidade obcecada com sua imago nunca alcançável, “a cidade do Rio ainda não existe” (segundo Le Corbusier).

Cidade gótica indomesticável, repleta de casebres vivos e esqueletos ocupados, o Rio de Janeiro nunca vai ser completamente apreendido, nem pela gentrificação, nem pela gramática do urbanismo, como certas cidades da Europa e dos Estados Unidos o foram. O Porto Maravilha não é um projeto civilizatório, mas um projeto de corrupção que permanecerá inacabado. E é arriscado dizê-lo, mas haveria talvez algo de positivo neste inacabamento e na própria corrupção que impede que haja civilização. Pois daí surgem novas brechas, Zonas fantasmas, esqueletos ocupados, de onde podem surgir novas resistências possíveis.

Supervia, Jabal Murbach

No terceiro mundo existe uma lógica de imposição violenta do espaço privado, o que gera cisões por todos os lados num tecido esburacado – cidade-colcha-de-retalhos. A cronologia é permanentemente interrompida (onde é que eu estava?), as veias da cidade cortadas a todo instante (para onde estava indo?). O submundo torna-se inframundo. E quando salta a realidade do absurdo, são utilizados pedaços da própria cidade como arma contra a farsa da gramática de um urbanismo não civilizatório, mas corrupto e luxuoso. “Postes virados, paralelepípedos revolvidos, restos de bondes quebrados e incendiados, vidros espatifados, latas, madeiras”. Permanente quebra da fraseologia, gerando aberturas que tornam possível o não limite entre as palavras e as coisas, entre o físico e o espiritual. Se o urbanismo é uma gramática, a cidade do Rio de Janeiro seria um verdadeiro wordsalad, pipocando palavras entre-chocadas, abrindo a matéria, o som, a imagem, os odores, naquela que talvez seja a maior transmutação do real, a da miséria que se faz exuberância.

A cidade larvar continua funcionando segundo uma outra inteligência do espaço que revela uma cultura oral anterior e mais forte do que a solidariedade da banalidade. Não trata-se de analfabetismo, mas de pensamento empírico que se reflete nas formas de caminhar pelas quebradas da cidade. A própria síncope da caminhada é a introjeção dos intervalos próprios a um sistema urbano caracterizado pela interrupção, pelo vazamento. Entendemos então porque as cidades-colchas-de-retalhos engoliriam as derivas letristas e os dispositivos concretistas.

Em uma cidade-colcha-de-retalhos, o caminhar artístico não pode ser outro que o do delírio. Os artistas e escritores da atualidade tentam responder à altura, lidando com revoltas em suas obras, buscando extrair consciência do incêndio. “Tornar consciente o que a Comuna fez de forma inconsciente”, diziam os situacionistas. Mas será que por detrás desta tentativa de conscientização não haveria uma domesticação inevitável, uma apropriação do delírio pela linguagem e, enfim, a criação de uma nova banalidade usual?

Então há de haver uma aposta mais radical. Formas de romper com os limites e as imposições da estrutura gramático-urbanística, no caso corrupta (senão sempre corrupta…), traçando re-apropriações absurdas das vias urbanas. Usos violentos, coloquiais, pejorativos e subversivos do deslocamento, para além dos limites da analogia com a língua. Espaço antropológico que se impõe radicalmente, alterando o espaço já não geométrico da cidade.

Quanto mais relações simbólicas produz-se, mais opaco se torna o território, intransponível para o Estado. A cidade é sempre inapreensível em oposição à transparência ilusória do museu. E podem surgir momentos de salto em direção ao sol, da intervenção desinteressada, da destruição criadora, da barricada como instante-frame – acontecimento solar e sonho de um sonho.

Imagina-se um espelho de dupla face. De um lado há o espaço topológico e opaco da Zona e da favela. Espaço que se dá entre deformações e catástrofes. Do outro há o espaço da teia e da rede, transparente, o ciberespaço que se assemelha a uma vitrine infinita e que pode esconder catacumbas digitais. Dois protótipos da arte contemporânea, duas formas-trajeto que se encontram no infinito: a forma-trajeto na arte digital e a forma-trajeto no espaço urbano. O cinema-ensaio, a pós-internet, o mashup, e o delírio ambulatório, a caçada urbana, o parkour, a pixação. Rumo à interpenetração dessas duas formas de atravessamento permanentemente ameaçadas pelas estrias do urbanismo e pelas políticas de repressão de acesso livre à informação.

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