Tradução da introdução do livro Radical Gardening1
– Politics, idealism & Rebellion in the Garden do autor George McKay.
Introdução – A trama2 de Radicalismo na Horta
Alguns jardins são descritos como retiros quando são realmente ataques.
(Ian Hamilton Finlay)
Historiadores sociais raramente mencionam jardins ou jardinagem, e historiadores de jardins tem pouco o que dizer sobre política em geral.
(Martin Hoyles, The Story of Gardening)
Na percepção pública geral, a jardinagem é vista como algo burguês, como uma atividade de lazer, como o que aparece em programas de televisão. Suas narrativas de origem são vistas como religiosas ou espirituais (O Jardim do Éden), militares (o jardim recortado, as valas defensivas e escondidas), aristocráticas e monárquicas (a casa de campo, a Sociedade Real de Horticultura). Radicalismo na Horta viaja por uma rota alternativa, através da história e da paisagem, lembrando-nos da ligação entre propagação e propaganda, entre romã (pomegranate) e granada. Pois a vida cotidiana da horta não é somente terraço, churrasco, cercas brancas, topiaria, muro de plantas…. Esse livro entrelaça a história da horta com a da contracultura, estórias de plantas individuais com discussões sobre o uso da terra e política pública, a história social de grupos de propaganda com o prazer de mãos sujas na terra, ao lado de referências da mídia, do pop e da arte, para apresentar uma visão alternativa das hortas e da jardinagem. Para fazer isso, o livro se baseia em diferentes disciplinas, mas “não é de fato muito difícil ser interdisciplinar’ quando se trata de hortas, porque não existe realmente uma ‘disciplina’ de estudos de jardinagem”. [i]
Radicalismo na Horta é sobre a ideia de ‘trama’, e seus significados alternativos, mas entrelaçados (são três). Muitas das tramas que vamos explorar são inspiradoras, e permitem que enxerguemos na prática como noções de utopia, de comunidade, de ativismo para transformações sociais progressistas, de paz, de política identitária, são trabalhadas na horta, na floricultura e através do que Paul Gough chamou de “plantar como uma forma de protesto”. Mas nem todos – alguns conscientizam, ou assustam, por que dentro do território do “politicamente radical” existiram e continuam a existir experimentos sociais e articulações que invertem nossas expectativas positivas da troca humana que ocorre no espaço verde da horta. O livro é modesto nas suas ambições: tudo o que eu pretendo fazer é convencer você, querido leitor-jardineiro, que essas noções de política contrahorticultural que você suspeitava estarem em suas práticas terrenas e prazerosas (eu concordo que você provavelmente não chamava de política contrahorticultural) têm uma tradição rica e desafiadora, um significado, assim como uma trajetória de energia e sentido que as fazem relevantes para nosso futuro. “Por que”, pergunta o escritor-jardineiro Jamaica Kincaid, “as pessoas precisam insistir que a horta é um lugar de descanso e repouso, um lugar para esquecer as preocupações mundanas, um lugar para se distanciar das responsabilidades penosas de ser um ser humano? ”. Eu acompanho Kincaid, e me junto a pessoas como Martin Joyles, Paul Gough, Kenneth Helphand e outros, cada um cujo trabalho sobre hortas ajudou a formar o meu pensamento, em insistir em uma visão da horta que nos ajude a incluir o divergente. [ii]
Tal leitura da horta não deveria ser uma justaposição estranha ou forçada de planta e ideologia; pensemos apenas no escritor radical inglês William Cobbet, que declarou em 1819 que “se eu semeei, plantei ou lidei com sementes; tudo que eu fiz tinha como intenção primeira a destruição de infames tiranos”. Ou pense na etimologia da palavra propaganda – que hoje se refere a arte organizada de persuasão política – derivando do verbo Latim propagare, para propagar. Ou o revolucionário dramaturgo Bertolt Brecht que observou, com surpreendente poder acusatório, que “a fome não ocorre, ela é organizada pelo comércio de grãos”. Ou a ativista colombiana falando à compradores ocidentais, em nome de 40 mil mulheres que atualmente trabalham na indústria pesticida de flores na Colômbia: “Por trás de toda flor bonita existe a morte. Flores crescem belas enquanto mulheres definham”.[iii] Vislumbres hortenses como esses mostram-nos que existe, pelo menos potencialmente, uma longa tradição de radicalismo na horta, e esse livro se pretende como uma contribuição para a manutenção e (re)construção dessa tradição.
Eu afirmei que existem três versões, três tramas em Radicalismo na Horta, e esses são terra, história e política. Primeiro, existe a trama da terra, do espaço verde em si, como ele é reivindicado, moldado, plantado, e como nós podemos entender algumas das políticas florais. Como Lisa Taylor observou, em A Taste for Gardening,
Hortas são lugares peculiares, espaços híbridos: em parte público, em parte privado. Em um sentido, eles parecem existir como parte do âmbito privado, são concebidos e construídos como extensões parcialmente privadas da residência. Hortas também são localizados perto de espaços dentro da casa, considerados como privados, domésticos, zonas ‘femininas’ – a cozinha e a área de jantar, por exemplo. Por outro lado, a horta é uma interface entre a privacidade da casa e a propriedade cívica da rua. É um espaço que outros podem olhar, examinar e julgar.
Há ainda mais, tanto em termos do que as hortas podem significar quanto em termos do que entendemos por horta: de parques públicos até loteamentos, hortas comunitárias ocupados até a ‘polêmica paisagem’ de jardins de paz ou fascistas, assim como os ‘jardins contestadores’[3], a trama é o território em discussão, o pedaço de terra onde tudo acontece. Muitos dos terrenos visitados no livro foram escolhidos por sua marginalidade – me interesso por políticas horticulturais ex-cêntricas, na ideia da vegetação ruderal, que se refere às espécies de plantas (e, pra mim, de plantação), ‘que crescem no detrito e particularmente em áreas degradadas, tal como lixões, terrenos abandonados e áreas abandonadas por ação industrial.[iv] Também me atraem histórias de tramas que não estão mais lá, tão marginais que foram facilmente apagadas ou atropeladas – a demolição por parte das autoridade de Nova Iorque do Jardim do Éden comunitário em 1986 é certamente emblemático. Lamenta-se por esses terrenos perdidos, é claro, mas há também um reconhecimento do espírito de celebração, e de contra-organização e re-mobilização política pelos ativistas.
Em segundo lugar, existe a trama como uma narrativa ou história, seja histórica ou contemporânea. O livro se baseia no que eu vejo como uma tradição de escrita que se opõe as narrativas dominantes de jardinagem, e em direção a uma jardinagem radical – desde Cobbet até a a publicação por autonomistas nova iorquinos de um pequeno livro como Avant Gardening em 1999, por exemplo. É evidente em pequenas publicações, panfletos e websites produzidos por entusiastas, contraculturalistas e ambientalistas, assim como nas margens de publicações mais reconhecidas de esquerda, como a revista de ‘agricultura socialista’, The Country Standard (editado pelo escritório nacional do Partido Comunista Britânico entre 1950 e 1960). Pode-se argumentar que, no século XX, o novo fenômeno da mediação da jardinagem replicava sem problema uma certa relação social: rádio, colunas de jornal, e os primórdios da televisão ‘estabeleceram a imagem pública do jardineiro, que passou por aceitação nacional’ na Inglaterra, escreve Jane Brown. Não só um profissional especializado, mas também um aceno nostálgico para uma cada vez mais distante versão da identidade britânica e suas distinções de classe, estavam sendo apresentadas através do interesse das novas mídias em jardinagem. Esse não é caminho que eu sigo. Mas principalmente o livro se debruça sobre narrativas do século XX e XXI – eu acho que existe uma boa quantidade de literatura já disponível sobre, por exemplo, as relações profundamente políticas entre jardins e impérios nos séculos XVIII e XIX. Eu também queria que esse livro fosse capaz de se comunicar diretamente com situações de pessoas contemporâneas, então escolhi um material mais recente e atual.
Em terceiro lugar, podemos entender a trama como um ato de politiquice, ocasionalmente talvez uma conspiração sombria, mais muito mais frequentemente um gesto positivo, humanista, em um momento de transformação. Na verdade, como esse livro mostra, jardinagem, hortas, flores, plantações, foram frequentemente o terreno de uma luta ideológica; então a trama de Radicalismo na Horta é a própria terra, a sua história de luta, e o ativismo da conspiração política. Primeiro de Maio é uma data boa para começar: é a celebração sazonal do crescimento e da fertilidade no campo, é o Beltane[4] neo-pagão, e é o Dia Internacional do Trabalho para sindicalistas e trabalhadores industriais. Primeiro de Maio é o único dia do ano em que existe uma coincidência entre horticultura – incluindo jardinagem – e radicalismo político, quando o bucólico se cruza sazonalmente com o ideológico. A ativista-jardineira comunitária Heather C. Flores escreveu sobre ser ‘radical como um rabanete’, e segue para definir ‘radical’ no contexto da jardinagem: se é ‘radical somente quando se origina e se retorna para a raiz do problema: a saber, como viver na terra em paz e perpetuidade… Flores não são as únicas coisas que florescem na horta – pessoas também’. Por razões etimológicas similares, Barbara Nemitz escreve, nós deveríamos de fato reconhecer que ‘plantas são espécies radicais…de radicalis, algo que esta firmemente enraizado’.[v]
Essas três versões de trama – terra, história e política – são entrelaçadas. A horta pode se tornar a fonte de identidade ou poder político, incluindo casos que falam mais facilmente à maioria da população que não é ou não era tão privilegiada. Os assim chamados conjuntos habitacionais ‘Votingham’ do século XIX, por exemplo, foram desenvolvidos para explorar a ligação entre propriedade plena e a concessão; argumentar que é a própria terra, o jardim da casa, que possibilitava representação parlamentar naquela época não é ir longe demais: sem jardim, sem voto. Alternativamente, deve-se considerar a noção contemporânea de NNMQ como uma outra identidade política articulada através da terra e do jardim: ‘Não No Meu Quintal’ (curiosamente, muitas vezes figurado por pessoas que não tem quintais, mas sim grandes jardins de 360°) é a voz do interesse privilegiado de pessoas que querem proteger o que eles tem contra o que eles vem como o ataque da modernidade, que pode vir no formato de, digamos, uma proposta de uma nova usina nuclear na vizinhança, uma autoestrada ou uma central eólica.
Através de uma cultura lenta, a horta não é fixa, e pode mudar notavelmente. Não me refiro a mudança de estações, apesar de tal mudança ser tradicionalmente o ciclo de vida da horta – mesmo que as próprias estações estejam sob ameaça pela profunda questão social do aquecimento global. Refiro-me a ideologia. Por exemplo, Jenny Uglow nos lembrou que ‘muitos dos traços de parques Vitorianos, como pavilhões e pagodes, estão sendo ressuscitados [hoje] não como símbolos de império, mas de inclusão”. Enquanto a sociedade muda, parece que a horta permanece a mesmo, e ainda assim também se altera. Portanto, deveria o (conceito de) horta ser mais pertinente para nós hoje em dia? Em Nowtopia, Chris Carlsson escreve sobre uma política inscrita no próprio ato de ‘desacelerar o jardineiro, fazendo ele prestar atenção aos ciclos naturais que só fazem sentido no desenrolar das estações e anos. Em uma horta compartilhada (principalmente), o tempo se abre para conversas, debates, e uma perspectiva mais ampla do que aquela oferecida pelo espetáculo unívoco e autoreferenciado promovido pela mídia de massa’. Mudança climática, transição da alta do petróleo, coesão comunitária, o meio ambiente, modificações genéticas e política alimentar, dieta, saúde e deficiência – a horta é o lugar que toca e é tocado por todas essas grandes questões globais, querendo esse tipo de atenção ou não. Peter Lamborn Wilson escreve, talvez com um tom de incredulidade, que “Cultivar sua própria horta” soa como uma nova retórica radical hoje. Manter uma horta se tornou – pelo menos potencialmente – um ato de resistência. Que não é somente um gesto de recusa. É um ato positivo. Uma prática”.[vi]
É intrigante relembrar que, no texto de Thomas More, fundador do gênero, Utopia, enquanto a terra e as residências eram mantidas comunitariamente – a cada década acontecendo uma troca de propriedades, em uma mistura decenal entre potlatch e sorteio – e hortas fossem abundantes, resta um traço competitivo entre os utópicos sobre a “poda, cultivo e decoração das hortas, cada homem por si” [vii]
É dentro dessa dinâmica, entre jardineiro individualista e social, identificada tão precisamente nas hortas utópicas de More, que Radicalismo na Horta se dá. Os primeiros capítulos desse livro são formados em torno da politica pública e externa das hortas, seja na forma do uso do jardim e do paisagismo na construção da identidade nacional (como durante o fascismo), ou o lugar da horta no planejamento social, como nos espaços públicos verdes da cidade. Os capítulos seguintes se preocupam mais com a política pessoal e de base da horta. Isso inclui o desenvolvimento ou a transformação da horta como um ato consciente, em geral anti-sistema, politicamente orientado, e a exploração crítica e histórica das maneiras em que a horta e seu cultivo funcionaram como um espaço de expressão de políticas identitárias. A fronteira entre os primeiros e últimos capítulos é confusa, uma vez que uma parte do material atravessa para frente, ou se refere de volta para trás. Porém, o fato é que eu sou um jardineiro confuso, que aprecia a moita repleta ou o caminho semicoberto, a urtiga e o galho caído. Escrever esse livro me fez distante do meu próprio jardim, ao qual me sinto um estranho negligente. Por muitas estações do ano eu privilegiei ideias e historias de movimentos sociais e espaços verdes em detrimento do meu próprio modesto pedaço de terra. Muito, muito em breve eu voltarei para minha própria trama, mas serei acompanhado por um entendimento maior de outras tramas que eu li e escrevi sobre em Radicalismo na Horta, e isso transformou meu pensamento mais que eu esperava. Ao longo dos anos eu escrevi numerosos livros sobre radicalismos contemporâneos, experimentadores sociais, contraculturalistas, assim como seus movimentos e modos de (algumas vezes des-)organização. Eu sempre saio sobretudo impressionado e comovido pela criatividade e idealismo das pessoas envolvidas, assim como, em um grau menor, sobriamente consciente das limitações e perigos potenciais que podem advir de levar mudanças sociais longe demais. Jardineiros, eu achei, seriam um desafio para a minha metodologia corriqueira e resultados esperados! Eu acho que é por isso que alguns anos atrás eu comecei a pensar em um livro como esse. No entanto, me surpreendo mais uma vez com minha própria ignorância. Minha esperança é que você encontre algo novo aqui, instigante e inspirador, e que você experimente o sentimento de entusiasmo que eu tive ao aprender as maneiras como o generoso espaço do jardim pode ter ressonâncias políticas. Me dê um retorno, e se você tiver bons enxertos ou sementes para compartilhar, ainda melhor. Se nós radicalizarmos o jardim juntos, é possível que possamos salvar o mundo, justamente quando ele precisa– nós precisamos– mais de salvação?
Notas do texto
[1] Nota de Tradução: O termo “garden” é usado em inglês para um terreno onde são cultivadas tanto plantas ornamentais e flores, quanto vegetais e alimentos. Em português, o termo jardim é usado para um espaço onde são cultivadas plantas ornamentais e flores, e o termo horta, para um terreno onde são cultivados alimentos. Não existindo em português um termo que abarque o cultivo geral indicado por garden, optamos por usar horta com um sentido estendido, e em situações específicas, o termo jardim quando necessário.
[2] NdT: No original, o termo usado é plot em inglês que tem sentido tanto de enredo quanto de pedaço de terreno, que poderia ser aplicado para um jardim. Nessa tradução escolhemos por usar o termo ‘trama’ que tem implicações espaciais, assim como narrativas.
[3] NdT: Jardins contestadores, no original, defiant gardens, é um conceito cunhado pelo autor Kenneth Helphand que se refere a jardins feitos em situações sociais difíceis, principalmente durante guerras.
[4] NdT: Beltane é a festa Celta que celebra a Primavera.
[i] Noël Kingsbury e Tim Richardson (2005) Vista: The Culture and Politics of Gardens , p. 3.
[ii] Gough, ‘planting as protest’ citação de (2003a) ‘Representing peace? “Can peace be set in stone?”; Kincaid é citado em Kenneth I. Helphand (2006) Defiant Gardens: Making Gardens in Wartime , pp. 3-4. O tradicional mas necessário aviso se mantem: textos por cada um desses autores (Hoyles, Gough, Helphand) foram especialmente uteis para mim em diferentes estágios de escrever esse livro, mas erros – de fatos, julgamento ou posicionamento ideológico – são completamente de minha responsabilidade.
[iii] William Cobbett citado em Martin Hoyles (1995) Bread and Roses: Gardening Books from 1560-1960 , p.1; Bertold Brecht citado em Fraser Harrison (1982) Strange Land: The Countryside—Myth and Reality , p.116; Ativista colombiana citada em Martin Hoyles (2005) ‘The garden and the division of labour’, p. 37.
[iv] Lisa Taylor (2008) A Taste for Gardening: Classed and Gendered Perspectives , p. 6; ‘paisagem polêmica’ é uma frase de Paul Gough (2007) ‘Planting peace: the Greater London Council and the community gardens of central London’; ‘jardins contestadores’ e citações sobre vegetação ruderal são de Helphand, Defiant Gardens , p. 12.
[v] Citação de que os primórdios da televisões ‘estabeleceram a imagem pública do jardineiro’ de Jane Brown (1999) The Pursuit of Paradise: A Social History of Gardens and Gardening , p. 265; ‘radical como um rabanete’ apontamento de Heather C. Flores (2006) Food Not Lawns: How to Turn your Yard into a Garden and your Neighborhood into a Community , p. 21; ‘plantas são espécies radicais’ de Barbara Nemitz (2000a) ‘Affinities’, p. 8.
[vi] Para ‘Votingham’ conjuntos habiatacionais como comunidades intencionais veja Chris Coates (2001) Utopia Britannica: British Utopian Experiments, 1325-1945 , pp. 109-110; Jenny Uglow sobre os significados em transformação de ‘pavilhões e pagodes’ é de (2004) A Little History of British Gardening , p. 304; Chris Carlsson (2008) Nowtopia: How Pirate Programmers, Outlaw Bicyclists, and Vacant-Lot Gardeners are Inventing the Future Today! , p. 82; Peter Lamborn Wilson (1998) ‘Avant gardening’, pp. 9-10.
[vii] Thomas More (1516) Utopia , p. 61.