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Arte para Todos, Arte para Poucos

The Western Round Table on Modern Art

1949

agosto, 2015

Marcel Duchamp e Gregory Bateson durante o simpósio

Marcel Duchamp, Gregory Bateson e Frank Lloyd Wright, referências nos campos da arte, antropologia e arquitetura comparecem ao lado de outros importantes convidados no hoje célebre simpósio The Western Round Table on Modern Art (1949) para revisitar e discutir as contribuições e questões levantadas pela arte moderna.

A seguinte tradução, com referência na transcrição e áudio disponibilizados online recentemente, trata de momentos em que se discutiu a criação artística, o papel do artista e a relação com o público, sobretudo no primeiro dia e na sessão de encerramento do simpósio no quarto dia. Posteriormente, os convidados tiveram acesso à transcrição, fizeram correções na fala e em alguns casos a suprimiram. Quando indicado, optamos por manter a versão oral.


 

George Boas/Moderador: Senhores, como vocês sabem é graças à generosidade da Associação de Arte de São Francisco que estamos reunidos nesta tarde para discutir uma questão que é da preocupação de todos, tenho certeza, porque todos que estão nessa mesa, com exceção do moderador, fizeram contribuições decisivas para a civilização contemporânea nos campos da arte, crítica, museologia e história da arte. Devido às suas contribuições pra Modernidade, no sentido ambíguo do termo, em vez de contribuições ao Passado, nós sofremos ataques de muitas pessoas poderosas no mundo de hoje. Para começar, ataques baseados no fato, ou no que se supõe ser um fato, de que nós expressamos a estrutura de uma civilização em decadência; que estamos tentando confundir o público porque nós mesmo somos confusos. Pelo que parece, também somos vítimas do Mercado da Arte e empresários musicais que tentam nos fazer produzir algo novo para eles fazerem dinheiro; e nós supostamente estamos prontos para fazê-lo.

Tais ataques com certeza são comuns a todos vocês. É claro que houve um tempo em que o público, ou ao menos certa parte do público, estava disposto a defender aqueles que criaram algo novo; mas os tempos não são mais como eram antes. Por isso, é da maior importância que aqueles que trouxeram contribuições excepcionais para a cultura contemporânea sejam chamados esta tarde para discutir esses problemas de vital importância.

Como vocês devem ter escutado, as questões se dividem em três partes. Na sessão de hoje à tarde, esperamos discutir o problema geral de por que no mundo artistas fazem obras de arte, pintores pintam, músicos compõem e escritores escrevem, se é que existe a possibilidade de responder essa pergunta.

Roberto Matta - The Displaced Continent (1944)
Roberto Matta – The Displaced Continent (1944)

Marcel Duchamp: A arte não pode nunca ser propriamente definida pois a tradução de uma emoção estética em uma descrição verbal é tão imprecisa quanto a descrição do medo quando se foi de fato assustado.

Por “Arte para Todos, Arte para Poucos”, nós queremos dizer que todo mundo é bem vindo para olhar livremente para obras de arte e tentar escutar o que eu chamo de um eco estético. Também significa que a arte não pode ser entendida através do intelecto, mas é sentida através da emoção que apresenta alguma analogia com a fé religiosa ou com a atração sexual – um eco estético. Isto é tudo que posso dizer para dar uma equivalência objetiva ao modo que uma emoção estética se manifesta. O ponto importante aqui é diferenciar gosto do eco estético.

O gosto passa uma sensação sensível, não uma emoção estética. O gosto pressupõe um observador dominante que determina o que gosta ou não gosta, e traduz isso em “belo” e “feio” quando sensivelmente satisfeito ou insatisfeito.

Bem diferente, a “vítima” de um eco estético está na posição comparável a de alguém apaixonado ou de um crente, que deixa de lado as exigências do seu ego e, desamparado, submete-se a uma prazerosa e misteriosa força. Enquanto exercendo seu gosto, ele assume uma atitude de comando; quando tocado por uma revelação estética, o mesmo homem entra num estado de espírito quase de êxtase, torna-se humilde e receptivo.

[…]

Duchamp - Nu descendant un escalier no.2
Marcel Duchamp – Nu descendant un escalier no.2 (1912)

Moderador Boas: Bateson, acho que você tem algo a dizer.

Gregory Bateson: Veja bem, meu trabalho não é tanto com a pintura moderna ou contemporânea, mas com os produtos artísticos de culturas que não se meteram em um estado tão confuso, como a Nova Guiné, a Índia Holandesa, e lugares assim. Se você for pra lá, vai encontrar pessoas que fazem e olham para as obras de arte e vivem, no seu próprio entender, em um mundo completamente inteligente. Eles saberiam que o céu é azul e o porquê da água ser molhada. Eles não vivem em uma cultura em que a maioria das coisas são misteriosas ou escondidas nas enciclopédias, senão em fontes ainda mais obscuras. Eles sentem que conhecem o mundo em que vivem, e os objetos de arte que veem são produzidos através desse mundo mais homogêneo. São afirmações, se preferir, mágicas ou estéticas do sentido que o mundo faz para eles.

Na terminologia do “eco estético” de Duchamp, o eco estético é algo que pode ser compartilhado por um grande número de pessoas naquele grupo. Por outro lado, vivemos em uma cultura que está em rápida mudança, o eco estético levado a cabo na arte moderna, até onde eu posso ver, tende a ser a esthesis da nostalgia por um mundo constante; ou a estética da resistência à mudança, o sentimento de ansiedade frente à mudança é uma história muito mais complicada do tipo de coisa que eu profissionalmente costumo lidar.

Kenneth Burke: Eu acredito que o verdadeiro problema aqui – sem haver uma completa solução para ele – é que há na sociedade uma cultura da especialização; e uma cultura especializada tem essa característica específica no que concerne os problemas de comunicação. Ou seja, um engenheiro de pontes que sabe tudo sobre como se constrói pontes, e ninguém mais que usa a ponte sabe como ela foi construída. Apesar disso, ele se comunicou caso tenha feito uma ponte que as pessoas consigam atravessar. Isto é, dentre todas as profissões, há comunicação entre especialistas das ciências, devido a concretização de um ato em especial.

No campo da arte existe acima de tudo o problema da comunicação. Mas o artista, também um especialista, tem um conhecimento especial; e na medida que o público não consegue entender sua linguagem especial, eu acho que aí temos um problema adicional que não é possível resolver completamente na nossa sociedade.

Magritte - Retrato
René Magritte – Portrait (1935)

Em relação à questão do gosto, há um quadro – o “Retrato” do Magritte – que trata diretamente deste problema. Ou seja, ele vai no sentido específico de haver um pedaço de presunto no prato, que de fato atrai a atenção para a comida. Ao mesmo tempo, no meio do presunto este olho vigilante causa repulsão incitando o sentimento de culpa. Então você aí na verdade tem dois impulsos contraditórios.

Acredito que a apreciação da arte nesse plano leva a um tipo de complexidade interessante. Senão, eu acho que é possível se sentir escandalizado. É precisamente esse efeito: o escândalo frente a algo que poderia ser interessante.

Bateson: Ao olhar pra estas imagens (exposição de arte moderna selecionada para o simpósio), eu vejo uma cultura em estado de mudança – mudando suas premissas mais estabelecidas. Se pegarmos o Jacques Villon… O que ele fez foi afirmar algo do tipo: “Coordenadas cartesianas, perspectiva…” – então ele coloca essa linha fluindo livremente por cima, para dizer – “Sim, mas…” – como se, confrontado com a rigidez das coordenadas, o ponto ainda pudesse sair pra um passeio.

Jacques Villon - Abstraction (1932)
Jacques Villon – Abstraction (1932)

Ele fez um protesto contra as formas de rigidez da tradição científica do século XIX que chega na cultura a partir da retangularidade de todo cômodo em que nos sentamos, por exemplo. Todas estas coerções são essencialmente coerções estáticas. O Villon, o Roberto Matta, Max Ernst na fase surrealista, o “Nu descendo a escada” de Duchamp, esse Mondrian que fagulha – todos estão fazendo declarações sobre processo, movimento e dinâmica. Eu acho que há uma uniformidade extraordinária no que essas pessoas na verdade estão tentando expressar. Existe uma grande quantidade de frentes de batalha, lutas nos mais variados campos em diferentes direções, mas com o tema em comum de que não vamos ser coagidos em determinadas formas.

Agora considerando algo como a famosa imagem de Ofélia – de Burne-Jones? – com folhas e flores no rosto. Este quadro, ou o artista que pintou o quadro, diz essencialmente: “Se tiverem lágrimas, preparem-se para derramá-las agora!” – para citar Marco Antônio que também era um falso sentimental…

Já a posição do artista moderno, do modo que vejo enquanto antropólogo, trata-se de um deslocamento na concepção das relações humanas em que nos recusamos a aceitar esta forma de coerção e que passa a ser muito mais próxima da tragédia grega. A tragédia grega não diz: “Se tiverem lágrimas, preparem-se para derramá-las”, e sim “aconteceu desta maneira ou daquela, e talvez os deuses não apenas deem risadas como também chorem – você quem sabe”. Eles estão preocupados em dizer: “É assim que acontece”.

Ou leve em consideração “A Terra Desolada” de T.S Elliot, que não é nem engraçado nem trágico. É um diagnóstico sombrio, tanto é possível rir quanto chorar, mas ele está aí. Sua sinceridade reside na sinceridade do diagnóstico de uma época da qual “A Terra Desolada” é a descrição. Trata-se da expressão dessa época engolida nas profundezas do próprio interior. “Crime sem paixão” – sim, senhor (Frank Lloyd Wright anteriormente havia assim caracterizado a “arte moderna”); mas a corrupção da paixão é a coisa que estamos enfrentando; e eu acho que precisamos lutar essa batalha. Acredito ser esse o sentimento dos artistas modernos.

[…]

Miró - Person Throwing a Stone at a Bird
Joan Miró – Person Throwing a Stone at a Bird (1926)

Duchamp: Nós não enfatizamos o suficiente que a obra de arte é independente do artista. A obra de arte vive por si mesma, e o artista que acaba por fazê-la é como um veículo irresponsável. Nenhum artista em nenhum momento pode dizer: “Sou um gênio. Vou pintar uma obra-prima”

Bateson: Agora, Duchamp, o que está dizendo é que o artista é o caminho pelo qual a pintura se faz pintar. Trata-se de algo muito sério e importante de se dizer, mas implica que em algum sentido a obra de arte existe antes de estar no quadro.

Duchamp: Sim, tem de ser puxada pra fora.

Frank Lloyd Wright: Muito bem, senhores, é possível colocar desse jeito, se vocês quiserem, mas nenhuma obra de arte jamais vai ser maior que o artista.

Duchamp: Quem é grande, a obra ou o homem? Essa é uma outra pergunta.

[…]

Alfred Frankenstein: Eu gostaria de perguntar ao Milhaud se ele sente que a criação de obras de arte no seu caso resulta de uma sugestão misteriosa e completamente incompreensível?

Darius Milhaud: Não completamente, mas o suficiente. Quando se começa uma obra, algumas vezes se tem o sentimento de que ela não está pronta para ser iniciada. Por quê? Porque a obra ainda está longe de você. Algum dia, ela vem. Por quê? Porque está madura.

Bateson: Nós temos esta mesma experiência com uma nova teoria científica

Milhaud: E de vez em quando, como o Duchamp afirmou, e eu concordo completamente, a obra guia você. Em muitos casos o criador, em outra obra, acaba se contradizendo inteiramente. E ainda bem! Se não fosse assim, ele se manteria sob um rótulo. Mas ele é levado, não apenas por seu pensamento, mas por – chame do que quiser, inspiração, se não tiver medo de usar a palavra. É claro que a obra também te guia, mas se você não tiver uma técnica apropriada, então a coisa começa a ficar mal.

Andrew C. Ritchie: Em outras palavras, Milhaud, a obra pode sair correndo.

Milhaud: Com certeza ela pode. E que seja pro melhor, pois se ela sair correndo, provavelmente nem devia ter sido iniciada em primeiro lugar.

Duchamp: É um tipo de corrida entre o artista e a obra de arte.

Matisse - Woman with a hat
Henri Matisse – La Femme au Chapeau (1905)

[…]

Wright: Eu acredito que todo artista que se preze está assentado no que ele considera princípios, e a partir deles, seu trabalho, seu chamado, seu sentimento e a realização do sentimento ganha expressão. Caso contrário, ele não tem – não é um homem de confiança; não vai fazer nada por si mesmo. É provável que cometa suicídio no que faz.

Moderador Boas: O Duchamp tem um comentário a respeito disso.

Duchamp: Apenas que considerações sobre a técnica, os cânones ou princípios são secundárias para a questão que o Frankenstein trouxe à tona.

Wright: Você quer dizer que princípios são secundários?

Duchamp: Sim, na obra-prima.

Wright: Eu acho que não. Eu acho que até os princípios estarem onde eles pertencem, e até o artista estar alinhado com seus princípios, a inspiração vai fazê-lo se perder. Somente se tiver a consciência do princípio no que está empenhado, amor por suas manifestações, e sua obra ser uma manifestação disso, ele será um grande artista.

Milhaud: Sim, mas você precisa deixar o campo aberto para imaginação e poesia.

Wright: Apenas na medida em que um homem estiver assentado sobre princípios ele estará seguro para abrir sua alma a algo inspirador e tirar alguma coisa daí.

Richie: Wright, princípios de quem? Chega-se independentemente aos princípios?

Wright: Princípio é. O homem não o faz. O princípio não é projetado. Princípio é. Deus é princípio.

Duchamp: Isso também pode ser discutido.

Moderador Boas: Duchamp, você quer discutir?

Duchamp: Não, eu quero é escapar dos Princípios, da Verdade, da Arte, de todos esses conceitos metafísicos que não fazem parte da nossa discussão.

Wright: Duchamp, com licença por um momento. Existiu esse grande princípio que escreveu um poema. Seu nome era Mallarmé e o título do poema era “Les Yeux”. Ele foi pro submundo, usou drogas. Fez tudo o possível para destruir esse sentimento de princípio e só conseguiu destruí-lo ao destruir a si próprio.

Duchamp: Sim, mas você não sabe o que Mallarmé teve de passar para ser reconhecido. Ele é um dos artistas modernos.

[…]

Klee - Dorf Carnival
Paul Klee – Dorf Carnival (1926)

Bateson: Eu gostaria de sugerir o uso da palavra “magia” em um sentido que não é ortodoxo na antropologia, mas que foi proposto por R.G Collingwood. Eu diria que uma ação, um ritual, uma obra de arte tem magia na medida que afirma no agente ou participante – normalmente de maneira inconsciente – alguma premissa de valor considerável. É possível que a premissa seja uma paródia, naturalmente. Não estou dizendo que é uma premissa positiva, também pode ser negativa. Pode ser ódio, amor ou a capacidade para odiar ou amar… A distinção que eu quero fazer é entre as ações e objetos que têm esse efeito, em oposição ao entretenimento. Você assiste a um filme, o filme termina, você passou por alguma coisa sem nenhuma emoção a mais do que tinha antes. Não aconteceu nenhuma mudança – nenhuma força foi afirmada em você ou liberada pela coisa que você assistiu. Talvez a questão importante seja nos perguntarmos se essas imagens afirmam algo de uma outra ordem.

Burke: Há um elemento que acredito ser relevante pro assunto. Refiro-me aos comentários de Diderot acerca das “posições da pantomima”, sua visão de toda sociedade humana enquanto pantomima. Eu relacionaria estas ideias aos quadros de Klee, lembrando como em um período Klee trabalhou com máscaras, para então passar a uma forma mais sutil de máscara – tendo em vista que os próprios objetos são máscaras, as imagens que o pintor faz uso são as “posições da pantomima”. Aqui é onde a magia destas imagens entra em cena. Isto é, elas carregam uma diferenciação subjacente. E tal diferenciação é o fator formativo do mundo hoje em dia, pois vamos da natureza para o mercado imobiliário, para em seguida ir do mercado imobiliário para o que chamamos de natureza – mas realmente o que a natureza é enquanto abordada a partir do mercado imobiliário. Do mesmo modo, vamos da nudez, pro vestuário, e pro nudismo. Na verdade, o nu na pintura está longe de ser uma criatura meramente despida. Em sua “filosofia das roupas”, Sartor Resartus, Thomas Carlyle descreve todas as aparências sensoriais enquanto tipos de vestuário, dessa forma o nu seria um uniforme altamente generalizado.

Agora, o mistério surge quando há uma comunicação entre diferentes tipos de ser. Sendo assim, há mistério na relação entre os gêneros, entre jovem e ancião, ou entre pessoas de diferentes status social. Eu sinto que os motivos básicos que alimentam tais imagens em uma obra são “enigmas”, pois estas imagens, e os objetos correspondentes a elas, são “máscaras” que equivalem a complexidade de nossa estrutura social…

Parece que tais motivos estão gradualmente se revelando em nossa sociedade, onde devido à forte tradição democrática, tendemos a pensar em termos individualistas – buscando em uma obra de arte sobretudo os meios de expressão própria do artista.

Mas eu vejo uma ênfase diferente surgindo aqui. Certamente o artista está se expressando, mas ele precisa usar algum tipo de linguagem – e esta linguagem vai ser a linguagem dos “enigmas”, dos objetos enquanto “máscaras”, das “posições da pantomima”, e do gesto; enquanto o mistério passa como em um carnaval.

Max Ernst- The Tottering Woman
Max Ernst- The Tottering Woman (1923)

[…]

Bateson: Para ampliar, na verdade, a palavra “magia” até cobrir não apenas afirmações sobre a interioridade do artista, ou do espectador, mas também afirmações sobre o mundo em que vivemos.

Burke: Sim, e os objetos de nossa experiência sensorial, do modo que imaginamos na arte, estão repletos de uma essência “divina”. Quando Tales de Mileto afirmou que “o mundo está cheio de deuses”, ele não estava dizendo qualquer besteira politeísta ultrapassada. Ele fazia uma declaração no fundo correta sobre objetos e imagens. O mundo está cheio de deuses – está repleto de diferentes entidades “espirituais” no sentido de que cada uma das formas com que o artista lida tem um espírito, o espírito das diferenças. Existem objetos majestosos, objetos judiciais, objetos policiais, objetos da salvação, objetos infernais, e com respeito a isso eles são “enigmáticos”.

Bateson: Anteriormente eu cai numa contradição, quando estávamos discutindo magia… Eu fiz um elogio do mágico, o que em certo sentido quer dizer sermão. Mas, por outro lado, eu afirmei que a grande virtude da arte moderna é que ela não faz isso – que não pega o espectador pela lapela e diz você deve sentir isso e aquilo. Há um deslocamento no nível de abstração dessas duas afirmações, não sei como resolver…

Burke: Será que podemos tentar uma digressão para ver se ajuda? Eu abordo tais questões a partir do
ponto de vista literário, mas vou procurar os elementos correspondentes na pintura…

Estou pensando na distinção da teoria literária entre retórica e poética. A poética lida com a obra em si, sua categoria, suas propriedades, as relações internas entre as partes, etc. Já a retórica trata da capacidade persuasiva da obra, seu apelo, o que acaba envolvendo considerações éticas…

Mas perceba o que acontece por volta do começo do século XIX, em relação às teorias de
arte e literatura. Aqui o estudo da estética ganhou centralidade, o que teve muitos resultados positivos. Por exemplo em dar vitalidade às análises do primor artístico. Mas também teve um resultado lamentável. A estética foi concebida principalmente em termos de uma oposição superficial ao prático. Assim, o domínio prático incluía o instrumental e o moral, logo a estética se tornou, por definição, o que lida com o que não tem utilidade e o não-moral. Ocorreu uma excessiva simplificação.

Contudo, isto teve outro importante desdobramento – e acredito que nesse ponto, Bateson, a sua posição fica clara. Justamente na medida em que a preocupação com os aspectos retóricos foi deixada de lado pelo estudo formal de arte e literatura, ela informalmente encontrou espaço em outro lugar. As novas ciências, como a sociologia, a psicologia social, a antropologia, e mais recentemente a semântica, assumiram os mesmos campos de pesquisa que a teoria estética havia largado. Sendo assim com a palavra “magia”, por exemplo. A antropologia reafirmou, em termos de “magia”, a persuasão negligenciada pela retórica; enquanto a estética se preocupava com a expressão em termos de apelo, comunicação, dentre outros.

Bateson: Acredito ter resolvido minha contradição com a sua ajuda. Seria justo dizer que a exposição do Klee é uma afirmação válida ou realmente intensa da seguinte proposição: “Não deves me coagir. Tenho o direito da minha própria visão retiniana, assim como tens o direito de sua própria visão retiniana”, de modo que as pinturas de Klee estão no lado mágico, levando em conta que ele faz essa afirmação em particular?

Fernand Léger - Contraste de formes (1913)
Fernand Léger – Contraste de formes (1913)

Duchamp: Sim, não há coerção aí.

Bateson: Não apenas não há coerção, há uma insistência na não-coerção, o que é um passo em direção da positividade.

Duchamp: O que se baseia no fato do artista ser incapaz de expressar em palavras quais foram suas intenções, qual foi sua mensagem. Na verdade, o importante é a obra de arte, e não o artista.

Bateson: Então, supondo que a coercitividade da arte do século XIX se tornou o pano de fundo pra reação da arte de nossos dias com sua insistência na não-coerção, e pensando numa síntese entre os dois polos, a síntese trata da posição que você assumiu.

Duchamp: Sim, sim. Eu acho que o importante é a introdução da obra como o principal. Deixe que o artista seja secundário. E também o que chamamos de espectador vem depois do que sobrou do século passado, das obras de arte e não dos artistas. Se somos tão orgulhosos pra nos considerarmos seres humanos, não deuses… Quero dizer, é tão absurdo colocar o homem antes da obra. Veja, nós damos vida a uma coisa que tem vida, tem uma vida própria enquanto obra-prima.

Bateson: Sim, talvez exista aí um assunto que devêssemos levar mais em consideração.

Duchamp: Em outras palavras, o artista é apenas a mãe.

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