Ela volta na quinta é um filme delicado. Um filme calmo, engajado e extremamente voraz. Depois de assistir os filmes anteriores do jovem mineiro André Novais, como os curtas-metragens Fantasmas (2010, MG) e Pouco Mais de um Mês (2013, MG), minha expectativa não era pouca para ver seu novo filme, agora com duração de longa-metragem. Não que a expectativa fosse um prolongamento estrutural daquilo visto em filmes de outrora, aqueles que não ultrapassam os 15 minutos. Ambos curtas tem perfeita resolução com sua duração e narrativa. Porém, o que vi na tela, projetado durante precisos 108 minutos, durante a VI Semana dos Realizadores no Rio de Janeiro em novembro último, me mostrou mais. Até mesmo sua materialidade é índice do que experimentei: o filme foi vencedor do Edital Filme em Minas para produção do curta-metragem. Novais afirma o gesto cinematográfico e insiste em fazer cinema, insiste em prolongar suas intenções e afirmações.
Gostaria de tecer dois comentários antes de me debruçar sobre o filme propriamente dito.
a.
Subjetividade, periferia e política foram temas comentados no breve debate pós-sessão. Foram feitas breves comparações com filmes recentes de realizadores brasileiros como o também mineiro Affonso Uchoa e o brasiliense Adirley Queirós. Fazendo referências, imagino eu, a filmes que vão de A Vizinhança do Tigre (2014, MG) de Uchoa, a A Cidade é Uma Só (2011, DF) ou porque não Branco Sai Preto Fica (2014, DF) ambos de Queirós. A resposta de André, calma e serena como sempre, à perguntas da plateia sobre tais comparações, é afirmativa. Ele diz que vê relação, vê também. Também.
b.
Quando o filme foi exibido no Panorama Internacional Coisa de Cinema em Salvador, BA, em outubro último, uma chamada no jornal baiano Correio chamava atenção pela sinceridade na comparação que estabelecia. Lia-se: “Ela Volta na Quinta não é linguagem de TV ou Videoclip, é cinema puro”. Pode-se ter uma intepretação baziniana para dizer que o papel da crítica não deve ser a erupção de uma verdade nova que não existe, mas sim prolongar o máximo possível o impacto da obra de arte. Mas não era Bazin defensor de um cinema impuro? Elogioso confesso do sonoro, plano sequência e profundidade de campo, o cinema puro de que fala Bazin relaciona-se ao insulto crítico que é o “teatro filmado”. Agora se tal chamada do jornal baiano se filia ao pensamento baziniano, não sabemos. Basta a proximidade semântica. Algo claro foi dito em Salvador e ecoou Brasil afora: Ela Volta na Quinta, trata-se de cinema. Falemos do filme.
Uma família vive numa periferia mineira, assumimos pelo sotaque, mas que não conseguimos precisar exatamente onde. Por ver seus outros filmes e aqueles de sua produtora Filmes de Plástico, sabemos que estamos no bairro de Contagem, periferia da cidade de Belo Horizonte (MG). Dois irmãos parecem acompanhar a separação dos pais. Aflitos com a situação ali presente, eles a sentem mas não sabem muito bem como agir. Cada um tem seus próprios problemas, um está insatisfeito no trabalho e pensa em ter filhos, outro procura casa para morar com a namorada. Aquilo que vemos na tela é exatamente o que falta na representação audiovisual da periferia brasileira: subjetividade. A separação dos pais, um drama entre namorados, insatisfação no trabalho, breve viagem à Aparecida do Norte, sessões de youtube com esdrúxulos remixes e partidas de futebol em campo de grama sintética. Em leve plongeé acompanhamos aquele casal em processo de separação numa dança lenta, a música que toca é de Roberto Carlos. Sabemos depois da existência de um adultério, o marido trai sua esposa com uma mulher aparentemente mais nova. O que não dura muito, ele também é abandonado pela amante. Pai e filhos assistem, agora com a ausência da mãe, em casa, ao jogo de futebol do clube Atlético Mineiro, bebendo cerveja em copos de vidro. Não há espaço para todos no sofá, um deles senta-se no chão encostado na parede. Como esquecer o longo plano sequência em close de seu irmão, que interpreta ele mesmo, falando em frente ao computador? Renato, seu irmão, conversa num ritmo lento, manso, fala baixo com André, que está fora de campo. Ouvimos somente sua voz.
A elaboração narrativa de sua família, interpretada por eles mesmos, constrói no âmbito da mise-en-scène um específico contrato com o real. Interpretações de não-atores que se assumem numa ficção. O debate em torno da atuação de não-atores e da mútua influência de camadas do real e da ficção, está totalmente em aberto aqui. Se em Pouco Mais de um Mês tal atuação e presença diante da câmera é colocada como questão central, em Ela Volta na Quinta vem com ainda mais força, potência e frescor.
Mais adiante, para quem já conhece Novais e seus demais filmes, saberemos que aquelas pessoas, aquele universo familiar, lhe é próprio. É sua própria família quem atua, ele inclusive. Podemos acompanhar um maior desenvolvimento da trama do curta Pouco Mais de um Mês. Novais e sua namorada negociam se mudam ou não de casa. Ela viu um apartamento mais próximo ao centro, um pouco mais caro. André é relutante a proposta da sua namorada, ele quer se manter ali. Talvez a opção de se manter distante do centro extrapole o quadro e quiçá à mise-en-scène proposta pelo jovem realizador mineiro. Trata-se de um gesto político. Subjetividade na tela, política no cinema.
Antes de concluir o texto gostaria de tecer breve comentário a respeito de uma opção conceitual sobre o som do filme. Digo conceitual, porque para uma análise crua e fria, da captação de som direto por exemplo, logo vê-se que não há um cuidado e apreço técnico quanto à captação das vozes, só para citar um dos elementos da captação de som. Tal opção e sonoridade não se configuram no texto proposto aqui, como uma incoerência com o restante da obra. Somente uma observação.
O gesto conceitual de que falo é a escolha da utilização de trilhas musicais assumidamente não diegéticas. Trata-se de levar à mise-en-scène afetos ficcionais. Da criação de ambientes que não estavam ali no real quando sons e imagens foram captados. E que músicas são essas? Em clima bucólico trata-se do timbre do trompete de Miles Davis, ou um funk setentista nos créditos iniciais. O filme é então marcado pela utilização de tais trilhas e tal escolha setoriza e marca definitivamente a narrativa em blocos. Algo que em etapa de pós produção leva o filme para um local específico e mais fácil de ser identificado. Trata-se de um gesto conceitual radical que não tem medo de se configurar como algo de fato externo à diegese, assume-se tranquilamente. Talvez uma forma de legitimação daquelas imagens naquele local, uma espécie de liberação do contrato sonoro em que as imagens estão livres para ser recebidas, com autonomia, e que dialogam com as outras camadas do filme e porque não com um certo universo da cultura ocidental com influências norte-americanas. Reconhecemos tais timbres e ritmos e associamos tais climas sonoros aquelas cenas encenadas por não-atores interpretando eles mesmos.
Puro ou impuro, Ela Volta na Quinta trata-se de cinema.