Os anos 60 e 70 no Brasil foram marcados por uma produção artística efervescente. Situados num contexto político delicado, protagonizado pela ditadura militar, foram o momento no qual era preciso repensar o fazer artístico e seu alcance e ressonância social. Ainda que as artes visuais fossem a categoria menos perseguida pela censura, muitos artistas do período produziram obras de caráter político e contestatório como forma de reagir ao regime vigente. Havia, certamente, muitas maneiras de fazer isso. Este texto procura expor três exemplos que escaparam da censura através de uma solução aparentemente perigosa – o uso da violência.
No ano seguinte ao golpe militar, foi inaugurada a exposição Opinião 65 no intuito de expor a produção dos artistas jovens. Inspirada no Show Opinião, a exposição era a primeira manifestação artística coletiva a tecer críticas à ditadura através de uma estética pop. Organizada por Ceres Franco e Jean Boghici, teve duração de um mês no MAM e expôs nomes como Rubens Gerchman, Antonio Dias, Carlos Vergara, entre outros. Um ano depois, dando continuidade ao modelo, inaugurou-se a Opinião 66, menos importante que a primeira em termos de inovação formal, mas igualmente crítica. Inspirado nessas duas exposições, Waldemar Cordeiro organizou em São Paulo os seminários Proposta 65 e 66 no intuito de promover uma discussão sobre as questões da arte do momento, principalmente sobre a arte inspirada na Pop Arte americana e no Novo Realismo francês, a fim de entender a especificidade conquistada na produção brasileira. O debate gerou uma reflexão sobre a nova vanguarda brasileira e no ano seguinte, em 1967 acontece novamente no MAM a exposição Nova Objetividade, encabeçada por Hélio Oiticica, como mais um exemplo de repensar o posicionamento político da arte brasileira, seja através de uma maior participação do espectador seja expandindo as categorias do objeto de arte, seja pela tentativa de aproximação da arte com a dimensão pública da cidade.
É neste contexto de reinvenção e intensa produção que a censura começa a atuar. Em 1967 a polícia quis retirar o trabalho de Claudio Tozzi da IV Salão de Arte Moderna do Distrito Federal, considerado subversivo. Em 1968, a II Bienal da Bahia é fechada também por ter seu conteúdo considerado subversivo. Em 1969, a pré-bienal de Paris, realizada no MAM, também é censurada. Também foram retirados trabalhos do Salão de Ouro Preto (1969) e do Salão do Museu de Arte da prefeitura de Belo Horizonte (1968). O Salão da Bússula, realizado no mesmo ano, no Rio de Janeiro, teve interdição da polícia. Com o AI-5 em vigor e intensa manifestação popular, o circuito de arte brasileiro mobiliza a comissão de diversos países a boicotar a Bienal de São Paulo de 1969, liderado pelo crítico Pierry Restany.
Nada disso impede que os eventos artísticos e suas articulações continuem acontecendo. Em Belo Horizonte, no ano de 1966, é organizada a Vanguarda Brasileira, e em 1970, acontece “Do Corpo à Terra”, por Frederico Morais. No Rio, o ano de 1968 tem os eventos “arte no aterro”, “domingo das bandeiras” e “apocalipopótese”, organizado nos arredores no MAM por Hélio Oiticica, contava com a participação de artistas, cineastas e músicos. As obras participantes tem forte apelo à participação dos espectadores, como Os ovos de Lygia Pape e os Parangolés de Oiticica. Em 1970, os jardins do MAM voltam à atividade com os “domingos da criação”.
Em texto-manifesto publicado no Correio da Manhã, em 1969, em repúdio ao fechamento da Pré-Bienal de Paris no MAM, a associação de críticos de arte, através da voz de Mário Pedrosa, convidava os críticos de todo país a boicotarem as atividades artísticas oficiais e não participarem de juris de salões e exposições. O texto trazia uma questão central: “é profissional e tecnicamente impossível distinguir, e muito menos afastar de uma obra os “aspectos ideológicos e políticos quaisquer”.
É a partir dessa brecha potente que garante uma impossibilidade de fechamento pleno dos sentidos, própria da arte, que alguns artistas utilizarão dribles discursivos para lidar com o regime de repressão. Havia – e há – várias maneiras de inserir uma questão política na linguagem da arte. Muitas vezes, a opção se fez temática (alcançando um maior público, talvez) e falhou por ser facilmente identificada como contestatória (como nos vários exemplos que citei em cima). Apresentarei três trabalhos que, agindo pela via da violência literal, embora sem tratar diretamente sobre a ditadura, driblaram a censura enquanto trouxeram perspectivas potentes sobre o período.
São eles, Tiradentes – Totem-monumento ao Preso Político (1970), de Cildo Meireles, Trouxas Ensanguentadas (1969) de Artur Barrio, e “Urnas Quentes” (1968) de Antonio Manuel.
Em Tiradentes – Totem-monumento ao Preso Político, Cildo encharcou dez galinhas com gasolina e as incendiou vivas diante da plateia, na exposição “Do corpo à terra” organizada por Frederico Morais e que fazia parte das comemorações oficiais da semana da Inconfidência Mineira. Segundo Cildo:
Na época havia muito cinismo e tentativa de cooptação do personagem [Tiradentes]. Era, de fato, uma espécie de regra de três simples. Pegar galinhas e matá-las equivalia, na verdade, a pegar um símbolo nacional e torná-lo símbolo do golpe militar. Ao mesmo tempo em que eles estavam se aproveitando do símbolo de Tiradentes, herói da independência brasileira, com todas as contradições que o personagem possa ter, eles estavam usando de procedimentos análogos aos do artista contra as próprias galinhas, e justamente para defender o contrário do que o próprio Tiradentes defendia.
No caso das trouxas ensanguentadas, foram apresentadas três vezes: a primeira no salão da bússola em 1969, a segunda nas ruas do Rio de Janeiro em 1970 e a terceira também em 1970 em Do Corpo A terra, em Belo Horizonte. Na primeira, o fardo com pedaço de carne e sangue ficou mais de um mês na área interna do museu, sendo alvo de várias intervenções dos visitantes. Depois, a trouxa foi abandonada nos jardins do museu tendo atraído a atenção dos policiais do local que não sabiam se objeto pertencia ao museu, sendo posteriormente recolhido ao depósito de lixo. Na segunda vez, os materiais haviam se expandido. “Havia sangue, pedaços de unhas, saliva, cabelo, urina, merda, meleca, ossos, papel higiênico. Modess, pedações de algodão usados, papel úmido, serragem, restos de comida, tinta, pedaços de filme (negativos)”. Na terceira, em Do Corpo A terra, as trouxas atraíram um grande público, e segundo Frederico Morais, criaram uma “tensão insuportável, o que acabou provocando a intervenção do Corpo de Bombeiros e, a seguir, da Polícia”.
As urnas quentes, de Antonio Manuel, expostas em Apocalipopótese em 1968, eram 20 pequenas caixas de madeira vedadas que deviam ser abertas pelo público com a ajuda de martelos e pedras. Abrir as caixas exigia força e ação violenta. Dentro das caixas:
que lembravam caixões, havia textos manuscritos (por exemplo, “Fome, fome, fome”) e imagens desenhadas (como os corpos magros famintos) que aludiam às condições correntes. O uso de emblemas alegóricos para disfarçar o sentido é comparável ao simbolismo usado antes nos desenhos sobre jornal e nos flans.
São trabalhos que se apoiam na estética da violência como até então não havia sido feito na arte brasileira. É nesse contexto de expansão da natureza da arte, em que ações efêmeras, happenings e participação garantem o espaço para certa radicalização política. É a própria exposição Do corpo à Terra que ficou caracterizada como o primeiro evento em que não se apresentaram obras, mas ações.
Portanto, trata-se de um alcance político que vai além de sua abordagem temática. Estes trabalhos atacavam as normas do próprio sistema e política da arte, questionando sua recepção, circulação e institucionalização. O contexto político não só impulsionava uma nova radicalidade artística, mas também exigia novas formas de fazer arte.
No caso de Cildo, Barrio e Antonio Manuel, a contemplação dá lugar a um espaço de desconforto e ativação. O espectador, antes passivo (embora nunca passivo) diante da ação do artista, é provocado por um incômodo, estranheza, aflição. Além disso, trata-se de três trabalhos efêmeros que deixam como documentação apenas seus registros. Diferente dos trabalhos apreendidos pela censura, como no caso dos exemplos dados na Pré-Bienal de Paris, essas obras parecem atuar nas frestas da oficialidade: ainda que apresentadas em eventos de arte específicos, provocam dúvidas sobre sua natureza artística e se desmaterializam. Sua provocação política é pontual. Os três estão lidando diretamente com a questão do corpo: o corpo que queima, o corpo que deixa rastros, o corpo que agride. Aspectos que, naquele momento – e hoje – eram facilmente vinculadas aos abusos de poder que envolvem o agenciamento dos corpos na cidade. Corpos desaparecidos, corpos procurados, corpos ensanguentados, o registro midiático excessivo do estado dos corpos marginais.
O exemplo das trouxas ensanguentadas é pertinente para entender o drible em ação: quando deixadas no jardim do MAM, depois da exposição, chamaram a atenção dos policiais que seguidamente jogaram o trabalho no lixo. Não havia acusação para uma trouxa com componentes asquerosos, mas o trabalho, por outro lado, causava mal-estar, remetia-se indiretamente aos corpos a cada dia desaparecidos. No caso de Cildo Meireles, embora a violência fosse literal, a provocação política era metafórica, as galinhas queimadas também remetiam aos assassinatos e torturas. Nas urnas quentes, a força física do participador reativava corpos que antes contemplavam. O trabalho convocava à ação.
No entanto, os três exemplos não ofereciam nada que pudesse ser considerado concretamente como contestação ao regime. Seus métodos driblavam a censura ao mesmo tempo que lançavam mão de uma radicalidade necessária para o debate. A violência que fabricavam gerava uma nova postura nos corpos participantes: seja no mal-estar da interação, no caso de Barrio, na força empregada, no caso de Antonio Manuel, ou da inquietação ética colocada pela literalidade da violência de Cildo Meireles.
Referências:
1. CANEJO, Cynthia Marie. Gestos efêmeros e obras tangíveis: a trajetória de Antonio Manuel. Novos estud. – CEBRAP, São Paulo , n. 76, Nov. 2006.
2. MEIRELES, C. Cildo Meireles, geografia do Brasil. Rio de Janeiro: Artviva Produção Cultural, 2001.
3. RIBEIRO, M. A. ; CUNHA, V. S. . Entrevista com Frederico Morais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013
4. Texto-manifesto da associação brasileira de críticos de arte publicado no Correio da Manhã em 1969.
5. PEDROSA, Mario. Política das Artes, Textos Escolhidos I. São Paulo: Edusp, 1995