Em certo momento da minha vida, 2011, eu entrei na Editora Azougue e me deparei com o grande desafio de reeditar um dos livros mais encantadores com que tinha tido contato – Aspiro ao grande labirinto, do Hélio Oiticica. Àquela altura, eu já conhecia o Hélio suficientemente bem e aquela capa verde e rosa do Aspiro me chamava muita atenção. O primeiro trecho do livro é de 1954, quando Oiticica tinha apenas 17 anos. Ali já temos o prelúdio de um artista que irá construir imagens com a escrita e demonstrar conexão total com diferentes tipos de expressão artística.
A ideia da reedição do livro era republicar estes textos, adicionar textos ainda não publicados e associá-los às fotos da exposição “Museu é o mundo”, constituindo uma espécie de catálogo. Me desafiei a descobrir os traços comuns da escrita com a forma plástica e conciliar isso tudo na forma “livro”. Desde então, quatro anos depois, sigo mergulhada no material de uma vida inteira, em um labirinto infinito e incomensurável, conectando a escrita, a obra plástica, a obra cinematográfica e tudo o mais que abarca a obra de Oiticica.
O maior desafio de trabalhar com o Hélio é, sem dúvida, a entrega. Sua obra tem como premissa a possibilidade de mudança de rota, a possibilidade de mudar de ideia. Não existe objetivo, existe mergulho em um processo no qual ninguém saberá no que vai dar. E eu confesso que muitas vezes eu me embaralhei nesse labirinto e me deparei com uma sensação de desespero, de medo do que eu poderia encontrar na obra e dentro de mim. Quando o desespero aparecia, eu me via tentando controlar a obra, controlar os resultados da experiência, tentando medir com régua e fita métrica o labirinto, buscando palavras para descrever racionalmente o que é totalmente sensorial. Foi em um desses momentos de desespero que me deparei com um texto em que Hélio descrevia a concepção de três Prangolés-capa feitos em 1967, o trio com os escritos “da adversidade vivemos”, “incorporo a revolta” e “estou possuído”. Ele escreve:
Há a capa de advertência, com caráter social, como a que se inscreve: ‘da adversidade vivemos’, e da revolta: ‘incorporo a revolta’. Mas esta, ‘estou possuído’, é a chave das outras – esta define um estado de espírito característico como se houvesse eu incorporado com ela a consciência de mim mesmo como ser, ser que se expressa, ser social, ético, político. Seria a mais radical e fundamental nesse sentido, uma nova proposição da reformulação de conceitos estabelecidos: é a consciência, com ela, da relatividade dos conceitos quanto à criação, os que regem teorias e ‘vivências’, etc. Mostra que há ‘uma vivência’ de cada vez, uma formulação a cada nova criação, colocando tudo o mais em plano relativo a ela mesma. Não é a consciência do corpo, mas de si mesmo: é estar provido por si mesmo, pelos pensamentos correntes de cá para lá e de lá para cá. Seria a qualidade de ser (‘estar aí é ser’).
A capa seria, então, nossa nova descoberta da ‘incorporação’, o elemento subjetivo esperado para que seja revelada a condição de ser – é dirigida ao participador mesmo, preferido a ele uma significação para ele mesmo e não uma transposição para uma representação de algo que está.
Que nascerá daí? Sei lá. O triunfante é ter-se consciência desses aparentemente pequenos conceitos, ou para-conceitos.
Vejamos – creio que algo novo, outra vez como diria Klee, algo ‘sem técnica que se faz com a mão’, como se da primeira vez surgisse no panorama do que já criei.
A aventura valerá.
A partir daí, me declarei com a permanente missão de ‘estar possuída’ tanto pela obra de Hélio, como para tudo na vida. Deixo que meus conceitos sejam todos repensados a todo e qualquer momento, o improviso, a intuição e o contato com o outro tomam o lugar do controle racional. Não é o caminho mais fácil, mas Oiticica não exige pouca coisa e tenho dentro de mim que a aventura sempre valerá.
De toda a produção escrita do Hélio, que abarca textos teóricos, cartas, projetos de livros, peças de teatro, crônicas, contos, enfim, uma variedade enorme, sempre me chamou a atenção a poesia e em especial uma coletânea feita entre 1964 e 1966 em um papel que mais parece um bloco de notas desses que ficam jogados na mesa de centro da sala por meses.
Em 1964 Oiticica é levado ao morro da Mangueira por Jackson Ribeiro para pintar os carros alegóricos do desfile de carnaval junto com Amílcar de Castro. Oiticica, a partir daí, inicia o que ele próprio disse ser sua “desintelectualização”. Mário Pedrosa relata esta experiência em 1965:
Um dia, [Hélio] deixa sua torre de marfim, seu estúdio, e integra-se na Estação Primeira, onde fez sua iniciação popular dolorosa e grave, aos pés do morro da Mangueira, mito carioca. Ao entregar-se, então, a um verdadeiro rito de iniciação, carregou, entretanto, consigo para o samba da Mangueira e adjacência, onde a “barra” é constantemente “pesada”, seu impernitente inconformismo estético. (PEDROSA, 1966)
A relação com o morro da Mangueira se estenderá por toda sua vida e influenciará totalmente seu trabalho artístico. A principal mudança vivida por Oiticica nesse momento foi a tranformação de um rapaz da zona sul, de família intelectual, meticuloso e organizado, para um homem que estava descobrindo um contato mais intenso com o corpo através do samba e que iria desafiar a si mesmo a todo momento, buscando o descontrole. Waly Salomão descreve Oiticica no momento em que se conheceram:
Quando o conheci tive o impacto de presenciar um clássico apolíneo prevendo todos os desdobramentos da sua obra, anotando obsessivamente todo e qualquer detalhe de montagem, escrutinando todos os seus vértices e consequências. (SALOMÃO, 1996, p.11)
Antes de 1964 a maioria dos textos de Oiticica eram anotações que ele fazia para aprofundar seu trabalho. Ele elaborava uma rede de escritos e referências, um mapa que o ajudaria a criar os conceitos que estão explícitos em seu trabalho plástico.
A partir de 1964 começa a surgir uma mudança significativa na escrita de Oiticica. Os poemas de “Poética secreta” revelam por um lado um poeta jovem e dedicado, com poemas presos a uma norma fixa, e por outro alguém que já busca uma escrita própria e que se aprofunda em temáticas. Esta preocupação fica explícita no texto que antecede a coletânea:
Começo aqui e hoje o que chamarei de “poética secreta”, ou seja, aquilo em que me expressarei no sentido verbal, poeticamente. O verdadeiro lírico é imediato, isto é, o imediato que se torna eterno na expressão poética lírica, exatamente o polo oposto da minha obra plástica, toda orientada para uma expressão que exclui o passageiro, os acidentes mesquinhos, apesar de os abraçar. Está, porém, “acima” deles, em plano ideal, o que não acontece na lírica, em poesia, pois o que poderia ser mesquinho, o dia a dia, torna-se vivência e eterniza-se no poema (se bem que o lírico se oriente também para um plano ideal, mas o “passageiro” é que constitui o cerne do material). ‘Secreta’, é o que quero, pois que não sou poeta, mas uma imperiosa necessidade me leva à expressão verbal. (OITICICA, 2009)
A partir daí Hélio entende a escrita como parte de seu trabalho como artista e aprimora cada vez sua produção textual, preocupando-se com o espaço do texto na página e com as formas que as palavras escritas criam.
Peguei a “Poética secreta” para ter como norte na minha jornada pelas obras de Oiticica. Como é um marco de transição do artista, eu posso explorar suas diferentes fases através dos poemas e perceber as conexões possíveis entre escrita e plástica tanto em termos de forma como conteúdo.
No geral é comum a todos os poemas da coletânea a valorização do corpo, do tato e dos sentidos, além de elementos da natureza, como a água e a terra. A água com o sentido de mergulho e de fluidez e a terra com o sentido de fixidez, mas também ligada à dança e ao corpo. A natureza e o humano relacionam-se de maneira múltipla, uma para ampliar o outro. Hélio, em seus poemas, se apropria do dionisíaco e lhe dá realização concreta.
De todos os poemas de “Poética secreta” e de todas as possíveis conexões que podemos criar, separei dois que acredito que sintetizam tanto a escrita quanto a obra plástica do artista:
O primeiro poema da coletânea é de agosto de 1964:
Este poema, que não deixa de ser uma apresentação da coletânea, coloca os sentidos em primeiro plano. O artista que já começou a vivenciar a Mangueira, o samba, o morro, começou a adquirir um novo contato com o mundo e que tenta inserir essa vivência na escrita.
O poema inicia-se com o cheiro, em seguida é colocado o tato e depois se menciona a memória, a lembrança. O olfato e o tato se imbricam sinestesicamente com a visão, o que é visível pela forma, nas quebras e sinuosidades a que o artista submete o poema. O sentido, o cheiro, toma uma conotação nova. O cheiro se intensifica quando relacionado com o tato e é esta conexão dos dois que traz um “recomeçar dos sentidos”. O cheiro torna-se um novo tato, o “sentir pensa” e o “pensar sente”.
Oiticica mistura o concreto do cheiro e do tato com o abstrato, da lembrança. Os sentidos se unem com o que é racional e filosófico, apresentado na segunda estrofe. Há ainda o diálogo entre o presente e o futuro.
A segunda estrofe é aberta por uma interjeição e em seguida temos versos todos com o “á”, aberto e acentuado. A forma da segunda estrofe sugere uma progressão gradativa, de construção. O verso “punhado de futuro” dá materialidade a algo abstrato, aproximando-se daquilo que ainda não é. O poema é um conjunto de signos plásticos, aqui colocados de maneira que adquiram outras esferas, sonoras. A construção do poema se dá na concatenação das artes, do encontro de diferentes maneiras de expressão.
A palavra “apreensão”, colocada em destaque na segunda estrofe, comunica-se com a “absorção”, da primeira. As duas palavras possuem uma noção comum, mas absorção tem um sentido mais explicitamente físico, enquanto a apreensão tanto se dá material quanto intelectualmente. A “apreensão” fecha o poema como aquilo que deve tornar-se sensível, construção criada pelo artista desde o início do poema
A quebra que se faz a partir do terceiro verso coloca o poema sob outra perspectiva, lança o leitor nos sentidos descritos. A forma como ocupa a página é inovadora em sua escrita e muito se assemelha a um de seus Metaesquemas, uma obra de 1958.
A construção do poema se dá com uma nova compreensão dos sentidos. Hélio propõe uma nova maneira de leitura e olhar, uma nova relação do leitor com a obra e é por isso que não podemos dizer que há uma separação deste trabalho escrito com o trabalho plástico, pois ambos fazem parte do mesmo processo, abordam as mesmas questões. Seus poemas apontam a direção que seguirá sua obra plástica.
Em um texto de 1972 Oiticica descreve os Metaesquemas como “obsessiva dissecção do espaço”, “plano que se quer reduzir à linha” e “encontro traço-plano horizontoverticaluzente”.
Os Metasquemas são da fase ainda concretista da obra de Oiticica, que trabalhava apenas com o quadro e cores. O conflito entre o espaço pictórico e o extra-pictórico é evidente e prenuncia o que virá a seguir, que é a superação do quadro. Com os Metaesquemas Oiticica cria jogos ópticos, gerando uma ilusão de movimento. O deslocamento da diagonal dos retângulos desestruturam os quadros, e a relação das cores com o fundo gera contraste. A cor no Metaesquema aparece tímida, presa na estrutura formal, muito diferente do que teremos a seguir na obra do artista. Em 1959, com sua aproximação do grupo Neoconcreto, Hélio inicia o que chama de “estado de invenção”, que torna-se a marca do início da sua saída da tela para o espaço ambiental.
O poema de “Poética secreta” é uma evolução do que foi conceituado com os Metaesquemas. Nos dois momentos há a relação entre o concreto e o abstrato. No poema, verifica-se a concretude do sensível e a abstração da lembrança, enquanto no Metaesquema, os concretos retângulos verdes adquirem movimento e vibração, gerando a abstração. No Metaesquema também há a união do racional com o sensorial, proposto por Hélio quase uma década depois, apenas de forma mais sutil. Assim como a obra plástica, o poema também adota uma escrita “horizontoverticaluzente”. As duas obras apresentam a força da união de contrários. A apropriação do espaço em branco tanto na tela quanto na página é semelhante. A mancha do texto do poema se conecta com a forma que os retângulos esverdeados tomam no quadro.
O outro poema da coletânea, já um dos últimos a serem escritos, em 1966, vai valorizar o momento presente e a ideia de “fiar”, da possibilidade de se reinventar a todo tempo, aquela falta de objetivo que é presente em toda a obra de Hélio:
Este poema anuncia o que está por vir em sua trajetória e por isso conecta-se com uma obra e um texto da fase final de sua vida, fase na qual a ideia de obra inacabada, obra que nunca fica pronta e sim está pronta para ser construída com o auxílio do experienciador está mais forte. O texto e a obra são de 1978:
o READY CONSTRUCTIBLE substitui-herda o conceito de READY MADE
ele instaura
FUNDA ESPAÇO
INOVA-O FUNDA ESPAÇO ( EM ) ABSOLUTO
: herda o IN-OUT
o dentro e o fora huis-clos
aberto-fechado
aberto-aberto
fechado-fechado
(…)
esta obra é a mais fina linha
entre BRUTALISMO e MATEMÁTICA :
a maior precisão no bricklaying
de tijolos irregulares seguindo
a topo-grafo-logia dos mesmos:
periferias interno-externas
q se justapõem-superpõem
em estrutura finamente matemática:
não me refiro a um tipo de
“matemática segunda-natureza”:
não ! : só à situação de
possíveis matematizações de
estrutura-obra-bricklaying
q comandaram a feitura
prolongada deste
READY CONSTRUCTIBLE (MADE) OBJECT :
(…)
este READY CONSTRUCTIBLE N.1
é o exercício meu extremo entre o READY e o INACABADO :
estrutura
determinada sem começo-meio-fim:
impossibilidade
e total declaração de q a existência de uma
possível escultura, possa ter sentido
nos dias de hoje :
escultura-
monumento-arquitetura gratuita
(…)
esta é em última análise
um exercício da concreção do não concluído
ou
a proposta de estruturas determinadas do
exercício do indeterminado :
(…)
o READY CONSTRUCTIBLE N.1
q funda espaço
se ergue num terreno
(mini-maxi terreno já q
é algo sem escala)
barrento como se fora algo
moldado todo da mesma massa : como
se fora (e o é) algo indeterminado
não se sabendo onde começa
(ou por onde se começa)
o sólido e o arenoso
e quem sabe o q poderia vir a ser
lama-líquida ! :
o pedrogoso:
exercício de
não paisagismo
aquilo q
funda espaço está não só além
como imune ao
paisagismo !
é a incorporação
(in-corporação) total
daquilo q se vislumbrava
antes como ambiental !
ela é em ultissima análise
a proposta para uma exercitação
do não-determinado
precisamente estruturado
(daí a fina linha
BRUTALISTA-MATEMÁTICA antes invocada ! )
: ela se ergue e funda espaço
como se fora algo que se estruturou-fez
de sonoridades a longo tempo enclausuradas
na terra de onde se ergue-funda
(…)
A forma em blocos do poema “fiar”, com versos deslocados, lembra a obra de tijolos com buracos, fendas. A ideia do fazer e desfazer e principalmente o esquecer e o não-esquecer, em conjunto com a dicotomia passado/presente, são uma ótima ligação com a obra e poema de Hélio ao final da vida, e ainda servem como um ótimo enlace para “Poética secreta”, pois demonstra o poder do momento.
Quando comecei esse trabalho, não imaginava o quanto iria me identificar com Hélio Oiticica. Em uma análise superficial de sua vida e obra, estamos sujeitos a julgá-lo como um artista ingênuo, aquele artista que não sabe muito bem o que está fazendo. Mas ele nos contraria mostrando-se muito consciente de seus passos, principalmente através da escrita. Seus movimentos são precisos, mesmo que não apontem para uma direção exata.
Tanto os poemas como as imagens das obras de Hélio Oiticica estão disponíveis online para quem quiser se aventurar nesse labirinto e explorar novas conexões, novos caminhos.
Em relação ao meu projeto, posso dizer que nunca imaginei me identificar tanto com esse artista. Quando iniciei a minha pesquisa eu tinha um plano, mas eu não sabia aonde iria chegar. Estava interessada na entrega, eu buscava me perder para, ali dentro, me encontrar. E é isso que vejo na obra desse artista, um homem inquieto, criando labirintos infinitos à sua volta em busca de conclusões.
É difícil pensar na totalidade da obra de Oiticica. Por sua constante inquietação, o artista participou de diversos movimentos artísticos distintos, o que faz com que nós o separemos em fases. Não dividir a obra de Oiticica em fases foi uma das minhas premissas. Se me propus a estudar um artista que tem como objetivo a entrega total, que buscou estar aberto para tudo aquilo que lhe aparecesse como inovador, partir essa obra em pequenos pedaços e não construir com eles o labirinto seria no mínimo injusto.
Eu escolhi construir o meu labirinto, entrar nele e não sair nunca mais. Eu escolhi me permitir construi-lo, descontrui-lo e reconstrui-lo sempre que achar necessário, mas nunca me livrar dele. Eu aprendi com Oiticica a incorporar a minha revolta, a estar possuída a ponto de buscar me afetar verdadeiramente pelo o que está a minha volta e de enxergar nas adversidades, a possibilidade de viver.
BIBLIOGRAFIA
COELHO, Frederico. Livro ou livro-me: os escritos babilônicos de Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.
FIGUEIREDO, Luciano, PAPE, Lygia e SALOMÃO, Waly (Org.). Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1986.
OITICICA FILHO, César (Org.). Museu é o mundo. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2011.
SALOMÃO, Waly. Hélio Oiticica: qual é o parangolé. Rio de Janeiro, Relume-Dumará: Prefeitura, 1996.