Antes mesmo que Italo Calvino, intrigado com a perenidade poética das grandes obras da literatura mundial, publicasse na sua coletânea de ensaios, Por que ler os clássicos (1991), a conclusão de que os clássicos são aqueles que estão sempre sendo relidos, e não lidos, a cada releitura, nota-se que, historicamente, a própria capacidade dessas obras em se desdobrarem em novas linguagens e interpretações tem sido aquilo que ainda as garante uma série de possibilidades no mundo das artes e do pensamento crítico. A história do Édipo Rei de Sófocles é talvez um dos exemplos mais vigorosos e etimologicamente corretos em relação à leitura de Calvino sobre a presença e as virtudes da obra clássica. Isso pois o enredo dessa que Aristóteles, em sua Poética, definiu como o exemplo perfeito da tragédia grega rompeu radicalmente com o campo da dramaturgia, ganhando diversas reinterpretações que vão desde as apropriações dos seus paradigmas críticos em análises como as de Freud e Foucault, até o próprio teatro, a literatura, a dança (a partir de Stravinsky), e mesmo à música com a banda The Doors, na canção The End. No cinema foi Pier Paolo Pasolini quem deu vida a uma versão homônima, lançada em 1967, tida até hoje como a principal releitura da obra no escopo da sétima arte. Entretanto, é possível dizer que ninguém se apropriou de tal história com tamanho desapego e originalidade quanto o diretor francês Louis Malle.
Com um ar jovial e único na filmografia de Malle, o filme O Sopro no Coração (Le Souffle au Coeur), lançado em 1971, já atravessa mais de quatro décadas embalado pela sua atmosfera cool e demonstrado para os seus espectadores o quão pouco envelhecera em todo esse tempo. O filme narra a história do garoto Laurent, de 15 anos, filho caçula de um casal que vive no seio de uma tradicional família burguesa na cidade de Dijon, na França. O pai, Charles Chevalier (Daniel Gélin) é um ginecologista que por seu tratamento rígido com a família tornou-se o principal desafeto de Laurent. A mãe, Clara Chevalier, interpretada por Lea Massari, é o porto seguro do garoto que vive em meio aos percalços da transição da infância para a adolescência. Forçado pelos dois irmãos a perder a virgindade em um bordel, Laurent transita entre as descobertas do mundo adulto e as aspirações de uma personalidade precocemente intelectual. Diferentemente dos demais garotos da sua idade, Laurent dedica boa parte do seu tempo aos discos de jazz, de artistas como Charles Parker e Dizzy Gillespie, além da alta literatura e dos livros de filosofia. Politizado e extrovertido, Laurent é a representação de uma geração que prefere as dúvidas existenciais à certeza da salvação religiosa. No entanto, afligido por um sopro no coração, o garoto é enviado para internação em uma clínica de tratamento. Acompanhado pela mãe, ele vê os seus laços se estreitarem até a consumação de um ato incestuoso entre mãe e filho.
O que haveria então de original na adaptação da história do Édipo Rei criada por Louis Malle? Além de toda a liberdade e descompromisso com a ideia de ser uma adaptação fiel à história original, a releitura se passa na França de 1954, mesmo ano da queda da província de Dien Bien Phu, batalha que marcou o fim da Guerra da Indochina e do império colonial francês no Vietnã. Por sua vez, o filme pontua a saga do jovem protagonista como um emblema libertário frente ao contexto de luta política e das tensões que ainda perpetuam entre a França e suas ex-colônias. Pelas ruas de Dijon, Laurent assiste aos embates entre manifestantes colonialistas e anticolonialistas enquanto presencia a crise ideológica que fratura o seu contexto burguês. Ironicamente, como ressalta o artigo Louis Malle e a paixão do incesto, da antropóloga Débora Breder, o diretor dá vida à consumação do incesto entre mãe e filho, em meio às comemorações da Revolução Francesa no dia 14 de julho, data que “marcaria a libertação de Laurent” em meio à comemoração da “ruína do Ancien Regime e o advento de uma nova ordem”. Contudo, o maior trunfo de Louis Malle e, ao mesmo tempo, a origem de toda polêmica que envolve o filme, é a representação elaborada em O Sopro no Coração da visão crítica do diretor sobre a interdição ao incesto. Em sua obra, Malle afasta todos os resquícios que ligam o incesto à pulsão de morte, algo comum não só na maioria das representações artísticas que abordam o tema, como também nas teorias psicanalíticas e antropológicas sobre o assunto.
Por mais que muito já tenha sido dito e pensado a respeito do incesto em termos filosóficos, sociológicos e antropológicos, em sua História da Sexualidade, Michel Foucault contribui enormemente para a questão levantando a natureza regulatória do impacto das pesquisas científicas sobre os possíveis problemas genéticos oriundos das reproduções passiveis de relações incestuosas. Apesar da ascensão dos métodos contraceptivos, esse continua sendo um dos principais argumentos jurídicos contra a prática, além de todas as contraposições de cunho moral e religioso em torno do tema. Para Louis Malle, “o incesto é um falso problema”, como ele mesmo definiu na ocasião do lançamento de O Sopro no Coração. De acordo com o cineasta, a proibição do incesto não teria razão de ser, funcionando apenas como manutenção estrutural das sociedades ocidentais enquanto maneira de evitar os riscos decorrentes das relações consangüíneas. Apesar de O Sopro no Coração representar um clamor de liberdade em torno da questão, como bem lembra o artigo de Débora Breder, é importante considerar o momento de lançamento do filme e de todo movimento ideológico que permeava o mundo no início dos anos 70, com o destaque para o fato de que a filmografia de Malle ainda viria a reconsiderar a questão do incesto no filme Damage (1992), de maneira menos positiva. Nesse sentido, a perspectiva crítica de Malle parece destinar-se a uma abordagem do incesto na cultura ocidental como algo que está baseado em uma tentativa de universalizar as asserções do tabu, justificando cientificamente a interdição, bem como demonstrar como a proibição do incesto é um índice de como as sociedades ocidentais estão inteiramente estruturadas por uma série de questões ontológicas que buscam separar a cultura da natureza. Assim, não seria necessariamente a existência do tabu como um modo de regulação das estruturas sociais, algo que também apresenta as suas outras maneiras de existir em diversas sociedades não-ocidentais, aquilo a que se destina a crítica de Louis Malle, mas sim a maneira como na cultura ocidental, o incesto repercute em uma biopolítica totalmente atravessada pelo ensejo humano de operar um corte no sensível, em prol de um certo estado de humanidade.
Em um enredo onde não há o suicídio de Jocasta, nem a autoflagelação de Édipo, ou mesmo o assassinato do pai, o que rege a trama é uma ode à liberdade e ao afeto. O pequeno Laurent, cúmplice do adultério da mãe, é um jovem de ares avant garde que parece compreender exatamente as diferenças e semelhanças entre o amor materno, a amizade, o carinho e o afeto. A relação entre mãe e filho em O Sopro no Coração é levada às ultimas conseqüências, porém com certa naturalidade vista apenas como uma espécie de “desvio” que pouco afeta a ordem original das coisas. Muito pelo contrário, legitima e reforça o carinho e o amor entre uma mãe e seu filho que nada mais são do que grandes cúmplices e bons amigos. É nesse sentido que vale destacar como O Sopro no Coração é um filme de identidade forte, principalmente dentre a filmografia de um cineasta que também soube traçar seu caminho com propriedade. Contemporâneo da Nouvelle Vague, Louis Malle preferiu seguir indiferente a qualquer movimento, desventurando-se em Hollywood e se firmando como um dos maiores nomes do cinema francês do século XX. Em muitas de suas obras, Louis Malle foi um grande crítico da moral e defensor da liberdade humana. Eis o motivo pelo qual O Sopro no Coração é um filme repleto de impulsos libidinosos e de contestações sociais que seguem no ritmo do Bebop, mostrando que, mesmo depois de 40 anos, a sua originalidade artística ainda envelhecera muito pouco. O segredo fundamental desse elixir da juventude? O simples fato de abordar um tema que jamais envelhecerá na trajetória humana. Algo que para todos nós ainda carece de uma série de respostas plausíveis que considerem, sobretudo, a questão do afeto, mesmo que este tema continue por muito tempo incomodando e reavivando o nosso imaginário.